sexta-feira, 26 de dezembro de 2003

A Lagosta

(Introdução)


A lagosta-castanha (Palinurus elephas) é uma das mais de 30 mil espécies de crustáceos descritas e uma das mais de 1 milhão de espécies de artrópodes existentes. Apesar de “diluída neste mar de espécies”, a sua dimensão, o exotismo e... o sabor tornam-na alvo de atenção especial por parte do mergulhador e do caçador submarino.


Identificação


Este animal possui um esqueleto exterior rijo (exosqueleto) e numa peça, a carapaça, une o cefalotórax. Esta carapaça, de forma aproximadamente cilíndrica, possui diversos espinhos. O abdómen é articulado e termina numa peça de nome telson ladeado por urópodes. Possui, na parte anterior da carapaça, duas longas antenas frontais semelhantes a chicotes. Possui cornos (em biologia não é uma grosseria dizer “cornos”) de forma triangular, localizados na parte anterior do corpo, que são separados por um espaço denticular no bordo interno. Estes cornos servem de armadura de protecção em relação aos olhos. O rostro é mediano, rudimentar, de pequenas dimensões. O quinto par de patas locomotoras é o mais curto e nas fêmeas possui pinças (que servem para manipular os ovos). Os caracteres morfológicos externos são suficientes para permitir distinguir entre machos e fêmeas. A cor é vermelho-acastanhada. Possui duas grandes manchas amareladas em cada segmento abdominal. O comprimento total pode chegar aos 50 cm, embora seja difícil encontrar animais com mais de 35 a 40 cm.

Na Europa dificilmente poderá confundir a lagosta com outra espécie. É que esta é a única espécie de lagosta que está registada para as águas menos profundas da Europa. O animal mais parecido que frequenta as nossas águas é o lavagante, mas as diferenças nas tenazes, por exemplo, são tão grandes que tornam os animais inconfundíveis. Caso encontre uma lagosta incomum, tente fotografá-la e envie a informação à unidade de investigação mais próxima da zona de registo. No norte de África poderá ser encontrada, dentro dos limites de distribuição da lagosta verde, a espécie Palinurus regius, mas não em Portugal (embora algumas referências apontem para a presença desta espécie em França e Espanha).

O seu comportamento social é em geral gregário. A espécie apenas efectua movimentos limitados e concentrados durante a noite para se alimentar e reproduzir. A preferência pelo período nocturno, especialmente nos indivíduos mais jovens, está relacionada com a tentativa de evitar eventuais predadores. As migrações maciças, típicas das espécies das Caraíbas, não foram ainda detectadas para a espécie europeia, embora a densidade costeira diminua com o final do período de reprodução, voltando a aumentar na Primavera. Nalgumas espécies das Caraíbas foram detectados indícios de um sistema muito complexo na orientação destas espécies que permitem não apenas detectar uma linha de rumo como também determinar a sua posição geográfica. As experiências incluíram a transladação de animais de um lado para outro no sentido de verificar se o movimento se dava com a mesmo rumo. Nessas experiências, os cientistas detectaram que os animais faziam variar o seu rumo conforme o local em que tivessem sido colocados. Isso apenas é possível se existir uma forma de detectar a sua posição num dado momento. Depois de mais algumas experiências, os investigadores obtiveram alguns indícios de que essas espécies de lagostas têm aparentemente a capacidade de tirar linhas de posição sucessivas em relação ao pólo magnético, de forma a detectarem a sua posição actual.

A alimentação é variada, incluindo algas, esponjas, briozoários, anelídeos (poliquetas), moluscos, ouriços, crustáceos e, excepcionalmente, peixes. A lagosta pode alimentar-se de bivalves, conseguindo quebrar as suas conchas. Também não desprezam a alimento morto (o que é utilizado pelos pescadores para as atraírem).

Várias espécies de peixes (como o peixe-porco) e cefalópodes (como o polvo) são predadores das lagostas.


Ciclo de vida


A dimensão a que atinge a maturidade sexual é dependente da latitude. Quanto mais para norte mais tarde se atinge a primeira maturação (há registos de animais maturos aos 21 cm em latitudes baixas e animais a atingir a maturidade sexual aos 35 cm, nas latitudes mais elevadas. Normalmente, uma fêmea matura terá pelo menos seis anos. O acasalamento dá-se no Verão, seguido da postura pouco tempo depois. A fecundidade das fêmeas é dependente do seu comprimento. Por exemplo, à mesma latitude um animal de 23 cm poderá pôr 13 mil ovos e porá 134 mil ovos quando atingir um comprimento de 34 cm. No máximo uma fêmea poderá pôr até 250 mil ovos. Estes números de ovos, no meio marinho, não são considerados muito elevados.

A postura dá-se a seguir a uma muda do exosqueleto e as fêmeas não voltam a mudar até que os ovos tenham eclodido. Estes permanecem fixos aos apêndices abdominais durante a fase de incubação. As fêmeas no Atlântico estão ovadas entre Outubro e Março. A duração da incubação é dependente da temperatura da água. Nas latitudes mais baixas, a incubação dura 5 meses e nas águas de temperaturas menos elevadas poderá durar 9 meses. As larvas resultantes da eclosão, têm o nome de Filossomas, possuem 3 milímetros e são pelágicas planctónicas. Os animais passam à forma pós-larvar passado entre os 6 meses a um ano. Apesar de parecer muito longo, o período larvar de Palinurus elephas é um dos mais curtos da família Palinuridae, havendo espécies com um período larvar de cerca de um ano. As larvas têm um aspecto aplanado e transparente que em nada faz lembrar um animal adulto. Aliás, na maioria dos crustáceos, dadas as enormes diferenças morfológicas e diferentes subfases larvares, apenas os especialistas conseguem fazer a ligação entre as fases larvares e as adultas da maioria das espécies. No final da última fase larvar, já com um aspecto muito parecido com o de uma lagosta adulta, o animal passa a ter um comportamentobêntico.

O crescimento, nas fases juvenil e adulto, é mais lento e o macho cresce mais rapidamente que a fêmea. Por exemplo, para um macho atingir um peso de 500 g terá de ter cerca de cinco anos, enquanto uma fêmea precisa de 6 anos. Tem uma grande longevidade, podendo atingir uma idade estimada em 14 anos. As mudas dão-se com intervalos de 15 dias nos animais que acabam de chegar ao fundo, mas com a idade, a necessidade de mudar diminui, até que os indivíduos mais velhos, de crescimento mais lento, mudam apenas de ano a ano. Após uma muda, e até que o novo esqueleto externo tenha solidificado (o que demora várias horas), estes crustáceos são especialmente sensíveis a agressões exteriores como, porexemplo, a predação. Para restabelecer os níveis de cálcio necessários à solidificação da nova carapaça, é habitual as lagostas alimentarem-se da antiga carapaça.

O crescimento lento, com taxa de reprodução moderada e grande longevidade, classifica as lagostas como possuindo uma estratégia ecológica do tipo “k”. Ao contrário, os animais do tipo “r”, como os insectos, possuem baixa longevidade, taxas de reprodução elevadas e crescimento muito rápido. Estes conceitos de estratégia ecológica foram muito utilizados para ajudar a propor medidas de gestão e protecção no passado. Era uma simples regra de bom senso que as espécies com estratégia ecológica do tipo “k” necessitassem de mais atenção por parte das entidades gestoras e ligadas à conservação da natureza.


Distribuição


É uma espécie demersal, que prefere os substractos rochosos com algas. Durante o dia refugia-se em cavidades mal iluminadas. Prefere as cotas dos 20 aos 70 metros de profundidade, mas pode ocupar profundidades entre os 5 até aos 160 metros. Nos meses de Inverno ocupa as maiores profundidades.

É um animal considerado emblemático no Mediterrâneo (mais comum em Itália e França que na Grécia e Líbia), embora se distribua pelo Atlântico Nordeste, desde o Cabo Bojador até ao Sul da Noruega, incluindo o Mar Mediterrâneo e parte setentrional das Ilhas Britânicas, mas excluindo o Mar do Norte. Habita também as Ilhas Canárias, Madeira e Açores.


Medidas de gestão e protecção


A elevada exploração desta espécie tem conduzido a uma redução dos mananciais. De forma a gerir as populações de uma forma sustentável, está dado um tamanho comprimento mínimo de captura para esta espécie em Portugal. Assim, animais com dimensões inferiores a 11cm de comprimento da carapaça são ilegais. Nos Açores animais com menos de 23 cm (medidos entre a inserção do olho e o fim do abdómen) não podem ser capturados. Para esta espécie existe uma época de defeso que começa a 1 de Outubro e acaba a 31 de Dezembro. Nos Açores a época de defeso é a mesma, mas como uma extensão até 31 de Março para as fêmeas (embora esteja a ser preparada nova legislação). Através da caça-submarina (e a respectiva licença), nos Açores e na Madeira apenas podem ser capturados dois crustáceos (como a lagosta) por mergulhador e por dia. É proibida a captura deste animal utilizando garrafa de mergulho.

Noutros países, para além das medidas aplicadas em Portugal, foram ainda criadas Áreas Marinhas Protegidas direccionadas para a protecção desta espécie. Há países, como em Espanha em que há propostas científicas no sentido de criar uma interdição à captura de fêmeas ovadas e luta séria contra a pesca ilegal destes animais.

Em termos de esforços conjuntos para a protecção internacional desta espécie, ela encontra-se referida na Convenção de Barcelona.

Para que estas medidas de gestão possam ser eficientes, é necessário que haja um total respeito pelas mesmas, que se utilizem métodos de captura selectiva e que as capturas sejam registadas em lota.

Infelizmente, em Portugal um dos métodos utilizado para capturar esta espécie é a rede de emalhar de longo período. O processo de captura inclui deixar a rede de emalhar apanhar peixe, esperar que este apodreça e assim atrair as lagostas que acabam por ficar emalhadas. Esta arte é considerada lesiva do ambiente. O melhor método para capturar a lagosta, considerado o mais selectivo e o menos impactante, é a pesca por cofre.


Conclusão


Independentemente do valor comercial que a espécie tem e de quão maravilhosa pode ser uma refeição iniciada com este acepipe, a lagosta quando observada com escafandro autónomo é um animal complexo que deverá ser alvo de toda a consideração e dignidade.


Para saber mais:


Taxonomia:

Filo Arthropoda

Classe Crustacea

Ordem Decapoda

Família Palinuridae

Género Palinurus

Espécie Palinurus elephas (Fabricius, 1787)


Nomes da lagosta no mundo:


Português Lagosta;

Espanha langosta común europea e langosta roja (Castelhano), llagosta (Catalão)

Otarrain (Basco);

Inglês Common spiny lobster (Inglaterra), Crayfish (Irlanda);

Francês langouste rouge (FAO), langouste commune, grill (Bretão)

Alemão Langusten

Italiano Aragosta

Grego Astakós

Turco Börek


Pequeno glossário:


Corno substantivo masculino - cada um dos apêndices duros e recurvados que certos animais têm na cabeça (Do lat. cornu-, «id.») (in Diciopédia 2002, Porto Editora, Lda).

Morfologia tratado ou estudo da forma exterior que a matéria ou os seres vivos podem tomar (in Diciopédia 2002, Porto Editora, Lda.)

Muda Substituição periódica do exosqueleto efectuada periodicamente pelos crustáceos. Com o aumento da idade e consequente diminuição da taxa de crescimento, o período entre mudas aumenta.

Necton Animais que vivem na coluna de água, mas que conseguem superar o movimento geral das correntes.

Plâncton Animais e algas que vivem na coluna de água e derivam sem conseguir contrariar o movimento longitudinal das correntes. Alguns deles possuem a capacidade de executar movimentos verticais de grande amplitude (tipicamente diários).

Rostro parte anterior da carapaça.


Páginas Internet:


http://www.mnhn.fr/mnhn/bimm/protection/fr/Especes/Fiches/Palinuruselephas.html Dados interessantes sobre a lagosta na perspectiva francesa.

http://vm.cfsan.fda.gov/%7Edms/qa-ind5k.html Dados interessantes sobre a lagosta na perspectiva norte-americana.

http://www.mermaid1.demon.co.uk/body_crustaceans.htm Vários crustáceos em comparação fotográfica.

http://www.itsligo.ie/biomar/crustace/PALELE.HTM

http://marenostrum.org/vidamarina/animalia/invertebrados/crustaceos/langosta/

http://www.carm.es/cma/dgmn/mnatural/litoral/especies/crustace/palinuru.htm

http://www.geocities.com/ruipatriciof/lobsters/

Bibliografia complementar:

Debelius, H. 1999. Crustacea: guide of the world. Ikan, Frankfurt. 321p.

Fischer, W., G. Bianchi and W.B. Scott (eds), 1981. FAO Species Identification sheets for fishery purposes. Eastern Central Atlantic, areas 34 e 47 (in part). Vol. V. Otava.

Moonsleitner, H. & R. Patzner 1995. Unterwasserführer: Mittelmeer (Niedere Tiere). Verlag Naglschmid, Estugarda. 214p. Guia de invertebrados muito completo para o Mediterrâneo. Tem boas fotografias e muita informação interessante sobre a bio-ecologia de algumas espécies.

Morton, B., J.C. Britton & A.M.F. Martins 1998. Ecologia Costeira dos Açores. Sociedade Afonso Chaves, Ponta Delgada. 249p. Este livro transmite valiosos conhecimentos sobre o funcionamento dos ecossistemas costeiros dos Açores. Obrigatório na preparação de estudos sobre ecologia na zona entre o supralitoral e o infralitoral dos Açores.

Portaria n.º 1102-D/2000 de 22 de Novembro “Pesca por Arte de Armadilha”

Reis, D.C.C. 1997. Estudo da pescaria de lagosta verde (Palinurus regius De Brito Capello, 1864) do Arquipélago de Cabo Verde. Relatório de Estágio do Curso de Licenciatura em Biologia Marinha e Pescas. Universidade do Algarve, Faro, 53p + Anexos.

Saldanha, L. 1995. Fauna Submarina Atlântica. Publicações Europa-América. 364p. O facto de estar escrito em Português confere-lhe uma franca vantagem em relação a outros guias do género.

Sequeira, R.M.V. 2001. Biologia e caracterização da pesca de lagosta (Palinurus elephas, Fabricius 1787) nos Açores. Relatório de Estágio do Curso de Licenciatura em Biologia Marinha e Pescas. Universidade do Algarve, Faro, 53p + Anexos.

Wirtz, P. 1995. Unterwasserführer: Madeira, Kanaren, Azoren (Invertebrates). Verlag Naglschmid, Estugarda. 247p. Guia de invertebrados muito completo para os Arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores. Tem boas fotografias e muita informação interessante sobre a bio-ecologia de algumas espécies.

Agradecimentos

Agradecimento aos colegas Helen Rost Martins, João Gonçalves e Rogério Ferraz pela revisão e sugestões. Agradecimento à Margarida Abecasis pela revisão do manuscrito.

Biografia

Frederico Cardigos - é Licenciado em Biologia Marinha e Pescas pela Universidade do Algarve e é Mestre em Gestão e Conservação da Natureza pela Universidade dos Açores. É bolseiro do Centro do IMAR da Universidade dos Açores através do Projecto, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, MAROV (PDCTM/P/MAR/15249/1999) e colabora activamente no Projecto OGAMP (MAC/4.2/A2), financiado pela União Europeia através do Programa InterReg IIIb.

Leia o artigo completo, incluindo ver as fotografias em:
http://www.horta.uac.pt/Projectos/MSubmerso/old/200312/Palinurus.htm


Áreas Marinhas Protegidas não são Reservas Integrais

Já escrevi isto, mas, dado que estou recorrentemente a ouvir este erro, deixem-me repetir: “Áreas Marinhas Protegidas não são Reservas Integrais!”. Ou seja, pelo facto de classificar uma área como área marinha protegida não fica implícito que se irá impedir o seu uso. Segundo a IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza e Recursos Naturais), numa versão simplificada, área marinha protegida é uma zona do mar, definida por lei e com um sistema dedicado que a regula tendo em vista a conservação da natureza ou salvaguarda dos recursos marinhos. Por “sistema” entende-se uma direcção, um corpo técnico ou outra entidade que tenha jurisdição sobre a área e aí possa promover ou inibir actividades. A classificação está relacionada com os usos possíveis, mas não implica que não se possa utilizar. Depois de classificar uma área como área marinha protegida, pode-se dividir a área em diversas partes de acordo com as características que possuem. A isto chama-se zonamento. Por exemplo, na Paisagem Protegida do Monte da Guia, na Ilha do Faial, Açores, existe uma área marinha (em volta do Monte) e que possui uma pequena zona que é Reserva Integral (as Caldeirinhas). Uma Reserva Integral não pode ser invadida por ninguém! Bom, há duas excepções: forças da ordem e técnicos devidamente autorizados pela entidade gestora. Normalmente, as áreas classificadas como Reserva Integral são muito pequenas e baseiam-se em justificações muito fortes. Por exemplo, a Área Marinha Protegida de Fernando Noronha (que é grande) tem uma pequena baía classificada como Reserva Integral (Baía dos Golfinhos). Esta baía foi identificada como um local importante para a reprodução dos golfinhos-rotadores e por essa razão está proibida a entrada a qualquer embarcação ou ser humano. É de tal forma protegida que, mesmo por terra, só se pode vislumbrar ao longe uma parte da baía.

A parte Sul das Desertas, na Madeira, também é Reserva Integral. Neste caso, foi declarada para protecção dos lobos-marinhos. Hoje em dia todos os dados indicam ter-se tratado de uma boa opção e, aparentemente, a população de lobos-marinhos, antes à beira da extinção, parece estar a renascer das cinzas.

Na ilha de Ustica, em Itália, a parte Norte tem uma pequeníssima parte que é Reserva Integral e a restante parte Norte pode ser utilizada desde que não haja extracção (pesca, caça, extracção de areia, etc.). Na parte Sul podem-se fazer todas as actividades (desde que de acordo com a lei geral, claro!). Neste caso, a justificação da Reserva Integral está relacionadacom a manutenção de um local com as características primitivas. A entidade gestora deste local espera que este pequeno local possa servir de termo de comparação para eventuais impactos das actividades que têm lugar nas restantes áreas. É um método engenhoso e muito divulgado a nível internacional.

Outros exemplos interessantes são as “áreas de silêncio”. Em certos locais há nidificação de aves marinhas junto à costa, em plena ravina. Quando uma embarcação passa a grande velocidade, fazendo grande barulho (como as motas de água), as aves podem assustar-se e as mais jovens cair para dentro de água e afogarem-se. Isto acontece, por exemplo, com osgarajaus. Para evitar que as aves marinhas caiam dentro de água pode-se impedir que, naquela zona costeira, junto à colónia nidificante, as embarcações passem a grande velocidade ou a fazer barulho. Como as aves não estão sempre a nidificar, esta zona até pode ser declarada “de silêncio” apenas em parte do ano.

As combinações de métodos para obter determinados resultados são tão complexos que não me atrevo a tentar sintetizá-los a todos. De qualquer forma, quero escrever o meu exemplo favorito de zonamento. Na Ilha do Corvo (Açores), há um local muito conhecido pelos mergulhadores. Trata-se do Caneiro dos Meros. Neste local os pescadores profissionais decidiram deixar de pescar junto ao fundo. O resultado foi muito interessante, os meros que aí vivem são os mesmos desde há cinco anos (posso confirmá-lo porque fui lá filmá-los pela primeira vez em 23 de Dezembro de 1998) e estão habituados à presença humana. Aproximam-se dos mergulhadores e permitem belíssimas fotografias. Ou seja, este zonamento voluntário permitiu o aparecimento de uma outra actividade com interesse económico: o turismo de mergulho.


Publicado na coluna "Casa-Alugada"

quarta-feira, 26 de novembro de 2003

A Vida Romântica do Biólogo Marinho


Escrevo estas linhas a bordo do Navio de Investigação “Arquipélago”. Estamos ao largo da Ilha do Pico, Açores, a realizar trabalho de sondagem do fundo para obtenção de batimetria da área. A minha função é olhar para três ecrãs em simultâneo e tomar decisões sobre navegação, alcance da sonda e fazer a verificação dos sensores. É um trabalho tremendamente monótono. São duas e meia da manhã de sábado e eu estou aqui a tentar perceber porque raio escolhi esta profissão... Temos equipas de dois, para certificar que nenhum dos elementos adormece ou morre de tédio. Sinto-me como o guarda nocturno que olha para os monitores, mas, ao contrário deste, desejo que haja uma tentativa de assalto. Infelizmente, nada... Apenas o som do piloto automático e os ecrãs depositando imagens, sempre iguais, sempre diferentes, sempre iguais.
A decisão de um dia me tornar biólogo marinho foi tomada pela conjunção de uma miríade de factores. Alguns deles subjectivos e dos quais ainda hoje não me aperceberei, resultado de todas aquelas influências silenciosas como as que nos fazem sentir melhor ou pior neste ou naquele dia, sem razão aparente. Mas houve outras razões, bem definidas, nítidas, das quais tenho absoluta consciência: a visão romântica do mergulhador no meio de um qualquer recife de coral ou entre os sorridentes golfinhos (os golfinhos são sempre sorridentes no nosso imaginário...), o poder ajudar a conhecer melhor o mundo, trabalhar na “natureza”, enfim, uma série de pequenas coisas. O que eu não fazia ideia é que o reverso da medalha era tão pesado. Não quero falar em números, mas tenho a certeza que metade dos meus colegas não vai sequer para o mar. Não que estejam a fazer as coisas inadequadas à sua formação, nem pensar nisso! Mas, em certas pesquisas, não é, de todo, necessário ir para o mar. Depois, entre aqueles que vão para o mar, poucos mergulham. A maioria analisa o resultado de uma pescaria, estuda as propriedades físicas da água, mas não precisa de saltar para dentro de água. 
Os biólogos que usam os veículos de operação remota (ROV) para verificar os meios mais inóspitos, como os que são alvo de focos de poluição, apesar de não entrarem fisicamente dentro de água, já conseguem ter uma imagem do meio. Sempre é melhor. 
Há também o biólogo marinho que penetra dentro de água, mas que não se molha. São os biólogos que mergulham nos submarinos e visitam as fontes hidrotermais e outros locais fantásticos. 
Finalmente, temos os biólogos que se molham. Aquele tipo que alimenta o sonho dos jovens adolescentes e que tem as “grandes aventuras subaquáticas”! Aquele que, sortudo, submerge no meio marinho e faz observações subaquáticas, marca os tubarões com uma arma de caça submarina transformada, e, no mesmo mergulho, filma as tartarugas no recife de coral. Nada mais enganador, no entanto... A verdade é que este mergulhador, biólogo-marinho, terá que fazer centenas de horas de observação subaquática para chegar a qualquer conclusão cientificamente válida. O mergulho chega a um ponto em que é tão mecânico e as observações paralelas ao objecto em estudo são tão previsíveis que uma ida ao café da esquina pode ser mais excitante. Mas, pior ainda, o tempo passado dentro de água ou na preparação dos mergulhos é a melhor parte porque 75% do tempo de trabalho é feito à secretária, olhando para um computador, inserindo dados, analisando esotéricos gráficos multidimensionais...
Noutro dia serei mais positivo, quando estiver longe destes ecrãs, mas hoje isto não está a correr nada bem... Tento recordar-me da semana passada quando fiz censos de animais subaquáticos nas Formigas, de há duas semanas atrás quando recolhi amostras no leito do D. João de Castro e de há três semanas quando estive a recolher imagens no Princesa Alice... Lembro-me com saudade e a pensar, até breve!

Publicado na coluna "Casa-Alugada"

domingo, 26 de outubro de 2003

As Moreias

Apesar do seu glamour ameaçador, as moreias raramente passam disso: “ameaçadoras”. De resto, de dia permanecem basicamente de guarda aos seus buracos, com a boca aberta, esperando que uma incauta presa passe por perto, ou posando indulgentemente para a máquina fotográfica. À noite, grande parte das espécies de moreias saem dos seus “covis” epredam activamente.

As moreias são peixes, teleósteos, da família Murenidea. A grande diferença entre as moreias e os congros reside na inexistência de barbatanas peitorais no caso das primeiras. O corpo das moreias é anguiliforme, musculado e a pele é espessa. As barbatanas ímpares estão unidas desde o dorso anterior, habitualmente antes das “fendas” branqueais até à faceventral e terminando no ânus. A dimensão da boca é média a grande e a dentição varia de acordo com a espécie. As colorações e padrões cromáticos também são específicos, o que em Portugal muitas vezes facilita a identificação. Têm interesse gastronómico e são muito apreciadas tradicionalmente em regiões como a Madeira, os Açores e o Alentejo.


As espécies


No mundo estão registados cerca de 10 géneros e mais de 100 espécies de moreias. Em Portugal, na faixa acessível à maioria dos mergulhadores, existem 4 espécies, sendo que, destas, apenas a moreia-pintada é habitualmente observada em mergulhos no Continente. As restantes espécies (moreão, moreia-preta e moreia-víbora) existem e são vistas pelosmergulhadores nos Arquipélagos dos Açores e Madeira. Todas as espécies são alvo da pesca artesal e nenhuma delas está citada no livro vermelho das espécies em perigo.

O moreão pode atingir um metro de comprimento. O seu corpo é castanho, particularmente mais escuro na zona da cabeça. Os olhos são escuros, quando comparados com os damoreia-preta. Também facilita o seu reconhecimento o facto de possuir um focinho comparativamente curto. A dentição é composta por pequenos e rijos dentes, capazes de trespassar qualquer carapaça quitinosa ou calcária. Por esta razão, alimenta-se facilmente de caranguejos e bivalves. Visto não serem as suas presas favoritas, é muitas vezes encontrado nacompanhia de espécies de pequenos peixes. Para além das tradicionais fendas e buracos, habitualmente utilizadas pelas moreias, esta espécie em particular também pode ser encontrada em fundos arenosos e de gravilha. Distribui-se desde os 0 aos 80m do Mar Mediterrâneo, desde os Açores até Cabo Verde, passando pela Madeira, Canárias e pelo Golfo da Guiné, havendo ainda registos no Sul de Portugal. Esta espécie é considerada inofensiva para o homem.

A moreia-pintada pode atingir 1,5 metros de comprimento total. Alimenta-se de peixes, lulas e caranguejos. Pode ser encontrada no Atlântico Oriental, desde as ilhas Britânicas até ao Senegal, passando pelas costas de Portugal Continental, Mediterrâneo, Açores, Madeira, Ilhas Canárias (especialmente nas zonas de águas mais frias) e Cabo Verde. Pode causar traumas em caso de ataque.

A moreia-preta pode atingir um metro e trinta centímetros de comprimento. A coloração especialmente esbranquiçada dos olhos é a característica que permite mais facilmente a identificação desta espécie. Os olhos contrastam com a coloração do corpo que pode variar entre o azul escuro e o castanho, de acordo com o fundo onde se encontra (já que esta espécie possui capacidade mimética). Encontra-se apenas pelos arquipélagos Macaronésicos: Açores, Madeira e Canárias desde a zona entre-marés até aos 100 metros de profundidade. Durante muito tempo esta espécie foi considerada apenas uma variante cromática da moreia-pintada até que se analisaram as características morfométricas e se chegou à conclusão que as diferenças na estrutura óssea da cabeça eram suficientes para justificar a descrição de uma nova espécie. Esta análise cuidada revelou que o focinho desta espécie é maior que o das moreias-pintadas.

A moreia-víbora pode medir até um metro e vinte centímetros. A espécie é facilmente reconhecível pelo aspecto amarelado e pela dentição, meia transparente, de aspecto especialmente ameaçador. Este aspecto ameaçador é reforçado pela sua incapacidade de fechar totalmente a boca, devido aos maxilares ligeiramente arqueados. No entanto, a ameaça é amplamente exagerada. Na realidade os seus dentes são demasiado compridos e frágeis, o que impossibilita a sua alimentação ser direccionada para animais de carapaça dura, como os caranguejos. Durante o dia encontra-se escondida em fendas e buracos, aproveitando a noite para atacar peixes, lulas e polvos, embora a sua dieta não seja totalmente conhecida. O seu comportamento, essencialmente noctívago, faz-nos crer que é muito menos abundante do que na realidade é. Distribui-se pelo Mediterrâneo, Açores, Madeira, Canárias, Cabo Verde, Ascensão, Santa Helena e Bermudas (quase todos os arquipélagos Atlânticos). Verticalmente, ocorre desde os 0 até aos 30 metros de profundidade. É considerada inofensiva.


Comportamento reprodutor


Apesar do conhecimento sobre a fase de libertação de ovos ser restrito a um pequeno número de observações, as moreias já foram observadas a contorcerem o corpo, libertando ovos pelágicos.

Algumas espécies agregam-se para reprodução. Enquanto permanecem nestas agregações já houve relatos de ataques activos a mergulhadores.


Sentidos


A maioria das espécies de moreias vê mal. Para se orientarem, confiam essencialmente no sentido do olfacto, o que as obriga a aproximar de objectos para os reconhecerem. Porvezes, atitudes tomadas como agressivas são apenas uma tentativa, por parte da moreia, de identificar o organismo que se encontra na sua frente.

Algumas espécies possuem nostrilhos tubulares (pequenos prolongamentos nasais), os quais permitem facilmente reconhecer a direcção de um determinado odor. Depois de determinada a presença de uma potencial presa, a moreia aproxima-se até confirmar o sabor da presa, através de órgãos sensoriais que possui nos lábios, e ataca com uma mordida rápida. Alguns peixes, como as vejas, enquanto dormem produzem um muco que as torna “invisíveis” aos órgãos sensoriais das moreias. É possível que uma moreia durante o período nocturno passe por cima de uma veja sem notar a presença de uma óptima presa.


Limpeza


As moreias são dos animais que beneficiam com as chamadas “estações de limpeza”. Estes locais são conhecidos por albergarem pequenos animais, como pequenos camarões ou peixes, que limpam outros animais potencialmente seus predadores. Os parasitas limpos desta forma servem de alimento aos limpadores e libertam os de maior porte dos parasitas. Estas relações de comensalismo (relação em que ambas as espécies saem beneficiadas) são intrigantes, especialmente porque alguns dos limpadores, noutros contextos, são presas dos animais de maior porte. Durante a limpeza, os animais de maior porte parecem ficar num estado de latência ou letargia. Nalguns casos este estado é atingido antes do início das operações de limpeza, como que a indicar que o processo deve ser iniciado ou a informar os animais de menor porte que, a partir daquele momento, o predador “sai de funções”.


Ataques a humanos


As moreias mais perigosas são, curiosamente, as que foram condicionadas (vulgo “amestradas”) através do alimento. O facto de estarem à espera de serem alimentadas pelosmergulhadores leva a que estes animais confundam partes do corpo dos mergulhadores com a esperada comida. Os dedos dos mergulhadores são confundidos com comida, porque as moreias vêm mesmo mal...

Apesar de não serem habitualmente agressivas, algumas espécies podem provocar ferimentos sérios e dolorosos. Independentemente da gravidade aparente, um ferimento causado pela mordedura de uma moreia poderá implicar a necessidade de utilização de antibióticos, pelo que deverá consultar um médico com a brevidade possível.


Para saber mais

Bauchot, M.-L., 1986. Muraenidae. p. 537-544. In P.J.P. Whitehead, M.-L. Bauchot, J.-C. Hureau, J. Nielsen and E. Tortonese (eds.) Fishes of the North-eastern Atlantic and theMediterranean. Volume 2. UNESCO, Paris.

Debelius, H. 2000. Mediterranean and Atlantic Fish Guide. IKAN Unterwasserarchiv. 305p. - Para além do Inglês, este guia de identificação para peixes do Mediterrâneo e Atlântico está também editado em Alemão e Castelhano.

Froese, R. e D. Pauly. Editores. 2003. FishBase. World Wide Web electronic publication. www.fishbase.org, versão de 1 de Setembro de 2003.

Nancy’s Portugal Site - http://home.online.no/~nancys/portugal/madeira/sports/diving/fish07.html

Saldanha, L. 1995. Fauna Submarina Atlântica. Publicações Europa-América. 364p. - O facto de estar escrito em Português confere-lhe uma franca vantagem em relação a outros guias.

Wirtz, P. 1995. Unterwasserführer Madeira / Kanaren / AzorenFische. Vol. 8. Delius Klasing Edition Naglschmid. 159p.

Agradecimentos

Ao Rogério Ferraz pelas correcções e por ter chamado a atenção para as associações entre as diferentes espécies de moreias e as diferentes espécies acessórias. Ao Filipe Porteiro,Fernando Tempera, Vera Guerreiro e Margarida Abecasis pela revisão do manuscrito.


Biografia


Frederico Cardigos é Licenciado em Biologia Marinha e Pescas pela Universidade do Algarve e é Mestre em Gestão e Conservação da Natureza pela Universidade dos Açores. É bolseiro do Centro do IMAR da Universidade dos Açores através do Projecto, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, MAROV (PDCTM/P/MAR/15249/1999).


Leia o artigo completo em:

http://www.horta.uac.pt/Projectos/MSubmerso/old/200310/Moreias.htm