sexta-feira, 26 de junho de 2020

Crónicas de Bruxelas - 72: SOS Cagarro, a maior campanha ambiental de Portugal

 

Cagarro nos Açores.
Foto: PH Silva - SIARAM.

Dadas as funções que desempenhei há uns anos, pediram-me recentemente informações sobre a campanha “SOS Cagarro”. A procura de dados que se seguiu enviou-me para um processo de pesquisa quase arqueológica com cruzamentos interessantes entre a proteção dos cagarros e a excelência da cidadania ambiental dos açorianos e até com o papel da União Europeia na conservação desta ave.

Tudo o que vou escrever abaixo é baseado em informação escrita e publicada. Neste artigo, o único detalhe que não tem suporte bibliográfico sério é o título, mas já lá vamos.

O meu registo mais antigo relacionado com a proteção das aves marinhas nos Açores data do século XVI. Geraldo Lages, num trabalho publicado em 2000, relata como os corvinos designaram uma autoridade ambiental responsável pela gestão das aves marinhas. Entre outras funções, tinha de garantir que as aves marinhas não eram capturadas durante o período de nidificação e que, durante o período de caça, não eram capturadas aves em número acima do estipulado por pessoa. Esta postura denota uma enorme sofisticação na gestão ambiental para a época e, para minha admiração, eram regras geridas pelos escravos que, naquela época, eram os únicos habitantes da ilha do Corvo.

Graças ao trabalho de Miguel Figueiredo Corte-Real (1988), recolhido por Teófilo Braga (antigo presidente da organização de defesa do ambiente Amigos dos Açores), ficámos a saber que o primeiro ato oficial destinado a proteger especificamente os cagarros data de 1603. Num édito municipal, a Câmara de Vila do Porto proibia a captura destas aves. Sol de pouca dura, já que, posteriormente, passou a cobrar por uma licença que autorizava a sua caça, embora, pela positiva, seja já uma tentativa de gestão de populações.

Ainda por recolha de Teófilo Braga, fiquei a saber que, nos tempos modernos, um dos primeiros apelos públicos para que se protegesse o cagarro nos Açores data de 1984 e ocorreu também na ilha de Santa Maria. A autoria era do Grupo de Ecologistas de Santa Maria, um grupo muito ativo, mas efémero de proteção do ambiente daquela ilha.

O primeiro registo de um cagarro salvo nos Açores é de 1989 e esse facto ficou plasmado no jornal Açoriano Oriental. Aí refere-se que os protagonistas desse ato eram jovens estudantes membros do Núcleo de Ornitologia dos Amigos dos Açores.

Foi neste período que chegou aos Açores um jovem investigador de nome Luís Monteiro. O Doutor Luís Monteiro, uma das trágicas vítimas do acidente de aviação do Pico da Esperança em São Jorge, constituiu um marco no estudo sistemático e holístico das aves marinhas dos Açores. Em jeito de introdução para o que escreverei abaixo, refiro, desde já, que tudo o que se passou a seguir aos anos 80 na conservação dos cagarros nos Açores foi liderado ou, no mínimo, inspirado por este cientista.

A primeira ação concreta e oficial para se protegerem os cagarros, que prenunciava já a forma SOS Cagarro, ocorreu no Corvo em 1991. Como se pode ler nas atas da Câmara Municipal de 3 de outubro desse ano, por sugestão do munícipe José Maria Mendonça e apoiado pelo Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores (leia-se, pelo Doutor Luís Monteiro), mandou-se desligar as luzes públicas de 13 de outubro a 10 de novembro, ou seja, durante o período de saída dos ninhos dos cagarros nados nesse ano. Desde então, o Corvo protege os cagarros ininterruptamente desde 1991, com o apoio da Câmara Municipal e, mais recentemente, do Parque Natural e da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (que tem desde há uma dezena de anos uma equipa permanente no Corvo).

A primeira ação de sensibilização ambiental massiva para a proteção dos cagarros teve a mão do Doutor Luís Monteiro, do Governo dos Açores e dos Amigos dos Açores, em 1993. Entre outras atividades, foram então distribuídos pelas escolas dos Açores 10 mil folhetos de sensibilização.

Estas ações de 1989, 1991 e 1993 foram essenciais para estruturar o que viria a ser a Campanha SOS Cagarro. Essa nasceu em 1995 com base num projeto financiado pela União Europeia, através do programa LIFE, de nome “Conservação das comunidades de aves marinhas dos Açores”, e pelo Governo dos Açores e tendo como principal parceiro a Universidade dos Açores (mais uma vez, leia-se, o Doutor Luís Monteiro).

Assim, é desde então, que, anualmente, os açorianos se reúnem em brigadas noturnas para salvar cagarros. Nos sítios chave, as luzes são estrategicamente desligadas ou reduzidas para minimizar o seu impacto sobre as jovens aves quando saem dos ninhos em direção ao mar pela primeira vez.

De acordo com os registos da Direção Regional dos Assuntos do Mar (DRAM), entre 2006 e 2019 foram salvos 60299 cagarros. Ou seja, desde 1995, terão sido salvas mais de 100 mil aves pela ação direta das pessoas que retiram os cagarros das estradas e os colocam em zona segura. Quantas aves terão simplesmente passado por cima das zonas de risco graças à iluminação reduzida? Eu não sei, mas muitas mais, certamente. Um cientista, nobre herdeiro do trabalho do Doutor Monteiro, o Doutor Joel Bried, dizia-me há uns anos que “sem a campanha SOS Cagarro hoje dificilmente ouviríamos o tradicional cantar dos cagarros à noite”.

Mais uma vez recorrendo aos números da DRAM, entre 2009 e 2019 participaram 44 mil pessoas nas brigadas de salvamento de cagarros. Uma estimativa com base neste número e nos meus registos aponta para terem colaborado mais de 100 mil pessoas nas diferentes ações públicas organizadas pela campanha SOS Cagarro, incluindo as brigadas noturnas. A essas terão de somar-se as que, por iniciativa própria, procedem a salvamentos sem que disso haja registo.

Em paralelo, nas escolas, nas sedes das organizações não-governamentais para o ambiente e nos Parques Naturais há ações específicas para o conhecimento da biologia e ecologia dos cagarros e sensibilização para a sua conservação. Os órgãos de comunicação social também aderiram e, em diferentes formatos, “salvam um cagarro e fazem um amigo!

Quando passei a viver continuamente nos Açores, em 1994, era ainda habitual ver cagarros mortos pelas estradas durante os meses de outubro e novembro. Hoje, em 2020, é uma raridade e, quando acontece, as pessoas indignam-se e apelam por soluções. Muito mudou e para muito melhor.

Este ano irão celebrar-se os 25 anos da campanha SOS Cagarro (26ª edição). Penso que era a data indicada para que lhe fosse dado o reconhecimento que merece. Que eu saiba, não há outra campanha de cidadania para a preservação da biodiversidade que dure há um quarto de século em Portugal e não há qualquer outra ação ambiental no nosso país que se possa orgulhar de ter salvo mais de 100 mil aves.

Aconteceu e acontece nos Açores!


sexta-feira, 5 de junho de 2020

Crónicas de Bruxelas – 71: Notre Jardin Extraordinaire

Paisagem florestal em Bruxelas (Woluwe Saint Lambert)
Foto: F Cardigos

Há poucos programas que eu veja na televisão em direto, aqui em Bruxelas. Um noticiário ou outro, futebol, sim, e um programa dominical chamado “Le Jardin Extraordinaire”. Este programa documental é emitido desde 1965 ininterruptamente. Juntamente com o telejornal, é a emissão mais antiga de uma das televisões belgas francófonas, a RTBF.
Todos os domingos a seguir ao telejornal, o jardim extraordinário expõe uma mistura entre histórias do mundo natural belga e do resto do mundo. Normalmente, parte de um assunto local que, depois, serve de mote para um olhar mais alargado. Para além de ilustrar a beleza da natureza, apela para o seu conhecimento e conservação. É um programa muito bem realizado, com boas imagens e com profissionais de bom nível, tanto os cientistas, que explicam os detalhes ilustrados, como os repórteres de vida selvagem, que partilham os métodos e as emoções que acompanharam a recolha de imagens. 
Nestes dias de confinamento, a equipa televisiva belga não pode sair para o campo. Aliás, um dos membros esteve mesmo nos cuidados intensivos (felizmente, já saiu e está em boa recuperação). Solução? Convidaram os telespectadores a enviar as suas próprias imagens do mundo natural obtidas nos seus jardins ou imediações de suas casas. Ou seja, um programa de observação do mundo natural feito a partir da casa dos telespectadores a quem se destina. Corresponderam ao desafio pessoas que vivem em casas com generosos jardins, mas também casas mais modestas ou mesmo apartamentos! 
Alguns participantes admitiram que apenas o confinamento os incitou a olhar para o mundo natural que estava ao seu redor. Em todos os espaços foram descobrir pequenas maravilhas. Desde a pequena lagarta até às galáxias no céu, passando por uma miríade de espécies de aves, mesmo galinhas, ratos, esquilos, caracóis, ouriços, raposas, veados… Incrível. Algumas pessoas estavam equipadas com material de topo, com aquelas objetivas fotográficas enormes e material de camuflagem que criava disfarces que mimetizavam perfeitamente a paisagem em volta. Outros obtinham imagens e histórias engraçadas com simples telemóveis e boa disposição. 
Num dos casos, uma das pessoas contava como os pássaros no seu quintal vinham ter com ele. A esposa testemunhava, com imagens, como pousavam em cima dele, aparentemente descansando um pouco, e, depois, partiam sem qualquer explicação aparente. 
Noutro caso, um dos contribuintes enviou uma história que, na realidade, já tinha começado há uns tempos, mas que se prolongou agora pelo período de confinamento adentro. Um pequeno veado bebé apareceu no seu quintal há uns meses. Percebendo que estava ali por engano, provavelmente perdido dos pais, enxotou-o carinhosamente tendo esperança que encontrasse o seu caminho. A partir daí, o veado passou a vir visitá-lo de tempos a tempos. O mais impressionante foi quando mudou as presas. Veio até ao seu quintal e “fez questão” de as partir numa árvore e assim “oferecer” ao seu incrédulo benfeitor. 
O desafio teve uma adesão interessantíssima, com histórias encantadoras e didáticas. O jornalista e responsável pela emissão, Tanguy Dumortier, conseguiu emocionar os seus telespectadores, como eu. Como o formato não era o habitual, chamou-lhe “Notre Jardin Extraordinaire”. E não é que era mesmo?!