sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Crónicas do Voo do Cagarro - 36: Do inútil ao brilhante

Entre as muitas coisas inúteis que faço, há o gosto de verificar os jogadores e jogadoras que alinham nas minhas equipas de futebol favoritas. Verifico o nome, a nacionalidade, o percurso clubístico… Totalmente inútil. Sei que não faz muito sentido e que não abona a meu favor, mas a honestidade impõe que seja claro.
Enquanto escrevo este artigo, durante uma viagem de comboio entre Bruxelas e o Luxemburgo, na mesma carruagem que eu, há uma pessoa a fazer tricot, uma a trabalhar com muitos papeis, duas a olhar para o infinito, três a consultar compulsivamente as redes sociais através do telemóvel, uma a lutar com a sua consola de jogos, outra ainda a ocupar-se das suas cavidades faciais e muitas que não consigo entender o que estão a fazer. Entre as coisas inúteis que se passam nesta carruagem, talvez ler nomes de jogadores não seja assim tão grave… Provavelmente, abaixo do tricot e acima dos restantes, não?
Foi assim, a ler nomes, que me cruzei com o jogador Williams nas fileiras do Athletic de Bilbao. Poderia não ser importante, mas acontece que este clube é conhecido por apenas contratar jogadores com uma ligação muito profunda ao País Basco. “Williams não é lá um nome muito basco” foi o que retive e ia passar para a próxima equipa. No entanto, vendo bem, não era apenas um “Williams”, mas sim dois. Intrigante…
Sei que a minha curiosidade deveria ter sido mais forte, mas não foi. Dois Williams aparentemente perdidos na equipa de Bilbao impunham a minha imediata ação, mas não aconteceu.
A vez seguinte que ouvi o nome de um destes Williams foi num epílogo de um drama. Nicholas Williams acabava de fazer um passe mortífero para Álvaro Morata e este aproveitou para marcar contra Portugal e tirar o nosso país da Liga Europeia das Nações de 2022. Devia claramente ter sido suficiente para reter a minha atenção, mas, mesmo assim, não foi...
O meu cérebro não ligou as coisas até que li “A incrível história dos irmãos Williams: juntos no clube, separados na seleção”, no jornal Público. O artigo de Francisco Fernandes Ferreira está muitíssimo bem escrito e é aconselhável mesmo para quem não gosta ou simplesmente não entende o futebol.
Nicholas, extremo, é o mais novo e Iñaki, ponta de lança, o mais idoso dos irmãos Williams que jogam na equipa principal de futebol sénior masculino do Athletic de Bilbao. É habitual Iñaki passar a bola para Nicholas marcar e, ainda mais frequentemente, Nicholas passa e Iñaki fatura.
Iñaki está a ficar velhote para jogador de futebol profissional e, por diversas razões, nunca saiu do Athletic de Bilbao. É mesmo o jogador que mais vezes seguidas jogou na principal divisão espanhola.
Já Nicholas, ainda novo, está no momento de dar o salto e fala-se na sua saída para os milhões dos melhores clubes da Premier League, a principal liga de futebol em Inglaterra. Perante a escolha, a única exigência que fez para voltar a assinar pelo Athletic é que “de forma alguma” o seu irmão mais velho seja transferido para outro clube.
Nicholas está prestes a trocar, ou pelo menos a adiar, milhões de euros para poder continuar a ter o prazer de jogar futebol com o seu irmão no clube de ambos. A história pessoal dos irmãos Williams deixa vislumbrar que as razões para esta exigência de proteção familiar seja mais profunda e com génese a milhares de quilómetros de distância, mas, para o compreender na totalidade terá de ler o artigo do Público.
Os irmãos Williams, nitidamente africanos e orgulhosamente oriundos do Gana, a jogar no Athletic… Esta é, na realidade, uma história de heroísmo e superação, também no feminino, que vale a pena ler. Demorou, mas agora sou fã dos irmãos Williams.
A única coisa que vou aqui desvendar é que Iñaki joga pela seleção de futebol nacional do Gana e o irmão, como já referi, joga por Espanha. Se tudo lhes correr bem, nos quartos de final do campeonato do Mundo de Futebol que aí vem, os irmãos irão jogar um contra o outro num jogo oficial pela primeira vez.
Eu posso não saber o que farei até lá, nem o que farei no dia depois disso. Nesse dia em particular, seja lá quando for, poder-me-ão facilmente encontrar “colado” em frente a um ecrã de televisão. De previsível lágrima no canto do olho, lá estarei, paradoxalmente, torcendo pelos irmãos Williams.
Neste caso, passar de uma atividade inútil a uma história de superação estava à distância da minha própria atenção. Quantas vezes isso me terá acontecido? Nesta sociedade obcecada com a velocidade, a aceleração, a eficiência e a eficácia, quantas histórias edificantes ficarão por contar? Sinto que é cada vez mais importante desacelerar e, em vez de apenas olhar, há que ver atentamente a beleza do mundo.

* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Artigo de opinião escrito a título pessoal. As informações aqui transmitidas podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Crónicas do Voo do Cagarro - 35: A arte de cozinhar atum

Rabilo meio cozinhado. 
Foto: F. Cardigos

Não faço ideia como se cozinha bem. Sou um utilizador muito avançado de uma arte da qual apenas conheço os rudimentos. A minha sensação em relação à gastronomia é a mesma que tenho ao ser confrontado com a pintura realista do século XVIII. Compreendo a complexidade de reproduzir com rigor a paisagem, mas não faço ideia qual o treino e as técnicas utilizadas. Consigo, como todos, verificar se o pintado corresponde à realidade, mas há um hiato no processo sobre o qual não me posso pronunciar porque não tenho o conhecimento.
O mesmo acontece em relação à comida. Sei o que me sabe bem e consigo descrevê-lo com alguma precisão e muita paixão, mas não faço ideia do que aconteceu até ter aterrado no meu prato. Atenção, não sou inapto! Consigo cozinhar tudo aquilo que é necessário para ter uma alimentação saudável baseada na dieta mediterrânica. Mas, é tudo. Quando me falam em molhos “isto”, refugados “não sei o quê” ou demolhar… diluo-me noutros pensamentos…
Aquilo que perco na arte da conceção, não me belisca na nobre arte tão portuguesa de mal dizer o que estiver a deglutir. Criticar e elogiar! Aliás, prefiro mil vezes elogiar, até porque significa que estou contente com o repasto. Já aqui escrevi alguns artigos que passam pela gastronomia, tendo um sido mesmo totalmente dedicado à doçaria portuguesa, a melhor do mundo!
Num destes dias, num jantar com colegas, arrisquei tudo e, em pleno Luxemburgo, pedi rabilo meio cozinhado. Sabia que era um passo corajoso já que é muito fácil cozinhar mal o atum. Estando no Luxemburgo, um país não muito conhecido pelas suas pescas oceânicas (não tem) ou pelo peixe fresco, a probabilidade de chegar ao meu prato um peixe seco e sobre-cozinhado era elevada. Por outro lado, confortava-me ter já estado neste restaurante e, com outros pratos, ter ficado agradavelmente surpreendido. No entanto, atum, um prato particularmente caro às pessoas de mar, o risco era mesmo elevado.
Quando o empregado anunciou a chegada do meu atum, imediatamente parti para uma sublime viagem com o aroma do atum grelhado acompanhado pelo molho de tomate inteiro que o acompanhava. Detive-me a olhar para o prato, lindo, imaginando que, a partir daí, apenas poderia ficar desiludido. O naco de atum estava rebordado pelo vermelho do acompanhamento, numa belíssima coerência de contrastes. O cheiro e a imagem eram simplesmente arrebatadores. A fasquia tinha subido para patamares inauditos. Que sabor poderia estar perto daquele cheiro? Que textura poderia acompanhar aquela imagem?
Peguei no garfo com as pontas dos dedos da minha mão esquerda, esforçando-me por manter a calma, tentando esconder dos meus colegas a minha evidente curiosidade, mesmo excitação. Espetei o lombo verificando como cedeu com alguma resistência inicial ao garfo. A superfície do atum baixou o suficiente para compreender que, por dentro, estaria com um cozinhado diferente do quase crestante exterior. Bom sinal.
Agarrei a faca com a minha mão direita. Desloquei-a para se posicionar perpendicularmente ao garfo, preparando um corte lento e sereno, mas seguro, que permitisse a separação em fatia com cerca de meio centímetro de espessura. Balancei a faca para a frente e para trás, registando, conforme o interior se ia apresentando, como o crestante se transformava em cozinhado e, depois, no quase cru interior. Magnífico.
Os meus olhos cresceram perante o espetáculo que tinha pela frente. Acabei de separar o primeiro pedaço e levei-o à boca. Comecei a mastigar sentido perfeitamente o que acabava de ver, apenas polvilhado por um pouco de sal que, ali, pousava com natural complemento. Ah… tão bom, mas tão bom…
Lutei para comer devagar, esmerei-me para dar alguma atenção aos meus colegas e esforcei-me tentar apreciar o vinho que não estava mal… A certo ponto, pensei para mim próprio que será esta uma das refeições que estará certamente disponível no paraíso, se paraíso houver.
Voltei à terra o tempo suficiente para me persuadir que tinha de fazer uma qualquer observação aos meus colegas ou eles pensariam que estava em transe. Mentalizei-me para dizer alguma coisa entre cada garfada e de boca vazia, claro (há um mínimo de educação, mesmo perante uma refeição divinal).
Acalmei-me. Pensei em gestos e frases que me pudessem libertar do prato e levantar o olhar para os restantes convivas. Considerei adequado dissertar um pouco sobre a recuperação do manancial de rabilo, uma ação de gestão visionária e consequente por parte de todos os envolvidos. Depois falaria sobre as armações para a captura de tunídeos existentes no Sul de Portugal e Espanha e sobre as diferenças na sua utilização no passado e no presente. Pareceu-me bem falar sobre o impacto potencial da sobre-utilização de dispositivos de agregação de pescado no Atlântico Central para a pesca do atum na Macaronésia. Se houvesse oportunidade, exibiria orgulhosamente a fotografia subaquática de um enorme rabilo que tirei no Canal Faial-Pico... Raios…! Só pensei em falar sobre atum…
Estava possesso, mas soube muito bem!
Este inesperado repasto de atum, apesar de fenomenal, não foi o meu melhor de sempre. O meu melhor atum de sempre foi-me servido num restaurante que existiu brevemente no interior da ilha de Santa Maria. Aí, um atum polvilhado em pimenta semi-moída fez vibrar todas as minhas glândulas gustativas de uma forma que ainda habita os meus melhores sonhos.
Ah, é tão bom comer bem...

*Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Artigo de opinião escrito a título pessoal. As informações aqui transmitidas podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.