Jovem cagarro no ninho
Foto: PH Silva SIARAM
Tenho acompanhado na internet, via Facebook, algumas dúvidas
sobre a adequação da “Campanha SOS Cagarro”. São dúvidas legítimas e oriundas
de pessoas que não se limitam a absorver a informação disponível. Querem saber
mais e querem saber porquê. Pessoalmente, considero a dúvida uma das mais
importantes características humanas e, por essa razão, tenho-me empenhado em
esclarecê-las de imediato. No entanto, para um público mais alargado, aqui
ficam algumas considerações.
Os cagarros, ou cagarras como lhes chamam nalgumas ilhas,
são aves marinhas extraordinariamente bem adaptadas ao seu meio. Por essa
razão, é quase totalmente correcto quando se afirma, e bem, que não precisam da
nossa ajuda e que até agradeceriam se não os perturbássemos. O problema é que
nós os perturbamos. Ou seja, a nossa qualidade de vida tem interferência
directa no ciclo biológico dos cagarros desde que chegámos às ilhas, há cinco
séculos atrás. Nos primeiros tempos, interferíamos capturando-os (para alimentação,
uso do óleo e uso de penas), depois com a ocupação do espaço que utilizam para
nidificação e, mais recentemente, com o uso massivo de luzes. Na realidade, os
cagarros, espécie que se salva nesta época, não foi a espécie de ave marinha
dos Açores que maior declínio sofreu com a presença do homem. Há indicações que
os estapagados seriam os mais abundantes, mas que os primeiros colonizadores os
terão dizimado até níveis hoje bastante reduzidos. Nunca recuperaram o seu
efectivo inicial.
Voltando aos cagarros. Estes animais põem apenas um ovo por
ano. Se esse ovo não tiver sucesso, não haverá nova postura, como acontece, por
exemplo, com as gaivotas. Isso significa que o casal fará um enorme esforço
para que aquele ovo tenha sucesso. Assim, o macho e a fêmea, durante o período
de incubação, ir-se-ão substituindo no ninho garantindo que o ovo está quase
sempre acompanhado. Como o esforço de 55 dias de incubação é grande, se os
progenitores tiverem a garantia que o ovo não irá ter sucesso por, por exemplo,
ter-se partido, abandonam-no de imediato. Uma das razões que pode levar ao
abandono é a demora do parceiro nas saídas para a alimentação. Ou seja, entre a
cria ou a própria vida, os cagarros optam pela segunda.
Apesar disso, e como é muito importante o sucesso da
nidificação, os cagarros, em caso de dúvida, continuarão a incubar o ovo.
Investigadores da Universidade dos Açores já viram cagarros a incubar ovos
visivelmente (e olfactivamente) putrefactos.
Também pode acontecer que um dos progenitores tenha um
acidente durante a época reprodutiva ou que tenha de viajar para uma longa
distância, por exemplo por falta de alimento nas zonas circundantes do ninho.
Em qualquer destes casos, será fatal para o ovo.
Até aqui, tudo é natural. Ou seja, está no que pode ser
referido como mortalidade sem influência do homem. Os problemas começam com o
nascimento do pinto.
Durante os primeiros dias, o pinto terá sempre a companhia
de um dos progenitores, para o manter quente e alimentar e isso contribuirá
para a sua provável sobrevivência. Depois desta fase inicial, os pais terão
dois tipos de voos. Um voo curto, para ir buscar alimento para o pinto, e um
outro longo, para ir buscar alimento para si próprios. Este voo longo implica
deslocações de milhares de quilómetros.
Os cientistas ainda não têm a certeza da razão porque os
cagarros fazem dois tipos de voos, mas adiantam duas hipóteses: ou não há
alimento suficiente para os pintos e adultos em volta das ilhas dos Açores, ou
os cagarros precisam de outro tipo de alimento, por exemplo mais nutritivo que
ocorre nas águas mais ricas e frias do Atlântico norte. A tendência é para
aceitar a primeira, mas ainda não está completamente claro.
Normalmente estas viagens são alternadas de modo a que a
cria seja alimentada à noite com alguma frequência por um dos progenitores.
Apesar de surpreendente, o que referi neste parágrafo está cientificamente
estudado pela Doutora Maria Carvalho, do Departamento de Oceanografia e Pescas
da Universidade dos Açores (DOP), que colocou transmissores e seguiu os
cagarros por via satélite. Se a falta de alimento implicar a saída dos dois
pais, o pinto, especialmente nos primeiros dias estará totalmente vulnerável ao
ataque de gatos e ratos. Repare-se que não existiam gatos nem ratos nas ilhas
antes do homem cá chegar, portanto, é mesmo nossa responsabilidade o que lhes
acontece neste período e, pior, ainda não encontrámos forma de contrariar este
efeito.
No final deste período, os cagarros terão de
"explicar" ao seu pinto que está no momento de ele seguir a sua vida.
Na maioria dos casos, a forma de dar esta explicação é um pouco cruel: os pais
abandonam os pintos nos ninhos. Neste período em que estão sós, os pintos são
especialmente susceptíveis aos ataques por gatos. Normalmente, nesta fase, os ratos
já não se conseguem impor às crias que, entretanto, ganharam uma massa corporal
que impõe algum respeito.
Na ilha do Corvo, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das
Aves fez um trabalho científico em que estimou que a mortalidade nos ninhos é
de 60%. Este número deveria, naturalmente, rondar os 35%. É um número
verdadeiramente assustador e é responsabilidade do homem.
Depois, os 40% que conseguem sobreviver, saem dos ninhos,
esticam as asas e fazem o primeiro voo. Como já foi referido, estes jovens cagarros
viveram sempre dentro dos ninhos, portanto, nunca viram qualquer luz até
iniciarem os procedimentos para o primeiro voo. Ao sair, à noite, são
confrontados com a iluminação pública, os faróis de sinalização marítima e as
luzes dos carros. Atrapalhados ou não, alguns caem nas estradas e nos quintais.
Se nada se fizer, estes cagarros são presas fáceis para gatos e cães e, muitos
deles, são também colhidos fatalmente pelos automóveis. Repare-se que eles caem
por causa do homem, caem em estruturas feitas pelo homem, são vítimas de
animais introduzidos pelo homem ou são atropelados por máquinas feitas pelo
homem. Nós temos, de facto, responsabilidade.
Por estas razões todas, o mínimo que podemos fazer é dar uma
ajuda a estas aves e colocá-los junto à costa de onde poderão partir quando
considerarem adequado. Nunca se deve atirar um cagarro para dentro de água.
Coloca-se perto da água e ele partirá quando considerar que está pronto.
Dos jovens cagarros que saem dos ninhos e caiem sobre as
estradas, hoje em dia, 90% são salvos pela “Campanha SOS Cagarro”. É um número,
de facto, enorme. No entanto, há ainda 10% que são atropelados, embatem
fatalmente contra os edifícios sobre iluminados ou são atacados pelos animais
domésticos.
Já agora, completando a história, o que acontece a seguir é
o seguinte. Destes cagarros, nem todos terão a capacidade de se alimentar em
tempo. Repare-se que eles apenas saíram dos ninhos porque estão esfomeados.
Muitos, portanto, acabarão por morrer de fome. Estima-se que 50% morram de fome.
Se admitirmos que os humanos não têm influência na abundância do pescado de que
se alimentam os cagarros, esta é uma componente da mortalidade que é natural.
Sendo mortalidade natural, não temos o dever ou sequer o direito de interferir.
Neste período, depois de chegarem à água, os jovens cagarros
reúnem-se em enormes bandos em volta das ilhas. Disse-me um amigo pescador que
os cagarros estão, neste preciso momento, nestes bandos em volta da ilha do
Faial. Oxalá se consigam alimentar!
Depois, irão passar cinco anos seguidos no mar sem nunca
pisar terra. Circularão entre o Oceano Atlântico Norte e Sul e, alguns, já
foram detectados mesmo no Oceano Índico. São viagens enormes. É para ter a
certeza de onde veem e para onde vão que tentamos anilhar os cagarros. É mais
uma interferência do homem e que se justifica para tentarmos aprender mais
sobre a circulação global. Ao mesmo tempo, sabendo o ano em que foram anilhados
e contando os que regressam, ficaremos a saber muitas outras informações sobre
o seu ciclo de vida. É por isso que é tão importante a sua anilhagem.
Apesar de chegarem a terra pela primeira vez quando têm
cerca de 5 anos, eles não se reproduzem de imediato. Irão amadurecer durante
mais três ou quatro anos até que estejam aptos a fazer ninho, encontrar
parceiro e a reproduzirem-se. É nestas vindas anuais a terra que os cagarros,
já adultos, irão aprender a conviver com as luzes e, como notamos nos cagarros
mais adultos, ganharão a habilidade de não ficarem tão perturbados com as
mesmas.
Segundo os estudos do Doutor Joël Bried, do DOP, os cagarros
são animais razoavelmente fiéis. Isto é, depois de encontrarem um parceiro, se
nada de mal lhes acontecer, manterão a relação para o resto da vida. Há casos
de divórcios, mas são raros (18%). Durante o Inverno separam-se em busca de
alimento, mas, no início da Primavera encontram-se junto de terra. Para evitar
os predadores, os bandos de cagarros encontram-se todos os finais de tarde
junto às ilhas, esperando o anoitecer, e depois sobrevoam as costas, cantando a
música que apenas o parceiro conseguirá decifrar.
Esta característica, de virem para terra apenas ao
anoitecer, é provavelmente uma adaptação aos predadores. Na Selvagem Grande do
arquipélago da Madeira, em que não há predadores, os cagarros chegam a terra
ainda durante o dia. Por curiosidade, sem razão aparente, o mesmo não acontece
na Selvagem Pequena. Será que já ali houve predadores…?
Depois de se encontrarem, os casais de cagarros farão os
procedimentos nupciais e o ciclo reinicia-se.
Em termos numéricos, os 188 mil casais existentes nos
Açores, dada a competição por ninho e incapacidades reprodutivas naturais, põem
170 mil ovos. Destes, 68 mil saem actualmente dos ninhos. Caso não houvesse a
Campanha SOS Cagarro, cinco a dez mil morreriam em terra. Portanto, chegariam
ao mar 58 mil. Destes, morrem naturalmente metade, ou seja, 29 mil poderiam
partir para a primeira migração para Sul. Se o homem e seus animais introduzidos não existissem, a
mortalidade nos ninhos seria mais baixa, não havia mortes na saída e, portanto,
mesmo com 50% de mortalidade no mar, por fome, teríamos cerca de 55 mil
cagarros.
Ou seja, números crus, o homem implica uma redução anual no
sucesso reprodutivo dos cagarros de 55 mil para 29 mil animais. Uma redução de
quase dois para um. Se podemos ajudar um pouco com a “Campanha SOS Cagarro”,
penso que temos o dever moral de o fazer.
Com este acto, subimos os valores dos Cagarros na primeira
migração de 29 para 34 mil aves. Pode parecer pouco, mas é um aumento de 17%.
Nós podemos influenciar em 17% por cento por ano o sucesso desta espécie. Vamos
ficar a olhar para eles na berma da estrada ou agir? Penso que a resposta é
simples e este ano foi positivamente partilhada por mais de 4700 açorianos. Não
apenas salvaram cagarros, como reduziram a iluminação pública e privada e
tiveram cuidados adicionais com a condução.
Como referi anteriormente, embora não seja uma questão que
esteja estudada cientificamente, as ilhas que mais cagarros têm são aquelas em
que há historicamente mais empenho na “Campanha SOS Cagarro”. Este facto
indicia a importância e consequência desta acção. Vemo-nos na “Campanha SOS
Cagarro 2012”?
Todas estas questões são escalpelizadas no sítio internet http://soscagarro.azores.gov.pt.
Pubicado no Jornal Tribuna das Ilhas de 2 de Dezembro de 2011
Publicado no Jornal Correio dos Açores nos dias 6 de Dezembro e 7 de Dezembro de 2011
Pubicado no Jornal Tribuna das Ilhas de 2 de Dezembro de 2011
Publicado no Jornal Correio dos Açores nos dias 6 de Dezembro e 7 de Dezembro de 2011
Simplesme brilhante, muitos parabéns .
ResponderEliminarMagnifico artigo, um regalo. Parabéns.
ResponderEliminarVou recomendá-lo ao clube de ambiente da minha escola.
Após a leitura fico ainda mais convencido que a intervenção da a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves no Ilhéu de Vila Franca do Campo deveria ser muito mais cautelosa. As intervenções são no meu entender demasiado grandiosas para um espaço tão frágil. Deveria e poderia haver alguém, independente, que acompanhasse toda a intervenção sem o amen que reina. Por exemplo este ano os cagarros nidificaram, mais abaixo, mais perto dos trilhos dos banhistas. Terá sido por a zona superior ter sido intervencionada?. A introdução de ninhos artificiais será benéfica?, os garajaus não estiveram no Ilhéu este ano, porquê?