É verdade que tenho uma relação de amor-ódio com a caça-submarina. “Amor” porque gosto muito de comer peixe grelhado, porque considero um desporto de grande potencial para a manutenção física, porque constitui uma óptima ferramenta de trabalho e porque tenho imensos amigos que são inveterados caçadores submarinos. “Ódio” porque não gosto de matar animais, porque me custa constatar que há um desporto cujos objectivos incluem tirar vidas e porque vejo comportamentos excessivos em muitos caçadores submarinos. Num mundo perfeito, poderíamos desejar que todas as nossas posições e decisões fossem baseadas em factos e sentimentos perfeitamente diferenciados entre claro e escuro, sim e não ou verdade e mentira. Infelizmente, não é assim. Há uma enorme e apaixonante área cinzenta que corrói e motiva, que angustia e excita e que, no fundo, nos faz pensar, dialogar e, por vezes, chegar a novos patamares de verdade. O que estou a escrever é um pouco de filosofia de algibeira, mas, neste caso, serve para ajudar a explicar que em relação à caça-submarina estou numa enorme área cinzenta.
Quando comecei a nadar pelo mar, acompanhava os meus amigos mais velhos que me explicavam o que fazer para que usufruísse do desporto e não colocasse a minha vida em risco. Felizmente, sempre fui suficientemente temente para não cair em exageros estúpidos. Um dia, aproximou-se de mim um enorme lírio. Olhei para ele e fiquei fascinado. Fiz sinal aos meus colegas de caçada e eles, à beira da histeria mas demasiado longe para poderem disparar, esbracejavam para que atirasse sobre o animal, que continuava a olhar para mim, para os meus olhos, entre a pergunta e a curiosidade, digo eu. A boca movimentava-se pausadamente, os opérculos abriam e fechavam do alto da experiência de um ser que tinha certamente navegado durante anos a fio pelo azul que eu estarei sempre condenado a desejar conhecer. Disparei. O arpão acertou-lhe a meio do corpo, partindo-lhe uma vértebra, mas sem o penetrar. O peixe caiu para o fundo, rodopiando sobre si próprio até ficar preso entre duas pedras. Estava morto, ou praticamente, mas longe do meu alcance respiratório. Enquanto esperava que os meus colegas de grande capacidade torácica recuperassem o peixe, fiquei a olhar para ele. Senti-me mal por ter destruído aquela vida. Uma vida que eu sou capaz de jurar que, por um momento, olhou para mim com a excitação do encontro com um alienígena. A minha retribuição foi matá-lo. Depois seguiram-se as felicitações pela captura da bela presa e os insultos pelo mau tiro. Nada disso interessava. Senti que o meu caminho não seria aquele.
Depois desse dia, infelizmente, já matei mais animais do que gosto de imaginar. Em nome da ciência, claro está… Utilizei quase todos os métodos para neutralizar e analisar organismos marinhos e, garanto-vos, nenhum me deu prazer. Claro que, se não gosto de fazê-lo profissionalmente, menos ainda por desporto.
Ao longo dos tempos, até porque tenho sentimentos contraditórios, tenho tentado pensar a caça, falar sobre caça e até escrever sobre caça. Penso que neste caminho, já cheguei a diversas conclusões. A primeira é que a caça-submarina é um desporto perigoso. Evidentemente que se for praticado seguindo as regras de segurança básicas dificilmente haverá um problema. É certo e não discordo, mas, infelizmente, há muita gente a infringir essas regras…
Por outro lado, a caça-submarina é uma actividade extractiva e como tal tem impacto ambiental evidente. Dir-me-ão, e com razão, que há acções muito piores que a caça e que não estão devidamente controladas. É verdade, mas “com o mal dos outros podem eles”. Os caçadores submarinos, amantes do mar, devem entender este facto que é na realidade bastante simples: “praticam uma actividade com impacto ambiental”. Portanto, é uma actividade que tem de ser pensada antes de ser executada para que o impacto seja mínimo.
Outro facto é que a caça, em Portugal, é um desporto. Sendo um desporto, tal e qual como a pesca lúdica, terá sempre menor prioridade que as actividades com interesse económico directo. Atenção, eu não estou a afirmar que a caça deve ser banida, nada disso! Estou simplesmente a afirmar que, em certas situações limite, a caça é menos prioritária que outras actividades extractivas. Isto é, em certas situações, podemos estar perante um recurso escasso que pode apenas ser explorado por um sector. Nesse caso extremo a quem daremos prioridade? A quem tem filhos para alimentar ou a quem pratica a actividade por desporto? Parece-me que a resposta é simples.
Tendo estes factos em conta, eu sou apologista de que haja maiores restrições nas regras instituídas para a caça-submarina. Estas restrições devem manter-se enquanto não estiverem preenchidos alguns requisitos simples. Um primeiro requisito é a instituição de cursos de caçador submarino. É inadmissível que, repetidamente e abusivamente, os caçadores utilizem manobras como a hiper-ventilação, disparar dentro de buracos, enrolarem-se nos cabos das armas, etc… Não é admissível que um caçador submarino não tenha sequer o respeito de saber o nome da sua presa antes de disparar. Na minha opinião é inaceitável que se cacem peixes que não fogem, porque estão em época de reprodução. Não pode acontecer que se cace em zonas protegidas, ou que se cacem espécies em perigo. Tirar uma vida e extrair um recurso são actividades que não carecem apenas de uma licença, precisam de conhecimento. Eu acredito vivamente na capacidade auto-educativa e, portanto, admito que até não haja curso, mas tem de haver um exame que comprove a responsabilidade e o conhecimento. Dir-me-ão os críticos deste texto que tudo isto é inútil porque os verdadeiros caçadores respeitam estas e outras regras sem necessitar de mais uma burocracia. A isto eu apenas posso responder que haverá então muito falso caçador submarino por esse mar fora.
Mas não é tudo, o primeiro passo para se poder pensar em facilitar as regras da caça submarina, é instituir um código de conduta voluntário. Esta mesma revista já tentou fazer trabalho nesse sentido, mas onde é que ele está? E quem é que o respeita?
É também absolutamente necessário instituir áreas marinhas protegidas, propostas e respeitadas também pelos caçadores submarinos, para que se possa garantir a existência de ambientes pristinos. Os benefícios destas zonas são evidentes e por todos conhecidos, mas quando é que avançam? É responsabilidade de todos os que gostam de mar certificar que os nossos governantes pensem em instituir áreas geográficas adequadas.
Claro que temos também de pensar em limitações à quantidade dos animais capturados. Para um desporto como a caça, a limitação de cinco peixes por caçador por dia como existe nos Açores e Madeira parece-me particularmente adequada. Concordo que era muito mais lógico que esta limitação fosse feita ao nível da espécie (não é a mesma coisa capturar cinco lírios ou cinco badejos), mas como implementar uma regra desse género se muitos caçadores não conseguem distinguir um mero dum badejo…? Se não conseguem fazer essa distinção, as limitações em termos de comprimento, muitíssimo importantes, também deixam de fazer sentido.
Por último, a fiscalização. Enquanto não existir um sistema de fiscalização adequado nada do que sugeri atrás será eficiente. Enquanto os próprios polícias marítimos não souberem identificar as espécies, enquanto não tiverem os meios humanos suficientes e enquanto não tiverem os meios adequados para intervir no mar, estas regras não serão respeitadas e, portanto, não faz sentido pensar em as aplicar.
Em jeito de súmula, na minha opinião, a caça submarina é um óptimo e saboroso desporto, que deve ser praticado por quem gosta, mas seguindo e respeitando um código de conduta exemplar. Quem é que está preparado para o fazer?
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