segunda-feira, 26 de julho de 2004

Graciosa

Uma das coisas que mais me encanta são as missões científicas de Verão, quando as condições atmosféricas melhoram e o pessoal sai por alguns dias para investigar um determinado assunto ou estudar a solução para um qualquer problema. É nestes momentos que as relações humanas com as populações locais se tornam mais intensas, que nos tornamos mais amigos e, claro, que se realiza bom trabalho.

E a minha primeira missão deste ano foi na Ilha Graciosa. Comecei a pensar neste texto quando estava na Praia da Graciosa, a olhar para o seu Ilhéu. Ficar ali parado, no meio daquele silêncio de final da tarde, apenas entrecortado pelo falar de algumas pessoas no café nas minhas costas, pelo barulho do mar, pela ligeira brisa e por um ou outro cagarro que passava. Dificilmente poderia ser melhor. A falta de carros a passar, a inexistência de uma fábrica ou qualquer televisão por perto, permitiam ouvir os matraquilhos lá longe... Tão bom. Olhei para o céu, vi os primeiros planetas que tentavam impor-se contra o ainda azul do céu.

Mas aquilo que nos levou à Graciosa não estava relacionado com descanso ou lazer. Havia que mergulhar. Que bom ter uma profissão que exige realizar uma das minhas actividades favoritas. Neste caso, mais concretamente, o objectivo era caracterizar uma zona classificada como pertencente à Rede Natura 2000. Trata-se do Ilhéu de Baixo e Costa da Restinga. São pouco mais de 3 quilómetros e meio de linha de costa que tínhamos de estudar por baixo de água.

No decorrer dos trabalhos, chegámos à conclusão que não sabíamos o nome de um dos locais de mergulho. Arranjámos um nome algo complexo do género: “Baía entre a Ponta da Restinga e a Baía do Carapacho”. Não dava muito jeito. Perguntámos a um conhecido que nos disse, “não sei, mas sei quem sabe”. No dia seguinte tínhamos a resposta acrescida dos nomes de todos os pequenos ilhéus entre os dois locais mencionados anteriormente e uma caracterização sumária do local! Extraordinário.

De facto, os habitantes dos pequenos locais têm maravilhosos e enormes corações, disponíveis para nos ajudar até nos momentos menos complicados. E há tempo. Há tempo para pensar nos outros, quanto mais não seja para perguntar se “precisa de alguma coisa?” Ah, que maravilha.

Debaixo de água nota-se que as coisas já não são o que foram. Não é saudosismo, é apenas o constatar daquilo que já foi dito inúmeras vezes pelos pescadores. O mar está a saque: são redes, linhas de pesca intermináveis, pesca e caça furtiva, tínhamos de notar... e notámos. Acontece em Portugal inteiro e a Graciosa não foge à regra. Ao falar com os pescadores locais eles próprios admitiram “se não formos nós a pescar são os outros”. É já a política da terra queimada. Isto foi-nos dito na Graciosa e já anteriormente tinha sido expresso em público na Semana das Pescas dos Açores.

Evidentemente que a qualidade do mergulho é ainda muito acima da média nacional e mesmo ao nível médio dos Açores. Mas lendo as descrições do Professor Luís Saldanha, escritas nos anos oitenta, percebemos que algo está a acontecer e que, caso não se tomem medidas drásticas ficaremos a perder muito. O próprio Professor Saldanha compreendeu a fragilidade daquilo que lhe foi dado a observar e já nessa época defendia a protecção radical dos mares da Ilha.

Esta ilha tão bela e equilibrada em terra está a ser saqueada no mar. A polícia marítima não tem sequer uma embarcação e vê-se na situação inconcebível de ficar em terra a assistir à vilania. Em surdina um pescador desafiou uma das minhas colegas, “vá à lota ver o que está ser pescado e porque aparelho de pesca”. Evidentemente que um palangreiro não pode pescar essencialmente meros, sargos e pargos sem estar encostado a terra (onde é proibido).

Mais triste é constatar que há na Ilha Graciosa uma embarcação do Estado (Junta Autónoma do Porto) com capacidade para efectuar a imprescindível fiscalização. Está parada há vários anos. Algo continua a ir mal nos mares de Portugal. Está à vista de todos. Porque é que os responsáveis fazem tão pouco?

Graças ao empenho de uma empresa de mergulho local, Clube Náutico da Graciosa (www.divingraciosa.com), e da FPAS, o concurso nacional de fotografia subaquática, FotoSub, será este ano realizado na Ilha Graciosa. Pelo que vi debaixo de água e pelas descrições dos mergulhadores locais mais experientes, certamente que as imagens obtidas irão ser excelentes. Espero apenas que não sejam as últimas...


Publicado na coluna "Casa-Alugada"

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