sexta-feira, 24 de abril de 2020

Crónicas de Bruxelas - 68: As minhas preocupações antes da pandemia


Square, onde esteve patente a exposição "Raphael Impossível!"
Foto: Frederico Cardigos

Há uns dias, quando escrevi as linhas abaixo, estas eram as minhas preocupações com a vida em Bruxelas. Depois veio a pandemia. Como as coisas mudam…
Fiquei perplexo! Pedi para confirmar, mas a funcionária do restaurante, com um francês muito melhor do que o meu, não deixou margem para dúvidas: “se pagar em dinheiro tem 10% de desconto”. Paguei, com os meus 10% desconto e esperei que me desse a fatura. Não deu. Lembrei-a. Ela, com um olhar torcido, mas bem-disposta, como se fosse uma situação normal, deu-me um papel em que se podia ler 45 euros. O papel não teria mais de 5cm por 5 cm, não tinha o nome do restaurante, número da fatura/recibo ou data. Ri-me. Ela riu-se. “Isto não é um recibo”, disse. Ela não desarmou e respondeu, “não é um Recibo, mas é um recibo”. Não sei como notei a diferença na entoação, mas concluo que o meu francês está muito melhor. Resolvi não discutir porque estava com amigos e, no fundo, este não é o meu país. Estou quase completamente convencido que este é um esquema para fugir aos impostos e, se assim for, fui conivente com um crime fiscal.
O que acabei de relatar, acontece vezes sem conta em Bruxelas, essencialmente nos restaurantes e táxis. Evitam receber pagamentos que possam ficar registados e dão comprovativos que, em Portugal, fariam as delícias das autoridades do fisco. O que acresceu neste caso, autêntica cereja no topo do bolo, foi o aliciante de darem um desconto. Ajudem-nos a não pagar os 23% do IVA e as taxas pelo uso do cartão e nós damos um desconto de 10%. Tornamo-nos associados no crime. Passei involuntariamente a fazer parte da máfia que arruína os estados.
Li na comunicação social local que a fuga ao IVA está estimada numa dezena de milhar de milhões de euros anuais na Bélgica. Uma soma igual ao deficit anual do orçamento belga. Ou seja, se fizessem o mesmo que foi feito em Portugal, moralizando o pagamento do IVA, este país não teria deficit. Um sonho ao alcance da mão…
Tenho consciência que não estou no meu país e que aqui sou um convidado que foi muito bem recebido. Não tenho qualquer razão de queixa, mas não posso deixar de observar.
Também me custa por uma outra razão e esta mais do nosso interesse (sim, do seu, caro leitor!). É que 20% do IVA reverte para a União Europeia. É o contributo de cada Estado-Membro. Ao permitir que haja fuga ao IVA, a Bélgica está-nos a retirar 2 mil milhões de euros por ano do orçamento da União Europeia. Ao nosso orçamento!
Mas, no entanto… Portugal é um beneficiário líquido da União Europeia e a Bélgica um contribuinte líquido. Isso tira-nos alguma moralidade no protesto.
No dia seguinte, fui a uma exposição chamada “Raphael impossível!”. O anúncio referia que poderíamos ver as obras mais importantes deste incrível pintor, um dos mais importantes de sempre. Até por ser organizada por uma representação regional, congénere do Gabinete dos Açores em Bruxelas, e por ter sido convidado, fui à inauguração. A exposição teria lugar numa das mais prestigiadas salas de conferências de Bruxelas e isso devia-me ter deixado “com a pulga atrás da orelha”. Sim, eu escrevi bem, “numa das mais prestigiadas salas de conferências”. Não era “numa das mais prestigiadas salas de exposições”… Devia ter desconfiado.
Lá chegado, deixando para trás as habituais autoridades cheias de salamaleques e ultrapassados casacos de víson, entrei na sala. Devia ter dado meia volta e corrido quando percebi que não era uma sala, era um corredor! Um enorme corredor, mas um corredor de qualquer forma. De um lado e do outro os quadros, mas…! Os quadros não eram quadros, eram fotografias retro iluminadas! Não é possível. Ou melhor, é mesmo possível e estavam à minha frente. Estava numa exposição de placards acrílicos com fotografias retro iluminadas do grande Raphael. Ao lado de cada fraude tinha o nome do museu em que o original poderia ser visto. Do género: “Quer o verdadeiro? Ah, ah… Vá a Nova Iorque!
Aí entendi a nuance do “impossível” no nome da exposição e o facto de se realizar numa sala de conferências e não numa sala de exposições. Jamais uma sala de exposições com o mínimo de prestígio aceitaria uma coisa daquelas.
Estou a exagerar um pouco, mas é para salientar o meu ponto de vista. Na realidade, as fotos retro iluminadas causavam um efeito engraçado e o tamanho de algumas enchia o olho… e a parede! Era como se estivesse a ouvir uma versão tecno de uma música clássica. “Ok, é interessante, mas não é o original.”, pensei com os meus botões.
Quando em Bruxelas, sinto-me verdadeiramente bem. Tirando os escassos exemplos que vou transmitindo aqui e ali, a vida nesta cidade decorre sem sobressaltos. No entanto, estas fraudes fazem a diferença entre a realidade e um mundo quase perfeito. Pena…


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Crónicas de Bruxelas: 67 - O meu confinamento em Bruxelas

Teletrabalho e videoconferência
Foto: S Paradela

Por ordem das autoridades belgas, estou confinado faz hoje oito dias. Todos os residentes na Bélgica foram “convidados” a permanecer em casa exceto os que desempenham tarefas cruciais em termos médicos e para a gestão presencial do quotidiano: médicos, enfermeiros, bombeiros, profissões relacionadas com a sanidade pública e energia, agricultores, merceeiros, distribuidores de comida, polícias, pescadores, alguns educadores… e poucos outros. A minha profissão não se enquadra nestas tipologias e, portanto, estou confinado em casa.

No entanto, estar “confinado” não significa estar “preso”. Há algumas liberdades e estas foram definidas pelo governo belga. Tenho aproveitado esta pouca liberdade para praticar desporto, dar pequenos passeios em modo circular à volta de casa, ir às lojas autorizadas (supermercado, padaria e farmácia) e praticar alguns pequenos atos de solidariedade social. Nunca pensei que ir às lojas pudesse ser um dos momentos altos do meu dia, mas, atualmente, é.. Triste? Um pouco.
Tento fazer com que o tempo de reclusão seja tão útil quanto possível. Por exemplo, realizei que teletrabalho é trabalho mesmo. Aqui na Bélgica é habitual que os trabalhadores da administração e mesmo de algumas empresas privadas tenham um ou dois dias por semana de teletrabalho. Há vantagens nessa opção. Para o trabalhador, permite economizar os tempos de transporte e, nalguns casos, ficar com os filhos em casa. Para a empresa, as vantagens são ter um trabalhador mais feliz, mais sereno e, consequência disso, mais produtivo.
Na realidade, sempre que alguém me dizia que iria teletrabalhar, eu, honestamente, pensava que era um subterfúgio para não fazer nada. Agora, que eu próprio estou em teletrabalho, constato que se produz bastante e que se trabalha durante mais tempo. Ao não ter o tempo de transporte, na realidade, acabamos por começar mais cedo e não ter hora para terminar. Algumas das reuniões continuam a fazer-se por sono- ou videoconferência e os “diálogos” por email, whatsapp e messenger tornam-se mais longos e mais constantes. Por outro lado, em sentido negativo, a falta dos colegas e o confronto com um ambiente organizado para lazer, faz com que as tarefas mais básicas demorem muito tempo.
Portanto, o meu balanço em termos de julgamento do teletrabalho é que ele pode ser útil, e inevitável na atual situação, mas que não é suficientemente produtivo para mim. Quero voltar ao Gabinete dos Açores em Bruxelas o quanto antes, regressar às reuniões com interesse para os Açores, retornar aos “corredores” das instituições europeias, reiniciar as conversas de proximidade com os meus colegas e beber um café a meio da tarde para tagarelar sobre tudo e sobre nada. Gosto muito de estar em casa, ler um livro, ver televisão, conversar em família, jantar à luz da vela… Tudo isso. Mas o conceito “teletrabalhar a partir de casa” continua a ser uma violenta antítese para mim.
Estar confinado dá-me também tempo para pensar no que se passa lá fora, na Europa e no mundo. Vejo com muita preocupação o controlo que alguns países fazem dos seus cidadãos num “canto” do globo e a perda de humanismo no outro. Na China e países vizinhos atentou-se contra a liberdade e privacidade individual como um elefante numa loja de porcelanas e, nos Estados Unidos da América, já se fala, com uma estonteante normalidade, em sacrificar a terceira idade para benefício da economia. Está tudo louco?!
As mudanças causadas pela covid-19 são inevitáveis e muitas delas estão para ficar. Está nas nossas mãos moldar o seu sentido. Teremos de ser mais ativos na adesão e no cumprimento das indicações das autoridades, mas não podemos permitir que as perdas de privacidade e liberdade, aceitáveis em tempos de pandemia, se mantenham no dia a seguir à resolução deste enorme problema. Pode parecer um problema menor, mas não é.