domingo, 26 de setembro de 2004

Desorientação total

Comecemos por esclarecer. Hoje em dia quando se fala em conservação da natureza há diversos factores considerados determinantes: 1) conhecimento do tema/área, 2) integração dos interessados no planeamento da conservação e 3) aproximação da gestão às populações locais. Evidentemente, enquanto profissional de biologia, interessa-me sobretudo conhecer, mas, enquanto ser humano, penso que é determinante garantir os dois outros factores para uma efectiva preservação ambiental.

A questão é que as populações locais, muito mais que as restantes, estão interessadas em preservar o seu espólio e o seu legado. Isso não significa que os outros estejam inibidos de utilizar as áreas em causa, mas a primazia da gestão é dos locais. Há quem considere que esta é uma aproximação xenófoba, ou algo do género, mas não. É puro pragmatismo.

No caso de se pretender uma exploração mineralógica a aproximação será um pouco diferente. O bem em causa não terá renovação e, por isso, não é tão determinante que a gestão seja realizada localmente. Mesmo assim, para que se garantisse a utilização de métodos “amigos do ambiente” na exploração e a reposição do local após a sua mineração seria importante que as populações locais tivessem uma palavra a dizer.

Infelizmente em Portugal e na União Europeia a aproximação à gestão dos bens renováveis não tem sido essa. Aparentemente, há um conjunto de experts que toma as decisões (consultando ou não as populações locais) e são emanados regulamentos. Curiosamente, estes regulamentos estão tão longe dos decisores locais que a sua aplicabilidade e interesse é muito baixo. E é pena.

Por vezes, a aproximação ao poder local é, erradamente, efectuada através das Câmaras Municipais. Apesar de terem interesse no bem dos seus eleitores, normalmente (diz-nos a prática), as Edilidades estão mais preocupadas com os resultados a curto prazo (até às próximas eleições) e pouco interessadas na valorização ambiental. É por essa razão que vejo com enorme preocupação a entrega da Reserva Ecológica Nacional às autarquias locais. Qual será a resposta de um presidente de câmara se tiver de decidir entre uma fábrica ou hotel ou um Parque Natural? As Câmaras devem ser parceiros neste tipo de decisões, até talvez o parceiro mais importante, mas apenas isso, um parceiro entre todos os utilizadores e interessados na conservação ambiental.

Outro “tiro no pé” à portuguesa resulta do investimento sistemático do Ministério do Ambiente na substituição dos Vigilantes da Natureza por militares da Guarda Nacional Republicana na sensibilização ambiental e fiscalização das Áreas Natura 2000. É de um completo desajuste investir numa força ambiental que não está sob a jurisdição do Ministério do Ambiente, principalmente quando em detrimento de uma força do próprio Ministério. Suspeito que este passo seja mais uma tentativa de esvaziar o Instituto para a Conservação da Natureza (de que dependem os Vigilantes da Natureza).

Em Portugal, no início do mandato do anterior Governo anunciou-se com alguma pompa a criação da Comissão dos Oceanos. Este grupo de personalidades com conhecimentos sobre a gestão dos Oceanos iria desenvolver um documento estratégico para servir de inspiração no retorno de Portugal ao mar. O que aconteceu a esse documento? Tenho enorme curiosidade em saber qual o seu conteúdo...

Inacreditavelmente os Assuntos do Mar passaram a ser subsidiários do Ministério da Defesa. Qual será a ideia? Mais submarinos? Já não basta que num país sem dinheiro para a fiscalização e a monitorização básica dos seus mares se faça o investimento inacreditável em submarinos de grande porte, mas ainda se compensa o sector militar com a gestão dos mares. Relembro que, pelo menos nos Açores, não há dinheiro para pagar a gasolina das lanchas de fiscalização da própria Armada! É esta a gestão que se pretende estimular?

Neste momento há pelo menos 37 países em fase de solicitar o alargamento da Zona Económica Exclusiva acima das 200 milhas. Em Portugal, o programa do Governo inclui a frase lacónica “apoiar a constituição do dossier português para a extensão da plataforma continental”. Que falta de ambição!

Por outro lado, a União Europeia confirmou a abertura das águas externas dos Açores às frotas internacionais. A Comissão Europeia inibiu a utilização de redes de arrasto no último momento, mas mananciais já severamente explorados como os de tubarões, atuns e espadartes poderão ser delapidados também nas águas dos Açores. Tudo isto apesar dos inúmeros avisos do Governo Regional, do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores e de organizações não-governamentais internacionais (WWF, Greenpeace e Seas at Risk). Ainda por cima a CE é conhecida por ser muito má gestora dos Oceanos, preferindo compactuar com os governos (muitas vezes populistas) e com a indústria, interesses de curto prazo que já conduziram diversas pescarias à desintegração económica. Agora chegámos aos Açores.

Vejo o futuro com preocupação, adivinhando mares estéreis e poluídos. Haverá alternativas? Penso que sim e por vezes estas alternativas chegam de onde menos se espera. Chama-me um colega à atenção para a subida do preço do petróleo que poderá viabilizar economicamente as energias alternativas. Que ironia. Um harakiri dos produtores de petróleo! Finalmente poderemos ter energias alternativas funcionais e tudo por causa da ambição ou desorganização dos países produtores. Magnificamente maquiavélico!


Publicado na coluna "Casa-Alugada" da Revista Mundo Submerso

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

Porque não entendem...?

1. Estou perplexo ao verificar o número de furacões, tempestades tropicais e outros fenómenos naturais de alta intensidade que estão a afectar a América Central e a costa Leste dos Estados Unidos. A minha perplexidade não é motivada pela ocorrência dos fenómenos em si, mas mais pela quantidade e por os norte-americanos não perceberem que a causa primordial deste fenómeno são as alterações globais. É que se o cidadão comum dos Estados Unidos compreendesse que é o reflexo da sua desregrada atitude quotidiana que é espelhada nos fenómenos atmosféricos, talvez exigisse mudanças no comportamento do seu governo. Vejamos, sendo os Estados Unidos o maior emissor mundial de dióxido de carbono (um dos gases responsáveis pelo efeito de estufa) e não tomando atitudes concretas na sua contenção, como a assinatura e respeito pelo tratado de Quioto, é natural que a situação não melhore. E não se podem queixar de falta de avisos. Para além de todas as evidências científicas, algumas angariadas pelo próprio Pentágono, e até de alguma divulgação efectuada por Hollywood (veja-se o caso de "O Dia depois de Amanhã", de Roland Emmerich) nada parece acontecer. O público norte-americano (leia-se “cidadãos”) deveria, pelo menos, forçar George W. Bush a assinar o Protocolo de Quioto. Este documento congrega um conjunto de intenções e já foi assinado por 84 países, como Portugal, que se comprometeram a diminuir o nível de emissões poluidoras responsáveis pelo aquecimento global. Portugal comprometeu-se, mas não tem sido eficaz, embora isso seja outra história...

É por causa desta apatia irresponsável e pelo fomento das guerras do mundo que eu espero que esta Administração norte-americana não seja re-eleita. Infelizmente, não há grande esperança... Três milhões de pessoas foram deslocadas na Florida por causa do furacão Jeanne e as sondagens apontam para a vitória de George W. Bush. Não compreendo.

Fiz uma pequena pesquisa em que tentei entender o que preocupa os norte-americanos. Não tem qualquer valor estatístico, mas cheguei à conclusão que o crime, a SIDA, os sistemas de segurança social, o racismo, a morte e as taxas de juro são as maiores preocupações destes cidadãos. De facto, nesta pequena lista não consta o ambiente ou a guerra. Alguém terá, na minha modesta opinião, de colocar estes temas na lista de preocupações dos já aterrorizados norte-americanos. É que as decisões destes eleitores terão consequências directas na nossa felicidade. Como no outro dia dizia um dos directores da Yukos (a maior petrolífera russa), a solução para grande parte dos problemas do mundo é a não re-eleição do Presidente Bush. Não serei tão simplista, mas os dirigentes belicistas como Ariel Sharon, Yasser Arafat, George W. Bush, Kim Jong Il têm que ser afastados. Estes irresponsáveis não entendem que a violência e intolerância só traz mais violência e intolerância e assim não chegamos a lado nenhum... É preciso estimular os dirigentes que seguem políticas diferentes como foram Nelson Mandela, Gro Brundtland, Sérgio Vieira de Mello e Mikail Gorbatchev ou como é Kofi Annan. Infelizmente, não parece haver seguidores com as mesmas intenções e fibra.

2. Mais um modelo científico vem confirmar que a quantidade de pescado disponível no mar do Norte é significativamente inferior ao potencial da área. Os investigadores responsáveis pelo modelo científico pertencem ao Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES), o mais reconhecido e respeitado órgão de apoio à decisão da política de pescas da Europa. É interessante verificar que o país que mais respeita as orientações científicas da Europa, a Noruega, é simultaneamente aquele em que os pescadores têm melhores rendimentos e dos poucos que não pertence à União. Sintomático? Oxalá o novo Comissário para as Pescas, Joe Borg, de Malta, tenha uma visão diferente do seu antecessor e respeite as recomendações científicas.

3. Estes dois casos vêm reforçar que é absolutamente urgente que o cidadão entenda a realidade e estabeleça prioridades quando exerce o seu direito/dever democrático de votar. A arma das sociedades avançadas deve ser utilizada com reflexão e tendo em vista as grandes opções que nos condicionam a longo prazo e não o resultado de um qualquer “fait-diver” momentâneo. Só assim os políticos irão entender que devem tomar as opções adequadas e não as mais populistas. Pelo menos é assim que eu penso e o próximo desses importantes momentos é já dia 17.

quarta-feira, 15 de setembro de 2004

Câmara de Descompressão

Qualquer mergulhador que utilize um instrumento de auxílio à respiração subaquática está sujeito a um conjunto de problemas de saúde. Estes problemas são estudados por um ramo particular da medicina, a medicina hiperbárica. Genericamente, o que acontece é que os seres humanos, ao respirarem um gás a uma pressão elevada, não reagem da mesma forma que à pressão normal (cerca de 1 atmosfera). Por exemplo, a partir de certa pressão, por causa da toxicidade do Azoto (um dos gases quem compõe o ar) passa-se mesmo a sofrer de uma doença chamada narcose. Deixa-se de raciocinar de forma adequada, parecendo as reacções do mergulhador semelhantes a um indivíduo ébrio. Felizmente, o regresso a uma profundidade adequada liberta novamente o mergulhador desta “bebedeira das profundidades”. Caso insista em submergir, o mergulhador poderá chegar a um ponto em que a pressão parcial do Oxigénio (outro dos gases que compõe o ar) seja tão elevada que se torna tóxica. A esta pressão/profundidade pode-se entrar em convulsões e, no caso limite, morrer. Outro dos gases que compõe o ar e que nos pode trazer problemas, quando submergidos, é o dióxido de Carbono. Quando estamos a mergulhar e nos cansamos muito, involuntariamente, aumentamos o ritmo respiratório causando uma certa ineficiência na respiração. Nesse caso, a concentração de dióxido de Carbono aumenta e o mergulhador ganha uma certa sensação de claustrofobia que, nos casos mais graves, resulta em pânico. Refiro estas três patologias para enfatizar que os três gases que maior importância têm na nossa respiração, debaixo de água, são uma “carga de trabalhos”.
No entanto, a patologia que mais aterroriza os mergulhadores é o acidente de descompressão. Esta patalogia ocorre quando, depois dos gases se misturarem com o sangue a uma determinada pressão, há uma diminuição súbita de pressão no ambiente, ou, por outras palavras, é igual a uma subida rápida. Isto resulta num aumento repentino do volume de Azoto que, formando pequenas bolhas gasosas, pode bloquear os vasos sanguíneos. É o equivalente a uma trombose. Ao contrário da trombose, no entanto, caso sejam imediatamente tratados, os casos ligeiros de acidente de descompressão têm cura. É especialmente para esses casos que é indispensável a existência de uma câmara hiperbárica. No interior desta câmara, semelhante a um cilindro de grandes dimensões, os mergulhadores estão sujeitos a um “mergulho” controlado por forma a que, por aumento da pressão, se reduzam o tamanho das bolhas de Azoto e se desbloqueiem os vasos sanguíneos. Parece simples mas, na realidade, é um pouco complicado. Entre outros factores, há sequências de mergulho (tempo vs. profundidade vs. misturas gasosas) determinadas clinicamente, de acordo com a gravidade e tipo de acidente.
O único instrumento essencial para isto funcionar é a dita câmara. Este instrumento tem associada uma equipa de pessoas constituída, pelo menos, por um médico e um conjunto de operadores. O médico deverá ser especialista em medicina hiperbárica, liderar o grupo de operadores, treinando-os e, em caso de acidente, indicar com detalhe a sequência de operações que cada um deverá executar. Este médico deverá estar ainda encarregue de fazer a supervisão técnica da câmara, zelando pela sua conservação e precavendo as suas manutenções periódicas.
O que acontece com a câmara de descompressão da Horta (propriedade do Clube Naval e instalada sob protocolo no Hospital) é que, apesar de todos os alertas, a manutenção periódica não foi realizada. Em termos legais a câmara não pode operar (Decreto-Lei 97/2000) e em termos morais a sua operação poderá ser delicada. Ou seja, os operadores e doentes que entram na câmara sujeitam-se a um risco acrescido. Eu sou um dos operadores da câmara hiperbárica e um potencial doente, dado que mergulho quotidianamente. O risco no seu funcionamento é confirmado pelo médico que nos treinou, enquanto operadores, e que sempre liderou a operação da câmara hiperbárica, Dr. Luís Quintino. Este médico, especialista em medicina hiperbárica, considera que a câmara tem mesmo de ser revista e não está em condições de trabalhar. Penso compreender, em parte, a posição da Administração Hospitalar (por quem tenho estima) ao querer orientar as escassas verbas dos Serviços de Saúde para outras áreas que considera prioritárias. Mas, quando houver um acidente de descompressão, e eles irão inevitavelmente e infelizmente acontecer, quem me irá pedir para entrar dentro da câmara? Ou sequer operá-la? Caso haja uma ruptura, com descompressão imediata da câmara, todos os que estiverem no seu interior poderão ficar com embolias. Caso haja um incêndio, a câmara pode explodir com consequências graves até para o edifício do hospital. Tendo tudo isto em atenção, quem irá pedir aos operadores voluntários para operar uma câmara hiperbárica sem a revisão efectuada? Quem terá coragem de o pedir aos meus colegas? Eu não. Quando houver o próximo acidente teremos de decidir entre arriscar a nossa vida acima do admissível ou salvar um outro ser humano. Não me parece justo.
Por outro lado, caso a câmara encerre em definitivo, quem irá socorrer um turista que venha aos Açores e tenha um azar de mergulho? Quem dará apoio aos mergulhadores lúdicos, aos técnicos do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores e outros profissionais caso haja um acidente? Compreendo que as verbas anunciadas para realizar a revisão sejam elevadas, e até penso que não deverá ser o Hospital directamente a suportá-las, mas considero que se devem arranjar soluções urgentes para este delicado problema. A utilização desta câmara já recuperou duas dezenas de mergulhadores. Muitos deles, caso não houvesse câmara, teriam sequelas para toda a vida.
Para além destes casos, resultantes de acidentes de mergulho, há uma série de patologias (p. ex. complicações acessórias aos diabetes, intoxicações por monóxido de Carbono, infecções por micróbios anaeróbios, etc.) que poderiam beneficiar com a utilização terapêutica da câmara. Não sou médico por isso não me irei alargar neste tema, no entanto, estou certo que a Ilha do Faial e o Arquipélago dos Açores ficarão mais pobres caso percam esta valência.