quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 87: Três vivas pelo Parque Marinho dos Açores!

 
Lírios no Parque Marinho dos Açores.
Foto: F Cardigos

Desde que isso é possível, e já é possível há muitos anos, recebo diariamente um aviso sempre que na comunicação social internacional escrita são publicadas as palavras “sea”, “marine” ou “ocean” em conjunto com a palavra “Azores”. Para além de obter uma seleção das notícias que sobrevivem à distância, o que deve ter uma relação com a sua relevância, tem a enorme vantagem de me permitir facilmente compreender o que se passa no Mar dos Açores que tem impacto lá fora.

As notícias chegam-me por esta via oriundas da América do Norte, do Reino-Unido ou de qualquer outro ponto em que se comunique em língua inglesa. O filtro e a seleção permitem-me ter acesso a notícias muito precisas. Por exemplo, foi através deste sistema que fui informado sobre um artigo científico em que se descreviam novas marcas com transmissão via satélite para tartarugas e que permitirão clarificar o papel dos Açores no ciclo biológico destes animais pré-históricos.

Penso, mas estou a falar de memória, o evento que mais registos gerou foi a tempestade “Lorenzo” que destruiu o porto das Lajes das Flores em 2019. Esta era a realidade até à semana passada. Agora essa realidade mudou.

Sob proposta do Governo Regional na sequência de um trabalho de longo prazo realizado pela Universidade dos Açores e, mais recentemente, catalisado pelo projecto Blue Azores, a Assembleia Legislativa aprovou a classificação de 30% do Mar dos Açores como área protegida. Incluídos nestes 30%, metade terão acesso restrito e extração zero. A aprovação desta ampliação tornou-se, sem dúvida, no mais citado evento da história recente do Mar dos Açores.

De acordo com a Agência Europeia para o Ambiente, “a conservação das zonas costeiras e marinhas é importante para manter a biodiversidade e assegurar o pleno funcionamento dos ecossistemas e dos seus serviços. As áreas marinhas protegidas desempenham um papel fundamental na conservação dos ecossistemas costeiros e marinhos, proporcionando benefícios económicos e sociais significativos e apoiando os meios de subsistência locais.

Criado a 11 de Novembro de 2011, o Parque Marinho dos Açores tinha os mesmos objectivos gerais que hoje, mas a sua dimensão dentro da sub-área regional da Zona Económica Exclusiva de Portugal ainda não tinha expressão significativa. A partir da semana passada isso mudou e, espero eu, para sempre.

O actual Secretário Regional com o pelouro do Mar, o meu amigo Mário Rui Pinho, está naturalmente de parabéns. Saliento, com confiança, que lhe cabe evitar que estas novas áreas protegidas se tornem naquilo que ele próprio nomeou como “O Mar de Papel”. Num artigo publicado na Revista Mundo Submerso há precisamente 20 anos, o agora político e o seu co-autor referiam o perigo de classificar áreas marinhas que não tivessem uma tradução efetiva dos objectivos para que foram criadas no mundo real. Ou seja, se é para proteger, agora há que proteger efetivamente. Tenho a certeza que vai correr bem.

Como se refere na plataforma de media para o desenvolvimento Devdiscourse da Índia, “Abrangendo cerca de 300 mil quilómetros quadrados, esta iniciativa visa cumprir os objectivos da ONU para 2030, preservando os diversos ecossistemas subaquáticos e restringindo as actividades de pesca e de turismo.” Há agora que dar forma às intenções. Com adequada implementação, a proteção destes locais poderá catapultar a riqueza nos sítios explorados numa sinergia exemplar e para a qual o mundo olha com atenção e entusiasmo. Apenas para nomear alguns órgãos de comunicação social em que esta decisão foi referida, destaco a Reuters (a partir de Lisboa), a BBC (Londres), a Euronews (Bruxelas), a National Geographic (EUA), Cyprus Mail (Chipre), Royal Gazette (Bermudas), a Swissinfo (Suíça), Taiwan News, China Daily e sítios internet mais especializados como o Divernet e o DeeperBlue.

Portanto, o Mar dos Açores ficou mais protegido, com isso será mais eficaz a cumprir todos os seus serviços ambientais e, como consequência inesperada, tornou-se num farol que levou o bom nome dos Açores aos quatro cantos deste nosso planeta com uma mensagem de esperança e alento no que diz respeito à proteção e uso sustentável do Oceano. Três vivas para o Parque Marinho dos Açores!



* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 86: Peixe-rei e rainhas em tempos incertos

 

Peixe-rei limpa boga.
Foto: F Cardigos

Num estudo liderado por um cientista português em colaboração com colegas da Alemanha, Estados Unidos da América, Hungria, Itália e Suíça foi explorada a dinâmica de caça coletiva entre polvos e diversas espécies de peixes. O trabalho foi recentemente publicado numa revista do grupo Nature e é intitulado "Multidimensional social influence drives leadership and composition-dependent success in octopus-fish hunting groups". Nele examina-se como a complexidade social multidimensional influencia a liderança e o sucesso do grupo. Através de técnicas de rastreamento tridimensional no mar e em experiências controladas, os investigadores descobriram que estes grupos apresentam dinâmicas funcionais complexas e propriedades dependentes da composição específica dos membros. A influência social é distribuída de forma hierárquica em múltiplas escalas, reflectindo as respetivas especializações: o polvo decide “se” e “quando” o grupo se desloca e os peixes lideram a exploração do meio, decidindo “para onde” o grupo se move. É um trabalho muito interessante e é acompanhado por vídeos ilustrativos. Vale a pena espreitar.

Ao ler o artigo não pude deixar de pensar em organismos marinhos que se especializam na cooperação. Por exemplo, os peixes-piloto e as rémoras que acompanham os tubarões e as jamantas num bailado de aparente eterna sincronia.

No entanto, os que mais me fascinam, até porque são muito simples de observar, são os peixes-rei e as rainhas. São duas espécies diferentes que se ocupam a limpar outros peixes de parasitas externos. Aqui, neste mar dos Açores, a vassalagem é prestada por suas altezas que, desta forma, obtêm uma refeição gratuita. Os outros peixes, aqueles que são limpos, livram-se de incómodos parasitas.

Não se pense por um instante que a aristocracia piscícola rouba os parasitas. Nada disso. Como poderá observar facilmente, os peixes que são limpos entram em algo que parece hipnotismo, letargia ou levitação, parando na coluna de água com as barbatanas bem esticadas permitindo assim que o trabalho fique bem feito. Quero vincar, portanto, que não é apenas oportunismo por parte da aqua-nobreza, é mesmo cooperação de que resultam dois beneficiários. Esta é apenas uma das milhares de histórias de que pode usufruir quem se atrever a meter a cabeça debaixo de água nos Açores. É simples.

Infelizmente, tudo isto está em risco. Como pudemos observar nestas últimas semanas, muitos meros têm morrido de algo que os cientistas do DOP/Okeanos tendem a relacionar com as alterações climáticas. De facto, mergulhei no Corvo este Verão e a água estava notoriamente quente, como nunca tinha sentido nos Açores.

Enquanto sociedade, andámos demasiado tempo a fingir que as alterações climáticas não existiam. Quando estas se tornaram evidentes, enquanto sociedade, tentámos inventar que não era culpa dos humanos. Agora, os meros começam a aparecer à superfície do mar, como bolhas numa panela de água a ferver, passe o exagero.

Nós, os seres humanos, temos uma responsabilidade significativa na intensificação das alterações climáticas porque atividades como a queima de combustíveis fósseis e a desflorestação contribuem para o aquecimento global. As consequências dessas alterações incluem o aumento do nível do mar, a intensificação de fenómenos meteorológicos extremos, como tempestades e secas, e a perda de biodiversidade, que podem ter impactos devastadores nas sociedades humanas e nos ecossistemas.

Que desculpa iremos inventar a seguir?! Era mais simples e mais eficaz agir. Cada um de nós, seja por ações, por sensibilização ou como lhe parecer bem, agir. Entre outras ações, é preciso escolher melhor, optando sempre por soluções que pressionem menos a natureza planetária, e compensar ambientalmente as inevitáveis viagens de avião. Os nossos filhos e netos merecem ter a oportunidade de ficar fascinados com a natureza que nos envolve. Nós não temos o direito de, por inacção, lhes estragar o futuro.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 85: Soluções para Oceanos Sustentáveis

Callum Roberts é um daqueles cientistas que qualquer biólogo marinho conhece pelo menos pela fama e prestígio. Recentemente, este cientista liderou um estudo que culminou na publicação na npj Ocean Sustainability, parte do grupo Nature, de um artigo intitulado "Rethinking sustainability of marine fisheries for a fast-changing planet". O estudo foi conduzido por uma equipa internacional de cientistas com contribuições de várias especialidades, instituições e países. Um desses cientistas, o Telmo Morato, está vinculado ao DOP/Okeanos e vive no Faial.

A publicação argumenta que muitos produtos do mar comercializados como "sustentáveis" na verdade não o são. Os autores defendem que são necessários padrões de sustentabilidade mais rigorosos para responder a um mundo em rápida mudança e apoiar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. As futuras pescarias devem operar com base em princípios que minimizem os impactos na vida marinha, se adaptem às mudanças climáticas e permitam a recuperação da biodiversidade, ao mesmo tempo em que apoiam e melhoram a saúde, o bem-estar e a resiliência dos cidadãos e das suas comunidades. O estudo destaca a importância crítica dos oceanos saudáveis para a natureza, o bem-estar humano e a estabilidade planetária, sublinhando que a vida marinha, incluindo as espécies exploradas, é essencial para a saúde dos oceanos.

No entanto, de acordo com as conclusões desta equipa científica de primeira linha, a maioria dos países não está a cumprir as metas do Acordo de Paris e outros compromissos globais relacionados com a proteção ambiental e dos oceanos. Por isso, os autores propõem uma visão para o futuro da exploração oceânica, onde as pescarias são geridas como sistemas socio-ecológicos que reconhecem e respeitam os valores da boa relação entre os humanos e a natureza. Os cientistas apresentam dois princípios centrais e um conjunto de ações-chave para transformar as pescarias para o futuro, incluindo a minimização do dano ambiental, a promoção da recuperação da vida marinha e dos habitats e a adaptação às alterações climáticas.

Em paralelo, e num outro estudo com uma equipe e base completamente diferentes, concluiu-se que o planeta Terra pode estar prestes a ultrapassar sete dos nove limites planetários. O limite que está agora num limiar crítico é a acidificação dos oceanos. A acidificação dos oceanos é o efeito que resulta da absorção de dióxido de carbono da atmosfera. Este efeito prejudica diretamente todos os organismos com concha ou carapaça e, indiretamente, ameaça os ecossistemas marinhos e a sua habitabilidade global.

Entre os nove limites planetários, já foram claramente ultrapassados seis, incluindo alterações climáticas, novos poluentes, biodiversidade e alteração dos fluxos biogeoquímicos. No relatório, o Instituto de Pesquisa de Impacto Climático de Potsdam destaca que os nove limites planetários estão inter-relacionados e que as perturbações humanas infligidas ao ambiente global não podem ser tratadas isoladamente.

Tanto o primeiro estudo como o segundo, apontam para um mesmo cenário global e para a mesma solução: tratar melhor os oceanos. É imperativo agir. Se não soubermos como agir ou se não estiver ao nosso alcance fazê-lo, podemos sempre apoiar aqueles que sabem e podem atuar. Como cidadãos, ao privilegiarmos opções ambientalmente adequadas, mesmo que isso nos custe mais dinheiro ou esforço, estamos a contribuir para criar um mundo melhor.

Sozinhos pouco podemos fazer, mas uma ação conjunta pode fazer autênticos milagres. Que o diga o buraco do Ozono. A humanidade quis e ele está a desaparecer! Há soluções, mas elas têm que ser implementadas.

* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Mar, sempre o Mar...

Estas férias “inventei” uma geringonça. Trata-se de uma pequena câmara de vídeo 4K subaquática, amarrada com fita-cola a um peso de mergulho e com um micro flutuador de sinalização. Em homenagem aos nossos cientistas marinhos, batizei o dispositivo com o nome de HomeLander. Pomposo! 

O processo de utilização é muito simples. No princípio de um qualquer mergulho em apneia ou com escafandro autónomo inicia-se a gravação e abandona-se a câmara pelo fundo. No final do mergulho, recolhe-se o equipamento e, depois de devidamente adoçado e já em casa, liga-se a câmara à televisão e verifica-se a gravação. 

Começo com esta experiência pessoal para passar aos verdadeiros cientistas, mais em particular os biólogos-marinhos portugueses. Estes cientistas vão conquistando conhecimento e reconhecimento. Disso fui duplamente testemunha nos últimos dias. 

Primeiro, apanhado de surpresa, vi os meus antigos colegas investigadores da Universidade dos Açores a aparecerem numa novíssima série produzida por James Cameron, o “OceanXplorer”. Está disponível na Disney+. Aí, os biólogos-marinhos portugueses entram em sinergia com a expedição internacional no desvendar de alguns dos segredos escondidos nos fundos marinhos do arquipélago açoriano. Entre aventuras e emoção, a conclusão é que... Eh, eh... Não serei eu a desvendar. Nada como ver! 

Mais recentemente, em Copenhaga, tive oportunidade de participar na Conferência conjunta das sociedades mundial e europeia de aquacultura, “Aqua 2024”. Lá, os biólogosmarinhos de Portugal apresentaram dezenas de trabalhos científicos e técnicos que, com os especialistas em aquacultura de 103 países, ajudam a desbravar conhecimento útil para esta atividade emergente. Ao contrário do resto do mundo, a aquacultura da União Europeia insiste em não descolar e, portanto, toda a ajuda é relevante. 

Lendo a comunicação social séria da bolha de Bruxelas, verifico que se prepara um enorme investimento numa nova tipologia de aquacultura em Portugal. A investidores nacionais juntam-se empresários israelitas e, no final, o potencial é aumentar a produção do nosso país em cerca de 50%. Na plataforma que servirá de base às jaulas, pode ainda ler-se na notícia, poderão viver e trabalhar entre 6 e 20 pessoas em permanência. Enorme! 

Olhando para os números modestos da produção aquícola na Bélgica, compreendo que há aqui também um potencial caminho a percorrer. Quem sabe, estes investimentos que se preparam em Portugal não poderão ter ecos na Bélgica... Haja interesse expresso e a Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa, cumprindo o seu desígnio e propósito, poderá rapidamente montar umas Rotas da Economia Azul dedicadas a este tema. Interessante? 

As minhas férias terminaram. Sento-me na sala de casa após mais um dia de trabalho. Ligo a pen USB que contém os vídeos que fiz na ilha do Corvo (Açores-Portugal) durante o Verão. Fico a olhar todos aqueles peixes, algas e outros organismos que vão passeando à frente da HomeLander. Depois da excitação inicial, hipnotizado, vou-me deixando cair num torpor que se transforma em sonhos de água salgada... Saudades de mar...


* Frederico Cardigos é vice-presidente da Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa e é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 84: Com os Bandarra

 

Em Bruxelas, no dia 14 de setembro à noite, ligo-me ao Youtube e revejo todos os vídeos que encontro dos Bandarra. Tento imaginar-me no Teatro Faialense. Pietá (voz), Cláudia (voz), Fausto (guitarra), Gira (baixo), Chris (guitarra), Batata (bateria) e a restante malta que acompanha os Bandarra cantam, tocam saltam, transmitem boa disposição, divertimento e tudo misturado em letras que nos fazem pensar.

A 4 mil quilómetros de distância, amigos simpáticos e atenciosos mandam-me um pequeno clip pirateado na sala de concertos. Não há dúvida, os Bandarra estão em plena forma.

Sempre me recusei ser tomado pelo tornado de saudades que sinto pelos Açores. No entanto, nestes dias em que se sabe que irá acontecer algo histórico, a nostalgia aperta mais. Gostava de estar aí, pá! O gin do “Peter”, os nacos no “Canto da Doca”, o Jardim Botânico, o Vulcão dos Capelinhos e o seu Centro de Interpretação, a Caldeira e os seus mistérios, o Norte do fim do mundo, o peixe no restaurante do Sr. Genuíno nas noites de temporal, a Praia de Porto Pim e a Praia do Almoxarife, mas essencialmente os amigos… “Vamos à Praia”? Vamos à praia!

Continuo a ouvir os Bandarra, caso não se note, e vou-me baralhando nas palavras das suas músicas. Pelo meio, penso ter ouvido falar em seis garajaus embriagados e pergunto-me por que não sete? Quantos são os Bandarra? Ah, claro.

Acho que esgotei as músicas que estão no Youtube, ou então sou inapto e não encontro mais. Viro-me para o Spotify, Bandcamp e Vimeo. Olho para o “Zé” e tento ter tino, enquanto vou andando, cantarolando e dançando...

A última vez que estive no Faial para ficar foi no rescaldo de mais uma “Xula da Caça”. Estando no Inverno, acabei por ser apanhado no “Tango da Neblina”. Mas o Sol não ficou para trás, o nevoeiro foi de pouca dura, o avião veio e regressei à labuta no meio da Europa.

O tempo passa e “Mais ou Menos Minuto” terei o mar todo às costas, mesmo que apenas em vívida recordação. Passeios de barco à vela ao nascer do Sol, nadar por entre águas-vivas, ver cachalotes e golfinhos, wind-surf, mergulhos…

Lembro-me de chegar às piscinas naturais do Varadouro, naquele dia em que as coisas não tinham corrido bem, de tirar a t-shirt, saltar e… grande trambolhão! Eh, eh… Ninfa Maria, vem cá abaixo! Nada como a água salgada para meter uma pitada de humor e relativizar as aparentes desgraças. “Re-Vira-Volta!” Ala bailar a “Valsa da Carroça”! No Faial a linguiça, no Pico o bagaço… e segue a dança.

Quando recordo o Mar dos Açores, inevitavelmente, sinto-me um homenzarrão. Aprendo, cresço e engrandeço em sonhos de ilha Azul. Não me rendo! Tudo isto dá-me energia para enfrentar todas as tolices com que alguma humanidade nos bafeja. Sinto-me uma obra do divino, em terra não tenho rival, sou o dono do destino e o mundo que aguente esta altivez! Ao contrário da música, não preciso de mais. Não vale a pena penar, nesta vida tão pequena. Preciso apenas de, volta e meia, submergir no silêncio barulhento do debaixo de água, com os peixes a passar e aquele polvo a espreitar…

Estou quase de “Saída”, encanado pelo vento. Nessa terra em que há tempo para gastar. Quero ir à ilha para ver o que ela tem. Quero ficar mais um dia. Quero os quatro tempos desse dia…

“Não és dos Nossos”, gritam da máquina musical, mas eu sei que não é verdade. Serei sempre. Não há hipótese. Mesmo que não quisesse. É mais forte que eu e mais forte que tudo. E é muito isso, os Bandarra são um belo e harmonioso hino à amizade, à felicidade e ao Faial. Bem hajam!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 83: Como aumentar o sucesso nos Jogos Olímpicos?

Sendo um entusiasta de estatísticas e do espírito olímpico, os jogos de Paris 2024 foram uma boa justificação para “brincar” com números. No movimento olímpico, as medalhas são a expressão visível do sucesso de cada desportista e de cada país. Por esta perspetiva, os atletas dos Estados Unidos da América e da China são os que mais se destacam. Essa é uma perspetiva honesta, mas redutora.

A China e os EUA são dos países mais populosos do mundo. Tendo maior número de seres humanos é natural que tenham também o maior número de medalhas. No entanto, como se comprova com o exemplo da Índia, o outro dos países mais populosos do mundo, o sucesso olímpico espelhado pelas medalhas não é apenas resultado da população. De outra forma, a Índia teria muitas medalhas e, em Tóquio 2020, teve apenas 7; muito pouco se comparada com a China, um país com população semelhante e que obteve 89 medalhas.

Ou seja, aparentemente, há outros fatores que determinam o sucesso medalhístico para além da população. Este não é um tema novo e já diversos autores se debruçaram e, com mais engenho que eu, certamente chegaram às melhores conclusões. Para esses estudiosos, o fator que mais contribui para o sucesso medalhístico para além da população é o produto interno bruto. Apesar de compreender as razões, resolvi continuar a brincar com os números e tirar as minhas conclusões.

Comecei por elencar um conjunto de fatores que gostaria que estivessem relacionados com este sucesso e outros que me pareciam poderem estar relacionados. São duas coisas diferentes: o que eu gostaria e o que me parecia... Por exemplo, eu gostaria que o sucesso nos jogos olímpicos estivesse relacionado com o sucesso escolar, com o índice de desenvolvimento humano e com o estado da democracia. Ao mesmo tempo, considerei que, possivelmente, o sucesso medalhístico poderia estar relacionado com o número de atletas que cada país apresenta na competição, com o já mencionado produto interno bruto e com o investimento nacional feito no desporto. Portanto, estas foram as minhas variáveis de base.

Para realizar os cálculos, recorri a um sistema de inteligência artificial. Pedi-lhe para ajustar uma equação polinomial ao número de medalhas por milhão de habitantes obtidas nos Jogos de Tóquio aos fatores acima mencionadas. Não usei os Jogos de Paris porque fiz o trabalho durante a competição e porque queria usar o resultado para comparar com esta última competição. Para simplificar, usei apenas as medalhas de ouro e apenas países em que todas as variáveis fossem conhecidas. Isto é uma limitação, já que nem todos os países têm disponíveis índices como o sucesso escolar (usei os testes PISA).

Portanto, muita conversa para dizer que me esforcei para obter algum resultado que fizesse sentido, mas este é assumidamente um trabalho amador. Quando cheguei ao final fiquei contente por duas razões. Primeiro, o índice de ajustamento da equação era elevado (r2=0,85) e, em segundo, havia fatores mais correlacionados e outros menos correlacionados com o sucesso medalhístico.

De acordo com os meus cálculos, o fator que mais se correlaciona com o sucesso nos Jogos Olímpicos é o índice de desenvolvimento humano. Seguem-se o investimento em desporto e o número de atletas em competição. Em sentido contrário, a educação, a democracia e o produto interno bruto parecem não ter influência assinalável no sucesso medalhístico, de acordo com os meus cálculos superficiais e amadores.

Para tirar a prova à minha equação feita com base nos Jogos de Tóquio, calculei os resultados para Paris. Entre os diferentes resultados, de acordo com a minha equação, os Estados Unidos teriam 39 medalhas de ouro (tiveram 40), a China teria 38 (40), o Japão 27 (20), a Austrália 17 (18) e Portugal 2 (1). Não estive muito longe. Não refiro os restantes resultados, mas apenas um dos piores. Trata-se da França. De acordo com a minha equação, a França deveria ter tido 55 medalhas de ouro e, na realidade, teve 16. Lá se foi a boa reputação da minha equação…

Concluindo, é certamente impossível obter uma equação que pré-determine o sucesso nos jogos olímpicos. No entanto, o aumento do índice de desenvolvimento humano, de acordo com os meus cálculos, e o aumento do produto interno bruto, de acordo com os cálculos de quem sabe realmente do assunto, parecem acompanhar o sucesso olímpico. Acima de tudo, foi divertido brincar com os números.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 82: O DOP conseguiu, novamente!

A mensagem era estranha: “O Faial tem 3 novas estrelas.”. Que significaria isto de… “3 novas estrelas”…? “Nova estrelas” é uma expressão que pode ser usada para classificar o sucesso de alguém ou para homenagear pessoas que nos tenham deixado. Tive um momento de palpitação e meio pânico, mas, ao mesmo tempo, confiante que não me dariam más notícias daquela maneira. Depois veio a tentativa de explicação: “Já viste?”… “Viste” o quê?! Começava a ser irritante… Parei com aquela história de mensagenszinhas para cá e para lá e liguei.

Conta lá o que se passa!”. Resposta: “Já saiu a série “OceanXplorer” com o pessoal do DOP. Está na Disney+.” O mundo quase parou, mas de uma forma perto de sublime. Os meus amigos do coração, o pessoal do DOP, os melhores cientistas marinhos do país, estão numa série de visibilidade mundial a mostrar o Mar dos Açores…! Que notícia absolutamente fantástica. “Ok, vou sair agora de Bruxelas para o Luxemburgo. Tens o tempo viagem, ou seja, cerca de duas horas, para me arranjar uma assinatura do Disney+ (mereço, certo?). Eu, assim que chegar, quero ver isso!

Dito e feito. Obrigado! Ao chegar ao Luxemburgo, comecei de imediato a ver os dois episódios que se passam nos Açores. Não vou dar detalhes porque não quero estragar nada a ninguém, mas vou ter de elevar as espectativas porque realmente são dois episódios extraordinários. Admito que tive todas as boas sensações humanas, desde me emocionar com certas partes, ficar exaltado com outras e, a todo o tempo, maravilhado com as descobertas e com as imagens. Tantas coisas que desconfiávamos (como dizem os cientistas: “hipóteses”), mas que não tínhamos tido oportunidade de comprovar… Ali estão! Maravilhoso, repito. Claro que há aqueles exageros típicos dos norte-americanos: “visto pela primeira vez” ou “nunca antes feito”… mas não os colegas do DOP. Eles estão perfeitos, quando o dizem é porque é mesmo. Seja… Oppsss… Não posso continuar esta frase sem estragar o efeito surpresa. Vou-me conter, vou-me conter…

No passado, o DOP, hoje oficialmente Okeanos, participou em episódios de séries documentais da BBC, ARTE, National Geographic, NHK e, em termos mais domésticos, mas importantes, em documentários da RTP e da SIC. Houve mesmo um conjunto de documentários, “Mar à Vista!”, produzido pelo José Serra da RTP-Açores em estreita colaboração com o DOP. O que o “OceanXplorer” traz de novo é o nível mundial de protagonismo dado aos “nossos” cientistas. O Rui Prieto, o Pedro Afonso e o Jorge Fontes estão fenomenais, não consigo deixar de enfatizar com estes adjetivos poderosos. Estão mesmo! E isso não quer dizer que… Oppsss… Lá ia eu outra vez… Não posso estragar contando demais.

Quando terminei de ver, troquei algumas mensagens com os meus sempre amigos e antigos colegas. Queria felicitá-los e deixar expresso o meu orgulho por partilhar este planeta com pessoas como eles.

No meio da conversa, enviaram-me uma ligação internet para uma notícia que saiu no dia 15 de Agosto e que me tinha escapado. Para minha boa surpresa, o Jorge Fontes ganhou mais um prémio de fotografia subaquática. Desta vez foi o primeiro prémio da competição de imagens para cientistas denominado BMC Ecology and Evolution and BMC Zoology. A foto premiada é absolutamente deslumbrante! No mesmo enquadramento está um tubarão-baleia de boca aberta, dezenas de atuns e centenas, possivelmente milhares, de outros pequenos peixes divididos em duas bolas de isco. É uma fotografia fabulosa!

No final dos episódios dedicados aos Açores, o narrador do documentário OceanXplorer diz algo sobre o privilégio que é poder mergulhar em águas pristinas e cheias de segredos por desvendar como é o Mar dos Açores. Há cerca de vinte anos, numa ação global do Greenpeace, as mesmas palavras foram ditas pela organização ambientalista sobre este pedaço de oceano que está pertinho das nossas ilhas. É bom que certas coisas não mudem. A espetacularidade do Mar dos Açores não mudou. A capacidade dos cientistas do DOP de nos maravilharem também não.

O DOP voltou a fazer das suas e isso é tão bom!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 81: 22 de julho de 2024


O dia mais quente de sempre.
Imagem: Climate Pulse

A Comissão Europeia mantém em permanência um programa de monitorização da temperatura global do ar e da água do mar disponível em linha. Este sistema, com nome oficial “C3S/ECMWF”, é, na realidade, mais conhecido por “Climate Pulse”.

Na página internet Climate Pulse podemos ver atualizações, quase em tempo real, das principais variáveis climáticas globais fornecidas pelo Serviço de Monitorização das Alterações Climáticas do Sistema Copernicus, uma parte do Programa Espacial da União Europeia. Tudo isto para enfatizar que é um sistema credível por ser baseado em ciência robusta e com extraordinários engenheiros na sua génese e manutenção.

O Climate Pulse disponibiliza a temperatura do ar e a temperatura do mar atuais e disponibiliza registos históricos desde 1940 para a atmosfera e desde 1979 para o oceano. Por exemplo, podemos verificar que a temperatura do ar no dia do Desembarque da Normandia (6 de junho de 1944) era, em média, 15,5ºC. Avancemos 80 anos e, para o mesmo dia de 2024, a temperatura média do ar no nosso planeta ascendeu a 16,49ºC. Cerca de um grau de diferença. No dia 6 de junho de 1944 estivemos 0,32ºC abaixo da média e no mesmo dia em 2024 estivemos 0,67ºC acima da média.

Usando o mesmo sistema, no dia 22 de julho de 2024, a temperatura média do ar chegou aos 17,16ºC. De acordo com os dados disponíveis no Climate Pulse, esta foi a temperatura mais alta jamais registada na atmosfera do nosso planeta. Nesse dia, a anomalia em relação à média foi de 0,9ºC.

Tudo o que referi atrás é verificável na internet, no Climate Pulse, sem necessidade de registo ou de ter de aceder a sistemas complexos. Por exemplo, no dia em que fiz dez anos, dia em que viajei de avião das Flores para o Faial e o senhor comandante me convidou para ir ao cockpit (que bela prenda de anos!), a temperatura média da água do mar no planeta Terra era de 19,94ºC, ou seja 0,32ºC abaixo da média. Passadas dezenas de anos, no início de agosto de 2024 estamos 0,5ºC acima da média. A temperatura da água do mar é particularmente importante por diversas razões, incluindo por servir de reguladora da temperatura do ar.

Estamos mal, estamos a lidar mal com a necessidade de poluir menos, mas, digo eu, estamos a tempo de mudar. Coletivamente, há algo que pode ser feito, mas tem de ser feito depressa.

Nas conversas com amigos e conhecidos, realizo que, para a maioria, é impensável agir em termos sociais ou ambientais sem um qualquer retorno evidente e imediato. É estranho, até porque a sobrevivência dos nossos filhos e netos depende em muito do que fizermos agora. Mas, aparentemente, esse não é um retorno suficiente para justificar a ação. Em termos sociais, por exemplo, uma fotografia no instagram parece ser mais valiosa do que um ajudar abnegado e, como consequência de qualquer investimento em termos ambientais, a pergunta obrigatória é sempre “quanto estás a ganhar com isso?”. 

Será que tenho razão ou esta é apenas uma percepção errada da minha parte? Mais do que me dar resposta, o que, reconheço, é francamente inútil, penso que era importante que os responsáveis verificassem quais poderão ser os catalisadores da mudança individual e agissem em conformidade. É mesmo importante.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 80: A Volta e a Ilha

A Ilha do Corvo vista do Canal Flores-Corvo.
Foto: Sílvia Paradela

A sequência repete-se. Repete-se outra vez… A sequência repete-se uma e outra vez até se tornar aquilo que vulgarmente se chama ritual.

Todos os anos volto à ilha mais pequena, estaciono-me, leio, mergulho, converso, como bem, como os sabores da ilha e os novos sabores da ilha. Descanso, mato ou pelo menos atenuo as saudades e vou ao Caldeirão. Uns anos, atravesso até ao outro lado, para ver a “minha” derrocada, aquela que ajudei a registar cientificamente. Quando falamos e escrevemos muito sobre um facto passamos a ser meio proprietário dele, não é? Não é assim. Claro que não é assim, mas posso escrever, até porque o artigo é meu. Coisas de chefe de artigo.

Registo as pequenas mudanças. Num mergulho, aqui bem perto de casa, perco-me. Apetece-me rir de mim próprio. Que vergonha… Eh, eh… As referências, aquelas grandes pedras que marcam o fundo e clarificam o percurso, mudaram numa qualquer tempestade de inverno e pimbas! Perdidíssimo.

Registo as grandes mudanças. Os aerogeradores que crescem no meio da ilha, apelando ao fim do combustível fóssil e à entrada plena do Corvo no século da sustentabilidade. São grandes, mas não são enormes. São grandes e já me “cheiram” à energia limpa que irão produzir. Bravo!

Faço o circuito do Bordalo II. Constato que as três obras deste artista estão no mesmo local zelosamente à espera de quem ouse procurá-las.

Vou à missa, não por convicção, admito, mas fazendo companhia a quem quero bem. O Sr. Padre está bem disposto, projeta palavras sábias e irradia-me de bons pensamentos. Soube-me bem. No final da cerimónia vejo alguns dos mais idosos, sempre com sorrisos em caras tão amigas. Amizades antigas, forjadas pelo tempo. Penso que li isto algures e aplica-se aqui tão bem.

No mesmo dia, aprecio Bordalo II e deleito-me com a Igreja Católica Apostólica Romana. Quem diria…?

Debaixo de água, testo um equipamento que inventei durante os meus sonhos entre Bruxelas e o Luxemburgo. Trata-se de uma câmara de vídeo “amarrada” a um chumbo pesado. Resultou. As imagens obtidas são do agrado de todos.

Peço a um amigo e, com a família, damos uma volta à ilha. Ponta do Pesqueiro, costa Este, Moldinho, mergulho de mar no Moldinho, perseguido por peixes-porcos, Ponta do Marco, ilhéus, grutas, mais um mergulho de mar. Apanho umas algas lá do fundo, trago para o barco, cheiro e dou a cheirar. Fajã da Madeira, onde nunca houve uma árvore, mas essa é outra história e não cabe aqui. Espigão, ilhéus da Areia e ala para o Canal. Golfinhos esquivos e um barco de pesca. Um para-Sol de praia protege um pescador animado pelos gorazes que saltam para o porão e, em breve, partirão para Espanha. De 500 metros de profundidade no Canal entre as Flores e o Corvo para Espanha. O mestre está bem disposto. Oferece-nos uma bebida e ficamos ali a pairar com ele, dois barcos no meio do mar azul. Harmonia, paz, tranquilidade…

Regresso à ilha num ritual de rituais. Os rituais que irão preencher uma boa parte e uma parte boa dos meus sonhos no distante centro da Europa. E assim, a volta à ilha remata a volta à ilha.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

domingo, 30 de junho de 2024

Rotas da Economia Azul e as Alterações Climáticas

Nos últimos meses, com as mudanças resultantes das eleições nos governos de Portugal (já constituído) e da Bélgica (ainda por constituir) temos feito uma pausa involuntária na organização das Rotas da Economia Azul, um evento regular da Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa (detalhes aqui). A democracia é uma prioridade e, por isso, com naturalidade e mesmo agrado, aguardamos a instalação dos novos responsáveis. 

Isso não nos inibe de refletir sobre as tendências e prioridades que se oferecem com o correr do tempo. A primeira reflexão resulta de uma constatação. Mesmo com a justificação de ser um ano de El Niño, as temperaturas do ar e do mar estão anormalmente elevadas. No caso do mar, entre fevereiro e março, atingiu-se a temperatura média global de 21,09ºC, a mais alta jamais registada desde que em 1979 passou a haver dados reportados no Programa Copernicus. 

Se a perspetiva parece assustadora é porque ela é verdadeiramente assustadora. Não pode haver qualquer hesitação, principalmente quando se tomam decisões sobre o caminho a seguir. Há que substituir as energias fósseis, há que reduzir o consumo que resulte em emissões e há que racionalizar o investimento. O cenário é tão imperativo que ignorar ou protelar não são opções viáveis, se queremos deixar um planeta minimamente habitável para os nossos filhos e netos. Exige-se ação. 

Resulta das palavras anteriores que o apelo não é tendente à redução do investimento ou ao abrandamento da economia. Antes pelo contrário, a alteração é urgente e necessita do mercado a agir corretamente. É aqui que a União Europeia pode continuar a cumprir um serviço extraordinário. Tal como a inspiração dos anos setenta e oitenta resultou na criação dos instrumentos legais e financeiros adequados à redução da poluição e à conservação da natureza (apenas a título de exemplo: a Diretiva das emissões industriais, a Diretiva sobre substâncias e preparações perigosas, a Diretiva-Quadro da água, as Diretivas aves e habitats e o Fundo LIFE) e, mais recentemente, todo o pacote legislativo e de apoio que resultou do Pacto Ecológico Europeu. Na Europa faz-se legislação que, muitas vezes, inspira os caminhos que outros seguem (a esse título, aconselho a leitura do “The Brussels Effect” de Anu Bradford). 

O Mar Europeu pode ajudar a cumprir a fase seguinte, a da ação. Mais do que criar estímulos, embora estes também sejam importantes, há que retirar barreiras aos investimentos que sejam claramente adequados do ponto de vista ambiental e agilizar os processos de licenciamento. Por exemplo, a produção de algas em ambiente marinho deveria ser já uma ampla realidade. Se queremos retirar Carbono da atmosfera e criar alimento de altíssima qualidade, a produção de algas é uma solução facilmente escalável e sem impactos colaterais evidentes. Não há muitas soluções que possam, em simultâneo, produzir riqueza, reduzir a quantidade de Carbono na atmosfera e aumentar a segurança alimentar. 

Com génese no Governo de Portugal, está a decorrer um leilão para a atribuição de licenças para a exploração eólica offshore. Do ponto de vista ambiental, trocar emissões por energia eólica parece uma solução também ganhadora. Evidentemente, como o Governo tem salientado, é preciso garantir que o resultado do leilão não se transforme numa fatura injusta para os cidadãos.

Na Bélgica, neste interregno entre o final da ação do anterior Governo e a nova tomada de posse, há, mesmo assim, muita atividade. Há projectos para uma ilha energética no Mar do Norte e projetos de construção de linhas de transporte de energia no mar. Está-se a preparar um leilão para novos parques eólicos a ser lançado no final do ano. Também se está a preparar um concurso para um projeto piloto de solar flutuante no mar! 

Para finalizar, enfatizo que seguimos com muita atenção o que está a ser feito pelas instituições europeias, pelos dois Governos, pela indústria e as posições tomadas pelas organizações de defesa do ambiente. Esperamos em breve estar em condições de avançar para a discussão entre todos numas novas Rotas da Economia Azul. Queremos contribuir para as soluções e sabemos que o Mar pode ajudar.


* Frederico Cardigos é vice-presidente da Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa e é biólogo marinho no Eurostat. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da União Europeia.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 79: No mundo maravilhoso das energias alternativas domésticas

Para muitos açorianos o que vou escrever a seguir pode não ser novidade. De facto, com os apoios do Governo Regional para dispositivos de produção de energias limpas, possivelmente já terão instalado estes equipamentos. Não era o meu caso até há pouco tempo e, portanto, aqui partilho a minha experiência na Bélgica.

Depois de pensar, acabei por adquirir um conjunto de painéis solares, um inversor e uma bateria. Para a decisão muito contribuíram as inúmeras conversas que tive com as dezenas de pessoas que me tentaram vender equipamentos desde que tornei pública a intenção. O mercado das energias alternativas está ao rubro e o empenho dos vendedores é muito relevante.

Na minha opinião, há dois grupos de razões para investir em energias alternativas, sendo estes o grupo das questões económicas e o grupo das questões ambientais. A primeira lição que aprendi enquanto conversava com os vendedores e estudava o investimento a realizar é que há três itens particularmente importantes na componente económica: o investimento financeiro nos equipamentos e na instalação, o preço de injeção na rede da energia gerada em excesso e o apoio ao investimento. Ou seja, o valor economizado pelo facto de estarmos a consumir a energia que geramos pode não ser suficiente para justificar o investimento. Poupar 5 ou 6 euros por dia na energia consumida, um dia típico no centro da Europa, resulta em cerca de 2 mil euros por ano. Isto é, pode não ser suficiente para cobrir a curto prazo investimentos que ultrapassam a dezena de milhar de euros. Para que isso aconteça é necessário que o excesso de produção seja aceite e bem pago pela rede.

Na Bélgica, a energia produzida é aceite pela companhia de eletricidade, mas a um décimo do preço de aquisição. Repetindo, é necessário injetar 10 vezes mais do que se consome da rede para começar a ter lucro. De acordo com a minha experiência destes dias como “magnata da energia limpa”, como me chamam os meus amigos em exasperação pelo meu entusiasmo, é fastidioso atingir estes níveis. Portanto, resulta daqui que a prioridade é comprar o mínimo à rede.

Para evitar comprar à rede, o melhor é ter uma bateria a acumular energia durante o dia para usar à noite, quando não há Sol. Há sistemas sofisticadíssimos, que analisam o preço da energia na rede ao segundo e injetam ou compram conforme as micro oscilações do mercado. Tive a oportunidade de ver o sistema a funcionar e é extraordinário. Parece um mercado de bolsa ao vivo. Infelizmente, para recorrer a este tipo de serviço é preciso pagar a uma empresa intermediária e os valores não estavam ao meu alcance. Pena. No entanto, parece-me ser esse o futuro.

Portanto, como expliquei, o meu sistema disponibiliza e acumula energia durante o dia (haja Sol!) e, durante a noite, disponibiliza a energia limpa anteriormente acumulada. Funciona bem, mas a minha experiência limita-se a umas quantas semanas e durante o Verão… Funcionará no inverno?

Como falei com muitas pessoas e todas interessadas em vender os seus equipamentos, é um pouco difícil ter a certeza do que irá acontecer. No entanto, fazendo uma súmula generosa, irei ter uma produção no pico do Inverno que se aproximará de metade das minhas necessidades. Portanto, nada terei para vender à rede e ainda terei de comprar metade da energia que irei necessitar. Claro que este cenário me deixa insatisfeito e tenho exteriorizado essa insatisfação.

Nestas iterações acabei por identificar que há um moinho de vento doméstico de marca francesa capaz de produzir 9kW. Para terem uma ideia, bastaria que este moinho funcionasse a 100% durante uma hora para cobrir as minhas necessidades diárias em energia no inverno. Acresce que o investimento necessário é ridiculamente baixo em comparação com o que já fiz até aqui. Há dois obstáculos, no entanto. Por um lado, a legislação não é clara quanto à possibilidade de o utilizar e, também muito importante, não sei qual o ruído que produz. Não quero substituir um tipo de poluição (emissões de CO2) por outro (poluição sonora). Não seria justo para mim e para os meus vizinhos. Há que estudar mais e falar com quem sabe. Felizmente, encontrei um especialista na temática que me diz que, até Setembro, irá ter uma resposta para me dar. Ele próprio irá usar os tempos livres para estudar e testar o sistema e depois dará notícias. Estou em pulgas!

Como aqui na Bélgica (Flandres) já não há apoios financeiros ao investimento em energias alternativas domésticas e o preço de injeção de energia na rede é baixo, o meu investimento é negativo do ponto de vista económico. Poderão perguntar, então porque o faço? A resposta é simples: eu quero contribuir para deixar um mundo melhor para os meus filhos. Este é um esforço financeiro que faço com agrado.

Vejo os meus vizinhos entusiasmados com as suas piscinas com balanço ambiental duvidoso e fico contente por saber que os kW que saem da minha casa entram ali ao lado, nas casas deles, gerando o equilíbrio necessário para que a minha rua seja ainda mais verde.

É isto e é necessário.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 78: Os Açores, as Regiões Ultraperiféricas e o Parlamento Europeu

 

A utilização do vocábulo "ultraperiferia” no contexto daquilo que é hoje a União Europeia foi proposta por Mota Amaral, então Presidente do Governo dos Açores, durante uma reunião da Conferência das Regiões Periféricas Marítimas da Europa (CRPM), em 1987. Pretendia-se encontrar um termo para designar um conjunto particular de regiões de Espanha, França e Portugal com características muito particulares. A importância e o sucesso foram imediatos e hoje as Regiões Ultraperiféricas (RUP) têm o seu estatuto definido no Tratado de Funcionamento da União Europeia.

De forma simplificada, no artigo 349º pode ler-se que dada a situação social e económica estrutural das RUP, agravada pelo grande afastamento, insularidade, pequena superfície, relevo e clima difíceis e pela sua dependência económica em relação a um pequeno número de produtos, fatores estes cuja persistência e conjugação prejudicam gravemente o seu desenvolvimento, as instituições europeias adotarão “medidas específicas”. Essas medidas incidem sobre as políticas aduaneira e comercial, a política fiscal, as zonas francas, as políticas nos domínios da agricultura e das pescas, as condições de aprovisionamento em matérias-primas e bens de consumo de primeira necessidade, os auxílios estatais e as condições de acesso aos fundos estruturais e aos programas horizontais da União.

Ou seja, é este estatuto que atribui significado jurídico europeu específico à Região Autónoma dos Açores (e restantes RUP), materializando-se, por exemplo, em financiamentos dedicados dentro do FEDER, do Fundo Social Europeu, do Fundo de Coesão e do Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola (FEOGA). Este estatuto permite também acesso agilizado noutros fundos, como Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), o Fundo Europeu para os Assuntos do Mar, Pescas e Aquicultura (FEAMPA), e incluindo os fundos competitivos, como é o caso do Programa LIFE.  Não é possível diminuir a relevância do estatuto de RUP.

Acontece que no último mandato, com o trágico falecimento do eurodeputado André Bradford, os Açores não tiveram qualquer representante autóctone. Valeu que outros eurodeputados (por exemplo, Isabel Estrada Carvalhais, Álvaro Amaro, Maria da Graça Carvalho, Manuel Pizarro, José Manuel Fernandes, Sandra Pereira e João Pimenta Lopes), os assessores do eurodeputado André Bradford que se mantiveram no Parlamento Europeu (Rogério Ferraz, Susana Mestre e Bruno Valério), a representação dos Açores em Bruxelas (João Lança), a representação da Federação Agrícola dos Açores em Bruxelas (Roberto Pacheco) e, nunca em último, o Comité das Regiões Europeu, liderado por Vasco Cordeiro, fizeram um trabalho exemplar. Sem minimizar a importância da representação direta, o facto é que os Açores não ficaram a perder na última legislatura. Eu testemunhei o empenho de todos e sinto-me grato. Evidentemente, caso pudéssemos ter contado com o saudoso André Bradford, ainda teríamos ultrapassado mais objetivos, mas, apesar de tudo, não correu mal.

Quase como um inesperado golpe de teatro, nestas eleições para o Parlamento Europeu foram eleitos diretamente três representantes oriundos dos Açores. São eles o até agora deputado regional André Franqueira Rodrigues, o até agora membro da Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia e colaborador deste jornal, Paulo Nascimento Cabral, e Ana Vasconcelos Martins. A estes três ainda se juntou a terceirense emigrada nos Países Baixos, Catarina Vieira. Desta forma, haverá quatro açorianos no Parlamento Europeu. A fileira das RUP é engrossada por mais seis eurodeputados oriundos de outros territórios ultraperiféricos (Madeira, Canárias, Reunião e Guadalupe). Haverá assim, pela primeira vez, um grupo de dez representantes destas regiões remotas da UE. Os grupos políticos Popular Europeus (PPE), Socialistas e Democratas (S&D), Liberais (Renew), Identidade e Democracia (ID), Verdes e Esquerda (The Left) terão membros das RUP nas suas fileiras.

Com esta extensa comitiva a exigir o bom uso do artigo 349 do TFUE, apenas posso agourar o melhor para os Açores e para a Madeira nos próximos cinco anos. Faço votos de excelente trabalho e irei seguir com enorme curiosidade e entusiasmo!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 77: Divagando sobre as eleições Europeias

Em dia de eleições para o Parlamento Europeu, dei por mim a tentar comparar as principais diferenças no processo eleitoral dos países da União. Há grandes contrastes, o que reforça o lema europeu “Unidos na diferença”.

Naturalmente, todos os países admitem o voto presencial, mas alguns acrescentam outras possibilidades como votar pelo correio, na embaixada ou consulado, por procuração ou por voto eletrónico. Apesar de muitos países terem voto eletrónico, como é o caso da Bélgica, apenas a Estónia permite votar à distância e antecipadamente com total liberdade. Desde 2005 que a Estónia permite este tipo de votação que, apesar da versatilidade, não é usado nos restantes países da União Europeia nestas eleições.

Há países em que se pode votar a partir do estrangeiro, a maioria, e outros países em que o voto apenas pode ser realizado no próprio território. Quatro países têm voto obrigatório. São eles a Bélgica, a Bulgária, a Grécia e o Luxemburgo.

A idade mínima para votar também é variável. Apesar de a maioria dos países apenas permitirem votar a partir dos 18 anos, há casos em que esse limite é os 17, Grécia, e mesmo os 16 anos, Alemanha, Áustria, Bélgica e Malta.

O método de seleção dos representantes para o Parlamento Europeu também muda muito de acordo com o país. Há países que têm limiares para a elegibilidade dos eleitos que variam entre 5%, 4%, 3%, 1,8% e o inexistente. Por exemplo, um partido que tenha menos de 5% não pode eleger deputados em nove países da União Europeia. Esse limiar não existe em Portugal e em outros 12 países.

Na Bélgica, Irlanda, Itália e Polónia há diversos círculos internos. Por exemplo, no caso da Bélgica o colégio flamengo elege 13 eurodeputados, o francófono elege 8 e o germanófono elege 1.

Há muitos países que têm voto preferencial. Ou seja, os cidadãos podem apontar precisamente quem desejam que os represente. Esta possibilidade tem diversas declinações. Por exemplo, na Bélgica a escolha preferencial é limitada à lista do partido escolhido enquanto no Luxemburgo pode-se optar por qualquer candidato de qualquer partido. O sistema mais complexo é o irlandês. Neste caso, hierarquizam-se as preferências e os votos são transferidos conforme a sequência de eleição. Ou seja, os votos não usados para a eleição do candidato número 1 passam para a segunda escolha expressa no boletim de voto e assim sucessivamente. São processos muito diferentes da lista fechada que usamos em Portugal.

Há países que aproveitam as eleições europeias para realizar outras eleições. É o caso da Bélgica. No Reino da Bélgica, ao mesmo tempo, decorrem as eleições nacionais e regionais. Apesar de ter sido apenas uma coincidência, na minha opinião, é uma boa opção. Em Portugal não fizemos assim. O resultado é que tivemos quatro eleições em momentos diferentes do mesmo ano (Europeias, República, Açores e Madeira). Na minha opinião, é um desperdício de tempo e recursos. Para além disso, caso as eleições fossem no mesmo dia, os impreterivelmente interessados numas eleições acabariam por votar num outro plebiscito. Isso, como sabemos, era particularmente importante para as eleições europeias, em que a mobilização costuma ser menos elevada. Outra vantagem em ter eleições no mesmo dia é que não há misturas nas intenções do votante e nas “interpretações” da sua vontade.

Uma das boas constatações destas eleições, no caso de Portugal, é que a introdução de facilidades informáticas tem sido apreciada pela generalidade dos eleitores. A possibilidade de votar antecipadamente e em mobilidade sem justificações ou burocracias é um óptimo passo. Excelente. Não quero minorar. Foi um bom passo. Mas, sem beliscar a boa iniciativa, é preciso mais. Temos de poder votar à distância, mesmo a partir de casa. Pagamos os impostos à distância, logo porque não votar à distância ou quando nos for mais conveniente? Implica mudar a lei eleitoral, como afirmou há poucos minutos o Sr. Presidente da República. Então, muda-se a lei eleitoral. Simples.


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 76: Fiabilidade da informação publicada

Por que é um tópico que me interessa, mas também por imperativo laboral, estou muito atento à fiabilidade dos instrumentos informativos que temos à nossa disposição. Depois de analisar a informação publicada de uma forma razoavelmente empírica cheguei a diversas conclusões que aqui partilho. Primeiro que tudo, uma advertência: Há livros bons e livros maus, páginas internet boas e más, etc. O que tento fazer a seguir é identificar tendências e generalidades.

Para fazer esta análise, ponho em evidência os seguintes vetores não hierarquizáveis: 1) Qualidade-base: uma publicação deve ser verdadeira e precisa e não deve conter erros (incluindo ortográficos); 2) Intencionalidade da publicação. A intenção da publicação deve ser inerte ou assumida; 3) Verificação. Uma publicação deve ser aferida por terceiros antes de ser partilhada; 4) Referências. Uma publicação deve identificar as fontes de suporte e inspiração e deve incluir toda a informação necessária para compreender e verificar a sua mensagem; 5) Rastreabilidade. Uma publicação deve conter as referências necessárias para outros a poderem citar e consultar a qualquer momento; 6) Compreensibilidade. Uma publicação deve ser inteligível; 7) Pontuação. Uma publicação deve ter uma forma de verificação da utilidade, sucesso ou qualidade; e 8) Atualidade. Uma publicação deve ser atual ou, pelo menos, ser situável no tempo.

A melhor informação está nos artigos científicos. Em todos os vectores anteriores, os artigos científicos pontuam o máximo, excepto na compreensibilidade e atualidade. A utilização de jargão da ciência que estiver em causa e a utilização do inglês podem afastar todos os não iniciados na temática. Por se basearem no método científico, que tem subjacente a experimentação, e na verificação por terceiros, muitas vezes os artigos científicos não têm a atualidade que a nossa sociedade exige. De resto, quando se quer aprender em profundidade um determinado tema, nada como ler uns quantos artigos científicos bem-sucedidos.

Para desmultiplicar a complexidade dos artigos científicos, colocando-os numa linguagem mais acessível e uma análise mais abrangente, encontramos os livros. Os livros, na generalidade, pontuam bem em todos os vetores excepto na atualidade e verificação. Não há nenhuma regra legal que obrigue um livro a ser verificado antes de publicado.

Os artigos de enciclopédia são boas alternativas aos livros já que, normalmente, explicam os trabalhos científicos em textos curtos e objetivos. Há enciclopédias atualizadas constantemente, como a Wikipédia, mas que têm o problema de o sistema de verificação ser informal ou inexistente. Outras enciclopédias mais escrutinadas, como a enciclopédia Britânica, têm a limitação de serem atualizadas apenas de quando em quando.

De seguida, nesta minha escala decrescente, temos os artigos de jornal e podcasts feitos por jornalistas. Neste nível, perdemos qualidades como a verificação e as referências.

Ainda no âmbito jornalístico, temos as notícias de televisão e de rádio. Estas são fontes de informação com enorme atualidade, mas carecem de tratamento especializado e profundidade de análise. Em relação aos instrumentos de transmissão de informação anteriores, tem a desvantagem adicional de não ser citável. Ou seja, nós não podemos justificar uma ação ou decisão com base numa notícia de televisão ou rádio.

A seguir, nesta escala, temos a informação que é coligida na internet recorrendo a ferramentas de pesquisa (Google, Bing e outras). A qualidade dos conteúdos encontrados é muito contrastada, mas, os resultados dos algoritmos, comparando com as ferramentas de inteligência artificial e as redes sociais, são mais robustos.

Depois, temos as ferramentas de inteligência artificial. A inteligência artificial tem, na minha opinião, apenas duas boas qualidades: intencionalidade e compreensibilidade. A intenção é assumidamente inerte e os textos não têm erros de ortografia em qualquer das línguas com que trabalho. O grande defeito é a falta de precisão. A inteligência artificial produz erros crassos descritos de forma convincente. As ferramentas de inteligência artificial são excelentes para trabalhos de revisão, mas ainda pouco úteis para a produção ou pesquisa de informação.

Na minha opinião, a pior forma para obter informação de qualidade são as redes sociais. Reiterando a ideia inicial, há certamente pessoas de bem e inteligentes a escrever nas redes sociais, mas, na generalidade, os textos são pouco precisos e a intencionalidade é duvidosa.

Para quem se interessa em saber mais sobre os diferentes temas, aqui ficou a minha abordagem. É esta a chave de fiabilidade que uso no meu dia a dia para aprender.

 

* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 75: A importância da solicitação na Inteligência Artificial

 

Resultado do pedido: "usando poucas cores e não incluindo água, desenhe dois cagarros".
Imagem: Hotpot Art Generator

Em jeito de preâmbulo, tenho de clarificar que sou um emocional defensor da cultura portuguesa. Por isso, sempre que confrontado com um novo termo em inglês, tento verificar qual a melhor correspondência para a língua de Camões e, se possível, utilizá-la. E assim nasceu esta “solicitação”…

Uma das ferramentas informáticas mais excitantes com que fomos confrontados nos últimos tempos é, sem dúvida, a inteligência artificial (IA). Mais precisamente, os Modelos de Linguagem de Grande Escala (do inglês, “Large Language Models” ou MLGE) usados nas ferramentas mais comuns de inteligência artificial, em que o ChatGPT da empresa OpenAI tem tido particular sucesso. Mas há muitas outras ferramentas de inteligência artificial baseadas em MLGE.

Por exemplo, o modelo que mais utilizo é o Nous Hermes Mixtral da Nous Research disponibilizado pela Comissão Europeia. De acordo com algumas métricas de avaliação (“benchmarks”, em inglês) é o modelo de código aberto mais poderoso. Há uma versão do Nous Hermes Mixtral gratuita e disponível para qualquer utilizador, mas realço que não é a ferramenta mais simples para iniciar a aproximação à IA.

Na realidade, conforme a utilização, há ferramentas de IA particularmente adaptadas. As mais sofisticadas são as relacionadas com a programação informática.

Para produzir imagens uso o Hotpot Art Generator que se baseia no ChatGPT. É muito básico, mas as imagens são úteis e, mediante pagamento, podem ser usadas livremente.

Por interesse profissional e pessoal, tenho feito algumas formações na área da inteligência artificial na óptica do utilizador. Nesta progressiva descoberta apercebi-me como é importante a prompt. Ou seja, como é relevante o pequeno texto que escrevemos para dar as instruções ou colocar as questões nas ferramentas de IA. Seja para obter uma informação, a correção de um texto ou gerar uma imagem, as instruções de entrada são fundamentais. Ao longo das formações, particularmente ao verificar o engenho de alguns exemplos dados por colegas desta aventura, noto que a prompt não é apenas conversa com o computador, é uma arte!

Mas, lá está, prompt é para as pessoas que falam inglês. Depois de procurar, cheguei a uma aproximação em português que me agradou: “solicitação”.

Tenho aprendido que a redação da solicitação deve ter diversos componentes em conta e aqui partilho. Primeiro que tudo, há que dar uma personalidade à ferramenta de IA.

A segunda componente é a claridade da pergunta. Um pedido confuso, difuso ou que utilize oposições resultará numa resposta inútil. Portanto, há que evitar escrever algo como “usando poucas cores e não incluindo água, desenhe dois cagarros”. Termos como “poucas”, “não” ou números fazem muitas ferramentas perder-se. Para experimentar, introduzi esta solicitação no Hotpot Art Generator e a imagem gerada é colorida, inclui água e um cagarro...

A terceira componente é ainda mais surpreendente que a primeira. Imagine-se que é relevante incluir uma componente emocional na solicitação. Usar expressões como “o futuro da humanidade depende desta resposta” parecem ter efeito na precisão do resultado. Também insistências como “tem a certeza?” ou “parece-me que pode fazer melhor” resultam. Mistérios dos MLGE…

Por último, uma boa solicitação raramente é produzida à primeira tentativa. Há que analisar o resultado e refinar a solicitação até que a resposta tenha a qualidade que pretendemos.

Atenção, as ferramentas de IA dão sempre resposta. Essa resposta pode estar totalmente errada ou ser mesmo alucinada (é um efeito descrito frequentemente). O controlo humano da qualidade da resposta é absolutamente essencial.

Depois de redigir este artigo, solicitei ao Nous Hermes Mixtral e ao ChatGPT: “Você é o redator principal do Jornal Tribuna das Ilhas e é considerado um dos melhores redatores de Portugal, tendo obtido vários prémios incluindo um Pulitzer. Tem agora de rever uma proposta de artigo e garantir que não tem erros e que é atraente para o público da Ilha do Faial (Açores). Por favor, faça as alterações que lhe pareçam adequadas tendo em consideração que de um bom artigo depende a sua reputação e o prestígio da comunicação social nos Açores”.

Usei os resultados para melhorar o texto. No entanto, até porque concordo, quero concluir com a mensagem final que o ChatGPT me enviou em conjunto com as sugestões de correção: “Espero que esta versão refinada do artigo esteja à altura das expectativas dos nossos leitores e mantenha o prestígio do Jornal Tribuna das Ilhas como um veículo de comunicação de referência nos Açores.”


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 74: Correndo por aí

Sem dúvida, as épocas da minha vida em que me senti mais saudável foram coincidentes com períodos de maior atividade física. Quando ainda jovem, lembro-me da prática de natação, mais tarde, já a viver no Faial, os jogos de futebol de cinco no torneio do INATEL integrando a saudosa equipa SuperDOP, e, desde que cheguei ao centro da Europa, a prática de corrida e os percursos citadinos em bicicleta. Sempre que intensifiquei a prática desportiva, senti-me melhor.

Todos os anos, também por positiva imposição da minha entidade empregadora, faço uma visita ao departamento de Saúde no Trabalho. A médica, uma senhora finlandesa que fala um bom português com sotaque brasileiro, informou-me que, caso queira viver saudável, tenho de manter e intensificar a atividade desportiva. Repliquei orgulhosamente dizendo que andava sempre de bicicleta, mas a senhora doutora não facilitou. “Tem e deve andar de bicicleta, tudo bem, mas assim, de pé, fazendo força até suar”, disse fazendo enérgicos movimentos com as mãos e bamboleando a cabeça de um lado para o outro. “Que canseira…”, pensei para com os meus botões. Externamente, numa superficial e desengonçada tradução do inglês duly noted, saiu-me um “devidamente registado, senhora doutora”.

A partir de então, as minhas idas e vindas do trabalho passaram a ser mais esforçadas. No entanto, sei bem que não é suficiente. A manutenção física, no meu caso, exige mais. Por isso, sempre que a força anímica o permite, visto uns calções, calço os sapatos de ténis e vou correr.

Sendo honesto, odeio correr. Aquela coisa de andar às voltas e a saltitar pé ante pé é uma canseira sem propósito útil imediato que me exaspera... Portanto, ao longo do tempo, fui aprimorando a metodologia para não ser tão desesperante. O primeiro passo foi compreender que é possível correr com auscultadores. Ao contrário do que acontecia “no meu tempo”, hoje há soluções de alta qualidade em termos sonoros e de ajuste ao ouvido. Com isto, entretenho as corridas com boa música ou informativos podcasts. Caso corresse durante horas, algo que nunca me aconteceu, tenho a certeza de que estes equipamentos estariam à altura.

O segundo passo foi adquirir um daqueles relógios que, para além de medirem o tempo, registam também as pulsações e os saltitos, deduzindo assim as distâncias percorridas e as calorias queimadas. Ao ter uma métrica quantitativa, os desafios pessoais vão-se acumulando e sinto um saudável ímpeto de ir fazendo mais e melhor.

Por último, a paisagem. Com a corrida, comecei a embrenhar-me nas florestas e noutros percursos pedestres da Bélgica e do Luxemburgo. Descobrem-se recantos magníficos e até já vi veados selvagens na Forêt des Soignes e em Fraiheetsbam! A mistura entre estar ofegante, o mistério do desconhecido e a descoberta constante fazem com que a corrida seja hoje, para mim, já não um pesadelo, mas sim um bom período. Ainda não cheguei ao ponto de gostar de correr, mas já estive muito mais longe.

Um dos objetivos em termos desportivos é, um dia, ter a forma física suficiente para correr uma prova desportiva. Por modo de ser pessoal, não concebo fazer uma prova desportiva em que não faça os mínimos para não ser embaraçante. Por essa razão, muito dificilmente alguma vez irei fazer um trail run; “isso é para os bons”, dizem insistentemente os meus botões. Uma prova mais modesta, quem sabe…

Apesar de colocar os trail run competitivos de lado, fazer os percursos equivalentes está também entre os meus objetivos. Ao meu ritmo e com todo o tempo do mundo, eu quero vir a deliciar-me com as vistas, com os cheiros e com os sabores menos acessíveis das ilhas do Triângulo dos Açores. Até lá, vou seguindo, no Tribuna das Ilhas e noutros meios de comunicação social, as fotografias, os vídeos e as descrições dos extraordinários seres humanos que enfrentam o desafio e conquistam os percursos. São verdadeiros heróis!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Crónicas do Voo do Cagarro - 73: Gastos energéticos em transportes

Num artigo anterior detive-me sobre os gastos energéticos em iluminação pública. Para quem não leu, o ponto central era a oportunidade de analisar cada pequeno aspecto dos gastos energéticos e tentar torná-lo melhor.

Hoje, neste artigo, irei escrever um pouco sobre a energia e os transportes. A mensagem essencial, para quem não quiser ler mais, é que são necessárias boas estratégias de alto nível (do Estado e das autarquias) para que a economia energética nos transportes seja uma realidade.

Os transportes públicos coletivos consomem menos energia que os transportes particulares, todos sabemos. Quando usamos o carro, estamos a provocar mais gastos energéticos do que se usarmos o comboio, o autocarro, o elétrico (“tram” em muitos países) ou o metropolitano. Também como consequência da energia consumida, o carro tem maior impacto ambiental.

Se assim é, por que não escolhemos por sistema utilizar os transportes públicos? O problema, na minha opinião, jaz na falta de oferta adequada em termos de disponibilidade (há muitos locais sem transportes públicos), em termos de acessibilidade (em muitos locais os transportes públicos são caros), em termos de segurança e em termos de conforto (os transportes públicos têm de ser asseados e pontuais).

Por princípio, apenas pode haver crescimento da oferta onde há procura. Este pode ser um entrave ao investimento, particularmente nas sociedades mais liberais, em que o orçamento de Estado está sob pressão. Não defendendo de todo o despesismo, tenho de assinalar que há experiências em que o risco do investimento nos transportes foi esbatido por uma massiva adesão.

O que não pode acontecer de todo é o transporte particular privado ser mais barato que o transporte público coletivo. Isso não faz qualquer sentido. Por exemplo, se eu viajar de carro entre Bruxelas e o Luxemburgo, o preço do combustível é significativamente menor que o preço do bilhete de comboio. Isso não pode acontecer. Se queremos tirar carros das ruas por causa dos danos ambientais oriundos da sua construção, por causa das emissões atmosféricas, e por causa dos microplásticos que resultam da erosão dos pneus a questão do custo é séria. Os transportes públicos têm que ser uma alternativa economicamente viável em relação ao transporte privado. Posto de outra forma, o transporte privado tem que “pagar” a sua pegada ambiental em termos de emissões e outros danos.

Extremando esta abordagem, há que considerar o transporte particular um luxo e taxá-lo enquanto tal, mas garantir que os transportes públicos têm todas as características que mencionei atrás. Com base em estudos de viabilidade económica e ambiental, as mais-valias da taxação do transporte particular poderão e deverão ser utilizadas nos transportes públicos.

No Luxemburgo é fantástico entrar num qualquer transporte público coletivo terrestre (autocarro, comboio ou tram). É asseado, pontual, seguro e… é grátis! Há, neste momento, outras experiências de gratuitidade nos transportes públicos, incluindo em Portugal, e o problema tem sido apenas o enorme sucesso.

Haja condições e haverá muitas pessoas a passar para os transportes públicos coletivos! Isso é muito importante para readquirirmos a qualidade ambiental de que necessitamos para continuar a viver no planeta Terra…


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.

 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Crónicas do Voo do Cagaro - 72: Crise energética: o caso da iluminação pública

Candeeiro público na cidade da Horta pelas 23:30.
 

Um dos desafios da nossa sociedade está relacionado com a produção e uso de energia. Essa, possivelmente, é a grande crise estrutural que ameaça em particular o nosso continente.

As restantes mega crises, como as crises climáticas, de biodiversidade, da transição digital, e outras, são crises que apenas podemos resolver integrados numa mudança universal e são comuns ao resto da humanidade (pelo menos à parte civilizada da mesma). Nesses outros casos, temos, portanto, aliados.

A crise energética é diferente. Perante a crise energética, a União Europeia está sozinha, tem as restantes geografias como ávidas fornecedoras e não produzimos o suficiente. Estamos dependentes de países terceiros do norte de África, da península Arábica, da América do Norte, da Noruega e da Rússia… Entre aliados e não-aliados, a nossa dependência é evidente. Portanto, estamos sozinhos e não podemos resolver a crise energética… Ou podemos?

Mais relevante do que remoer o que deveríamos ter feito no passado para nos termos libertado da dependência, é pertinente tentar planear um futuro melhor. Aprende-se com o passado, certamente, mas olha-se para a frente, enfrentando a tempestade, com o vento e a salmoura batendo na cara dos audazes!

Nesta perspetiva, penso que há três vetores essenciais e que se entrelaçam. Há que (1) aumentar a eficiência, (2) reduzir e alterar o consumo e (3) aumentar a produção alternativa de base local. Neste artigo vou-me focar em aspetos muito concretos da redução e alteração do consumo.

Como dizia um velho Índio, “não se usa o que não se tem”. Não temos energia, não usamos energia. Parece fácil até certo ponto... Nos países do norte da Europa, quando a temperatura desce abaixo dos zero graus, não há nada a fazer. É mesmo preciso consumir energia e muita energia.

No entanto, há passos relativamente simples e que não tiveram o eco social que deviam, na minha opinião. Por exemplo, há questões importantes e tão simples que chegam a ser revoltantes. Qual a razão para a iluminação pública se manter durante toda a noite? Na minha rua, tanto no Corvo, na Horta, em Lisboa, como em Bruxelas e no Luxemburgo, a iluminação permanece activa durante a noite. Para quê?! Estão a iluminar o caminho aos besouros?! Não seria muito mais simples haver sensores de movimento que ligavam a iluminação quando necessário? Há que criar incentivos governamentais e parcerias com empresas do sector privado para facilitar a implementação de novas abordagens. Por exemplo, realizar um concurso público em que o resultado fosse o pagamento de metade das economias energéticas geradas por privados na iluminação pública. Seria arrojado!

Nalguns casos, vá lá, pelo menos reduz-se o total de iluminação noturna. Os candeeiros públicos são colocados em modo de baixa iluminação a partir de certa hora e voltam a ser ligados antes da alvorada por uma ou duas horas. Menos mal. Mesmo assim, algumas pessoas argumentam, e bem, que a iluminação pública é também um factor de segurança e conforto. Concordo. Para resolver isso poderiam ser instalados interruptores remotos. Ou seja, no período nocturno, as luzes permaneciam desligadas e qualquer um poderia responsavelmente acender uma luz pública que lhe parecesse relevante em determinado momento através de um simples comando no telemóvel. Não seria certamente mais dispendioso do que manter as luzes ligadas a noite inteira…

Há ainda uma outra interessante ferramenta que é iluminar por antecipação de movimento. O que acontece neste caso é que as ruas estão iluminadas nos extremos e as restantes luzes ligam-se quando uma viatura aí entra. Como os carros circulam lentamente nas zonas urbanas, esta é uma estratégia que resulta em certas situações. Há que fazer as contas…

São tantas as estratégias e ferramentas quantas as situações de uso de energia. Basta olhar e pensar um pouco para encontrar estratégias de redução do uso. Neste artigo, limitei-me a mencionar a redução da iluminação pública. Falta tanto… Desde os transportes (públicos ou não), o planeamento, passando pela produção e tantos tipos de consumo. Por exemplo, o teletrabalho fará sentido? Haverá que promover ainda mais a eficiência energética dos edifícios? Incentivar exponencialmente as energias alternativas? Refazer o planeamento urbano para contar com as questões energéticas? Qual o papel da digitalização e da economia verde para promover a eficiência energética? Como implementar as chamadas “smart grids”? Como promover a mobilidade elétrica? E o mercado de Carbono e de energia renovável? Que fazer com a energia nuclear? No caso dos Açores, como aumentar a produção geotérmica em São Miguel e Terceira e como a iniciar no Faial, Pico e São Jorge?

Há que incentivar a participação e a consciencialização das comunidades locais, promovendo campanhas de educação e engajamento para as questões energéticas. Há que estimular a multilateralidade que quebre o isolamento europeu. Há que analisar e fazer muito melhor. Está ao nosso alcance!


* Frederico Cardigos é biólogo marinho no Eurostat. Este é um artigo de opinião pessoal. As ideias expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor e podem não coincidir com a posição oficial da Comissão Europeia.