Escrevo estas linhas a bordo do Navio de Investigação “Arquipélago”. Estamos ao largo da Ilha do Pico, Açores, a realizar trabalho de sondagem do fundo para obtenção de batimetria da área. A minha função é olhar para três ecrãs em simultâneo e tomar decisões sobre navegação, alcance da sonda e fazer a verificação dos sensores. É um trabalho tremendamente monótono. São duas e meia da manhã de sábado e eu estou aqui a tentar perceber porque raio escolhi esta profissão... Temos equipas de dois, para certificar que nenhum dos elementos adormece ou morre de tédio. Sinto-me com o o guarda nocturno que olha para os monitores, mas, ao contrário deste, desejo que haja uma tentativa de assalto. Infelizmente, nada... Apenas o som do piloto automático e os ecrãs depositando imagens, sempre iguais, sempre diferentes, sempre iguais.
A decisão de um dia me tornar biólogo marinho foi tomada pela conjunção de uma miríade de factores. Alguns deles subjectivos e dos quais ainda hoje não me aperceberei, resultado de todas aquelas influências silenciosas com o as que nos fazem sentir melhor ou pior neste ou naquele dia, sem razão aparente. Mas houve outras razões, bem definidas, nítidas, das quais tenho absoluta consciência: a visão romântica do mergulhador no meio de um qualquer recife de coral ou entre os sorridentes golfinhos (os golfinhos são sempre sorridentes no nosso imaginário...), o poder ajudar a conhecer melhor o mundo, trabalhar na “natureza”, enfim, uma série de pequenas coisas. O que eu não fazia ideia é que o reverso da medalha era tão pesado. Não quero falar em números, mas tenho a certeza que metade dos meus colegas não vai sequer para o mar. Não que estejam a fazer as coisas inadequadas à sua formação, nem pensar nisso! Mas, em certas pesquisas, não é, de todo, necessário ir para o mar. Depois, entre aqueles que vão para o mar, poucos mergulham. A maioria analisa o resultado de uma pescaria, estuda as propriedades físicas da água, mas não precisa de saltar para dentro de água.
Os biólogos que usam os veículos de operação remota (ROV) para verificar os meios mais inóspitos, com o os que são alvo de focos de poluição, apesar de não entrarem fisicamente dentro de água, já conseguem ter uma imagem do meio. Sempre é melhor.
Há também o biólogo marinho que penetra dentro de água, mas que não se molha. São os biólogos que mergulham nos submarinos e visitam as fontes hidrotermais e outros locais fantásticos.
Finalmente, temos os biólogos que se molham. Aquele tipo que alimenta o sonho dos jovens adolescentes e que tem as “grandes aventuras subaquáticas”! Aquele que, sortudo, submerge no meio marinho e faz observações subaquáticas, marca os tubarões com uma arma de caça submarina transformada, e, no mesmo mergulho, filma as tartarugas no recife de coral. Nada mais enganador, no entanto... A verdade é que este mergulhador, biólogo-marinho, terá que fazer centenas de horas de observação subaquática para chegar a qualquer conclusão cientificamente válida. O mergulho chega a um ponto em que é tão mecânico e as observações paralelas ao objecto em estudo são tão previsíveis que uma ida ao café da esquina pode ser mais excitante. Mas, pior ainda, o tempo passado dentro de água ou na preparação dos mergulhos é a melhor parte porque 75% do tempo de trabalho é feito à secretária, olhando para um com putador, inserindo dados, analisando esotéricos gráficos multidimensionais...
Noutro dia serei mais positivo, quando estiver longe destes ecrãs, mas hoje isto não está a correr nada bem... Tento recordar-me da semana passada quando fiz censos de animais subaquáticos nas Formigas, de há duas semanas atrás quando recolhi amostras no leito do D. João de Castro e de há três semanas quando estive a recolher imagens no Princesa Alice... Lembro-me com saudade e a pensar, até breve!
Publicado na coluna "Casa-Alugada"
Sem comentários:
Enviar um comentário