Foto: PH Silva - SIARAM.
Dadas as funções que desempenhei
há uns anos, pediram-me recentemente informações sobre a campanha “SOS
Cagarro”. A procura de dados que se seguiu enviou-me para um processo de
pesquisa quase arqueológica com cruzamentos interessantes entre a proteção dos
cagarros e a excelência da cidadania ambiental dos açorianos e até com o papel
da União Europeia na conservação desta ave.
Tudo o que vou escrever abaixo é
baseado em informação escrita e publicada. Neste artigo, o único detalhe que
não tem suporte bibliográfico sério é o título, mas já lá vamos.
O meu registo mais antigo relacionado
com a proteção das aves marinhas nos Açores data do século XVI. Geraldo Lages, num
trabalho publicado em 2000, relata como os corvinos designaram uma autoridade
ambiental responsável pela gestão das aves marinhas. Entre outras funções,
tinha de garantir que as aves marinhas não eram capturadas durante o período de
nidificação e que, durante o período de caça, não eram capturadas aves em
número acima do estipulado por pessoa. Esta postura denota uma enorme
sofisticação na gestão ambiental para a época e, para minha admiração, eram
regras geridas pelos escravos que, naquela época, eram os únicos habitantes da
ilha do Corvo.
Graças ao trabalho de Miguel Figueiredo Corte-Real (1988),
recolhido por Teófilo Braga (antigo presidente da organização de defesa do
ambiente Amigos dos Açores), ficámos a saber que o primeiro ato oficial
destinado a proteger especificamente os cagarros data de 1603. Num édito municipal,
a Câmara de Vila do Porto proibia a captura destas aves. Sol de pouca dura, já
que, posteriormente, passou a cobrar por uma licença que autorizava a sua caça,
embora, pela positiva, seja já uma tentativa de gestão de populações.
Ainda por recolha de Teófilo Braga, fiquei a saber que, nos
tempos modernos, um dos primeiros apelos públicos para que se protegesse o
cagarro nos Açores data de 1984 e ocorreu também na ilha de Santa Maria. A
autoria era do Grupo de Ecologistas de Santa Maria, um grupo muito ativo, mas
efémero de proteção do ambiente daquela ilha.
O primeiro registo de um cagarro salvo nos Açores é de 1989
e esse facto ficou plasmado no jornal Açoriano Oriental. Aí refere-se que os
protagonistas desse ato eram jovens estudantes membros do Núcleo de Ornitologia
dos Amigos dos Açores.
Foi neste período que chegou aos Açores um jovem
investigador de nome Luís Monteiro. O Doutor Luís Monteiro, uma das trágicas
vítimas do acidente de aviação do Pico da Esperança em São Jorge, constituiu um
marco no estudo sistemático e holístico das aves marinhas dos Açores. Em jeito
de introdução para o que escreverei abaixo, refiro, desde já, que tudo o que se
passou a seguir aos anos 80 na conservação dos cagarros nos Açores foi liderado
ou, no mínimo, inspirado por este cientista.
A primeira ação concreta e oficial para se protegerem os
cagarros, que prenunciava já a forma SOS Cagarro, ocorreu no Corvo em 1991. Como se pode ler nas atas da Câmara
Municipal de 3 de outubro desse ano, por sugestão do munícipe José Maria
Mendonça e apoiado pelo Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade
dos Açores (leia-se, pelo Doutor Luís Monteiro), mandou-se desligar as luzes
públicas de 13 de outubro a 10 de novembro, ou seja, durante o período de saída
dos ninhos dos cagarros nados nesse ano. Desde então, o Corvo protege os
cagarros ininterruptamente desde 1991, com o apoio da Câmara Municipal e, mais
recentemente, do Parque Natural e da Sociedade Portuguesa para o Estudo das
Aves (que tem desde há uma dezena de anos uma equipa permanente no Corvo).
A primeira ação de sensibilização ambiental massiva para a
proteção dos cagarros teve a mão do Doutor Luís Monteiro, do Governo dos Açores
e dos Amigos dos Açores, em 1993. Entre outras atividades, foram então
distribuídos pelas escolas dos Açores 10 mil folhetos de sensibilização.
Estas ações de 1989, 1991 e 1993 foram essenciais para
estruturar o que viria a ser a Campanha SOS Cagarro. Essa nasceu em 1995 com
base num projeto financiado pela União Europeia, através do programa LIFE, de
nome “Conservação das comunidades de aves marinhas dos Açores”, e pelo Governo
dos Açores e tendo como principal parceiro a Universidade dos Açores (mais uma
vez, leia-se, o Doutor Luís Monteiro).
Assim, é desde então, que, anualmente, os açorianos se
reúnem em brigadas noturnas para salvar cagarros. Nos sítios chave, as luzes
são estrategicamente desligadas ou reduzidas para minimizar o seu impacto sobre
as jovens aves quando saem dos ninhos em direção ao mar pela primeira vez.
De acordo com os registos da Direção Regional dos Assuntos
do Mar (DRAM), entre 2006 e 2019 foram salvos 60299 cagarros. Ou seja, desde
1995, terão sido salvas mais de 100 mil aves pela ação direta das pessoas que
retiram os cagarros das estradas e os colocam em zona segura. Quantas aves
terão simplesmente passado por cima das zonas de risco graças à iluminação
reduzida? Eu não sei, mas muitas mais, certamente. Um cientista, nobre herdeiro
do trabalho do Doutor Monteiro, o Doutor Joel Bried, dizia-me há uns anos que “sem
a campanha SOS Cagarro hoje dificilmente ouviríamos o tradicional cantar dos
cagarros à noite”.
Mais uma vez recorrendo aos números da DRAM, entre 2009 e
2019 participaram 44 mil pessoas nas brigadas de salvamento de cagarros. Uma
estimativa com base neste número e nos meus registos aponta para terem colaborado
mais de 100 mil pessoas nas diferentes ações públicas organizadas pela campanha
SOS Cagarro, incluindo as brigadas noturnas. A essas terão de somar-se as que,
por iniciativa própria, procedem a salvamentos sem que disso haja registo.
Em paralelo, nas escolas, nas sedes das organizações
não-governamentais para o ambiente e nos Parques Naturais há ações específicas
para o conhecimento da biologia e ecologia dos cagarros e sensibilização para a
sua conservação. Os órgãos de comunicação social também aderiram e, em
diferentes formatos, “salvam um cagarro e fazem um amigo!”
Quando passei a viver continuamente nos Açores, em 1994, era
ainda habitual ver cagarros mortos pelas estradas durante os meses de outubro e
novembro. Hoje, em 2020, é uma raridade e, quando acontece, as pessoas
indignam-se e apelam por soluções. Muito mudou e para muito melhor.
Este ano irão celebrar-se os 25 anos da campanha SOS Cagarro
(26ª edição). Penso que era a data indicada para que lhe fosse dado o
reconhecimento que merece. Que eu saiba, não há outra campanha de cidadania
para a preservação da biodiversidade que dure há um quarto de século em
Portugal e não há qualquer outra ação ambiental no nosso país que se possa
orgulhar de ter salvo mais de 100 mil aves.
Aconteceu e acontece nos Açores!