O mar tem esta particularidade de apaziguar a alma e fazer esquecer os pecados. Durante os breves momentos em que estamos a nadar, sobre a água numa embarcação, ou apenas numa rocha à beira-mar, parece que não existem problemas. O leve ondular, a temperatura fria, o cheiro a algas, o sol por cima das nossas cabeças, tudo parece contribuir para algo que nos dá prazer e acalma.
Tenho a felicidade de ter uma profissão (biólogo marinho) que me proporciona muitas horas de mar, muitas horas dentro de água, muitas horas de paz e serenidade. Mesmo quando levamos um complexo rol de tarefas, há sempre um leve sorriso, quase de gozo, “vai resolver-se”. Como se ficássemos impunes, intocáveis e imunes, pelo menos momentaneamente.
Certas pessoas dizem que é mau refugiarmo-nos no mar e esquecer os problemas nacionais (fogos, pedofilia, falta de dinheiro, etc.), mas a culpa é do mar. Ele é que nos suga as preocupações. Até estou em crer que se todos nos metêssemos dentro de água, metade dos problemas desapreciam...
Na manhã do dia em que escrevo estas linhas, entrou um pequeno golfinho no Porto da Horta (Açores). O cetáceo, um golfinho-comum de tenra idade, não conseguia encontrar a saída. Algumas das pessoas que trabalham à volta do Porto (Empresas de Observação de Cetáceos, Junta Autónoma do Porto e Postos Abastecedores de Combustível) contactaram de imediato a Rede de Arrojamento de Cetáceos dos Açores (RACA). Por sua vez, a RACA fez deslocar ao local os biólogos e os técnicos que estavam mais perto da área. Por sorte, eu ainda não tinha saído para o mar e pude assim juntar-me à equipa. Depois de algum trabalho foi possível, utilizando embarcações, direccionar o golfinho para a saída do Porto. Estive muito perto do animal e penso que consegui adivinhar-lhe o desespero; estar naquele mar tão fechado sem encontrar a saída e longe do seu bando. Ao sair do porto, o primeiro problema desapareceu. Contudo, caso não encontre os seus pares, terá poucas hipóteses de sobreviver, mas, ao sair do Porto, passou a ter maior probabilidade de conseguir chamar por ajuda. Oxalá a tenha encontrado!
Quando o pessoal envolvido no processo percebeu que, após mais de uma hora de esforços, tinham conseguido dar mais uma oportunidade aquele delicado golfinho, desataram a bater palmas e a festejar. À chegada ao cais diversas pessoas perguntavam qual tinha sido a sorte do golfinho. Com prazer, fomos dizendo que pelo menos por agora poderá ter sorte. A curiosidade de que senti ser alvo foi esclarecedora. Cada vez mais as pessoas se preocupam pelas coisas do mar e do ambiente. A sorte deste golfinho não é muito relevante quando comparada com a pressão a que os nossos mares estão actualmente sujeitos; mas a simpatia, a curiosidade e a solidariedade daquelas pessoas com este animal é sintomática de que há esperança. Há esperança de que uma parte significativa das pessoas se revolte contra todas as atrocidades que quotidianamente são perpetradas contra o ar que respiram e que é suporte do ambiente que temos de preservar, a água que bebem e que também é tão vital para inúmeros seres, os alimentos que necessariamente ingerimos e cuja modificação tem consequências nem sequer previsíveis. Há esperança que as pessoas percebam que as modificações climatéricas que permanentemente nos surpreendem não são mercê do acaso. Que todas estas e outras agressões nos obrigam a colectivamente reagir e obrigar ao cumprimento da tantas vezes insuficiente Lei. Mas nada mau seria que ao menos se cumprisse a Lei, a Lei que já existe e sistematicamente se ignora.
Um amigo, o Professor brasileiro Otto Bismark, especialista em ataques por tubarões, disse uma vez numa conferência “evidentemente que cada vez que há um ataque de um tubarão é um enorme drama, mas o verdadeiro problema do Brasil é a fome. A diferença é tão grande que não faz sentido sequer pensar nos ataques de tubarão como um problema”. Da mesma forma, a sorte deste golfinho alimentou o sobressalto da alma de todos os envolvidos naquele dia, mas na realidade, o problema do mar é outro muito maior e mais grave. Era bom que pelo menos durante um tempinho pensássemos com a mesma paixão no nosso ambiente em termos globais e exigíssemos que não só os responsáveis assumissem as responsabilidades para que foram eleitos ou nomeados, mas todos, todos nós os cidadãos que de uma forma ou de outra nos servimos e servimos o mar, fossemos também conscientes da parte que nos compete e cabe na sua preservação.
Publicado na coluna "Casa-Alugada" da Revista Mundo Submerso
Sem comentários:
Enviar um comentário