Square, onde esteve patente a exposição "Raphael Impossível!"
Foto: Frederico Cardigos
Foto: Frederico Cardigos
Há uns dias, quando escrevi as linhas abaixo, estas eram as
minhas preocupações com a vida em Bruxelas. Depois veio a pandemia. Como as
coisas mudam…
Fiquei perplexo! Pedi para confirmar, mas a funcionária do
restaurante, com um francês muito melhor do que o meu, não deixou margem para
dúvidas: “se pagar em dinheiro tem 10% de
desconto”. Paguei, com os meus 10% desconto e esperei que me desse a
fatura. Não deu. Lembrei-a. Ela, com um olhar torcido, mas bem-disposta, como
se fosse uma situação normal, deu-me um papel em que se podia ler 45 euros. O
papel não teria mais de 5cm por 5 cm, não tinha o nome do restaurante, número
da fatura/recibo ou data. Ri-me. Ela riu-se. “Isto
não é um recibo”, disse. Ela não desarmou e respondeu, “não é um Recibo, mas é um recibo”. Não sei
como notei a diferença na entoação, mas concluo que o meu francês está muito
melhor. Resolvi não discutir porque estava com amigos e, no fundo, este não é o
meu país. Estou quase completamente convencido que este é um esquema para fugir
aos impostos e, se assim for, fui conivente com um crime fiscal.
O que acabei de relatar, acontece vezes sem conta em
Bruxelas, essencialmente nos restaurantes e táxis. Evitam receber pagamentos
que possam ficar registados e dão comprovativos que, em Portugal, fariam as
delícias das autoridades do fisco. O que acresceu neste caso, autêntica cereja
no topo do bolo, foi o aliciante de darem um desconto. Ajudem-nos a não pagar
os 23% do IVA e as taxas pelo uso do cartão e nós damos um desconto de 10%.
Tornamo-nos associados no crime. Passei involuntariamente a fazer parte da máfia que arruína os estados.
Li na comunicação social local que a fuga ao IVA está
estimada numa dezena de milhar de milhões de euros anuais na Bélgica. Uma
soma igual ao deficit anual do
orçamento belga. Ou seja, se fizessem o mesmo que foi feito em Portugal,
moralizando o pagamento do IVA, este país não teria deficit. Um sonho ao alcance da mão…
Tenho consciência que não estou no meu país e que aqui sou um
convidado que foi muito bem recebido. Não tenho qualquer razão de queixa, mas
não posso deixar de observar.
Também me custa por uma outra razão e esta mais do nosso
interesse (sim, do seu, caro leitor!). É que 20% do IVA reverte para a União
Europeia. É o contributo de cada Estado-Membro. Ao permitir que haja fuga ao
IVA, a Bélgica está-nos a retirar 2 mil milhões de euros por ano do orçamento
da União Europeia. Ao nosso orçamento!
Mas, no entanto… Portugal é um beneficiário líquido da União
Europeia e a Bélgica um contribuinte líquido. Isso tira-nos alguma moralidade
no protesto.
No dia seguinte, fui a uma exposição chamada “Raphael
impossível!”. O anúncio referia que poderíamos ver as obras mais importantes
deste incrível pintor, um dos mais importantes de sempre. Até por ser
organizada por uma representação regional, congénere do Gabinete dos Açores em
Bruxelas, e por ter sido convidado, fui à inauguração. A exposição teria lugar
numa das mais prestigiadas salas de conferências de Bruxelas e isso devia-me
ter deixado “com a pulga atrás da orelha”. Sim, eu escrevi bem, “numa das mais
prestigiadas salas de conferências”. Não era “numa das mais prestigiadas salas
de exposições”… Devia ter desconfiado.
Lá chegado, deixando para trás as habituais autoridades
cheias de salamaleques e ultrapassados casacos de víson, entrei na sala. Devia
ter dado meia volta e corrido quando percebi que não era uma sala, era um
corredor! Um enorme corredor, mas um corredor de qualquer forma. De um lado e
do outro os quadros, mas…! Os quadros não eram quadros, eram fotografias retro
iluminadas! Não é possível. Ou melhor, é mesmo possível e estavam à minha
frente. Estava numa exposição de placards acrílicos com fotografias retro
iluminadas do grande Raphael. Ao lado de cada fraude tinha o nome do museu em
que o original poderia ser visto. Do género: “Quer
o verdadeiro? Ah, ah… Vá a Nova Iorque!”
Aí entendi a nuance do “impossível” no nome da exposição e o
facto de se realizar numa sala de conferências e não numa sala de exposições.
Jamais uma sala de exposições com o mínimo de prestígio aceitaria uma coisa
daquelas.
Estou a exagerar um pouco, mas é para salientar o meu ponto
de vista. Na realidade, as fotos retro iluminadas causavam um efeito engraçado
e o tamanho de algumas enchia o olho… e a parede! Era como se estivesse a ouvir
uma versão tecno de uma música clássica. “Ok,
é interessante, mas não é o original.”, pensei com os meus botões.
Quando em Bruxelas, sinto-me verdadeiramente bem. Tirando os
escassos exemplos que vou transmitindo aqui e ali, a vida nesta cidade decorre
sem sobressaltos. No entanto, estas fraudes fazem a diferença entre a realidade
e um mundo quase perfeito. Pena…