Os cabos submarinos no Atlântico Norte no início do século XX.
Ao
contrário do que muitos eventualmente pensarão, em tempos de avançadas
tecnologias espaciais uma componente muito significativa das comunicações a
longa distância não é feita via satélite. Na realidade, grande parte da
transmissão de informação a média e a longa distância realiza-se por cabo. Entre
continentes e para os territórios isolados pelo mar, como as regiões
arquipelágicas, a comunicação flui através de cabos submarinos. Nos Açores, as
grandes limitações à transmissão de informação célere e de qualidade verificam-se
precisamente nas ilhas que ainda não têm ligações em fibra óptica por cabo
submarino, ou seja, nas Flores e no Corvo.
Dado
o seu posicionamento, aproximadamente no centro do Atlântico, as ilhas dos Açores
são uma peça importantíssima na transmissão de informação. São-no hoje e ainda
mais o eram no final do século XIX e durante a primeira metade do século XX. Nessa
época, surgiram nos Açores importantes estações das principais companhias de comunicações,
algumas com empresas especificamente criadas para as operarem, caso da
britânica Europe & Azores Telegraph Company. Não tendo a tecnologia
avançado o suficiente para que a transmissão se fizesse de uma vez só através
de todo o oceano, foi necessário criar estações que fizessem de alpondra entre
o novo e o velho mundo. Com estas estações regeneradoras reforçava-se o sinal
telegráfico que, de outra forma, perder-se-ia na resistência dos cabos.
A
seleção dos Açores como local apropriado para a instalação das companhias terá
tido várias razões que nos escapam, mas parece ter sido importante a possibilidade
de evitar as avarias mecânicas que os arrastões de pesca do Atlântico mais a
norte provocavam nos cabos. Os Açores constituíam assim o elo mais próximo e
seguro entre a Europa e os Estados Unidos.
Ao
mesmo tempo, o Governo Português facilitou o uso de uma ilha do grupo Central impondo
como condição que as companhias que se aí instalassem servissem também as
restantes ilhas. Desta forma, via Faial, as ilhas do Pico, São Jorge, Graciosa
e Terceira passaram a usufruir de comunicações internacionais.
Já
a escolha recaiu sobre a ilha do Faial por outro tipo de razões. A Horta e a
sua baía, hoje classificada como uma das mais belas do mundo, eram já então
reconhecidas pelo abrigo seguro para os navios que cruzavam o Atlântico Norte e
pela sua posição razoavelmente equidistante dos dois lados do oceano.
Também
a presença da família Dabney no Faial, que lhe reforçou a importância económica
e a visibilidade internacional, parece ter sido um fator de relevo. Ironicamente,
a família Dabney acabou por sair do Faial um ano antes da instalação da
primeira companhia telegráfica.
Nos
anos 30, a Horta chegou a ser um dos maiores centros cabográficos do mundo, dispondo
de 15 amarrações de cabos aos dois continentes ribeirinhos e a Cabo Verde.
Apesar
de hoje se continuar a comunicar por cabos submarinos, a automatização das
comunicações e os desenvolvimentos tecnológicos tornaram obsoleta a necessidade
de manter técnicos e estruturas avultadas a meio do Atlântico. Assim, o chamado
Tempo dos Cabos Submarinos da Horta, que teve início em 1893 com a chegada da britânica
Europe and Azores Telegraph Company, terminou em Dezembro de 1969, quando a norte-americana
Cable & Wireless fechou as suas instalações. Durante este período, para
além das empresas britânicas e norte-americanas, também uma companhia alemã (DAT
- Deutsch-Atlantische Telegraphengesellschaft) firmou e encerrou uma robusta
representação neste exíguo território. Foram deslocados para a Horta dirigentes
e técnicos de Inglaterra, da Alemanha, do Canadá, da Irlanda, da Escócia, de Cabo-Verde
e dos Estados Unidos da América. Deixo este último país para último porque,
dados os elevados salários exigidos pelos técnicos deslocados, as companhias
evitavam a contratação de cidadãos norte-americanos.
Hoje,
na ilha do Faial, ainda restam memórias desses tempos. As instalações da
companhia alemã DAT (hoje albergando departamentos do Governo dos Açores), o
bairro residencial da Western Union Telegraph Company (hoje o Hotel Fayal) e a
Trinity House (hoje a Escola Básica António José de Ávila) são, talvez, as
construções mais evidentes, embora integradas num espólio de mais de uma dezena
de estruturas identificadas e que fazem parte de um interessante roteiro de que
se pode disfrutar na cidade da Horta.
É
também de realçar a memória deixada nos clubes desportivos e nas associações
culturais. O pessoal das companhias, oriundo de horizontes completamente
diferentes da Horta daquele período, era escolhido pela sua competência
técnica, como é evidente, mas também pela capacidade de integração num meio
estranho e pelas competências ao nível desportivo e artístico. Foram estas
competências que levaram à formação e ao fortalecimento dos clubes desportivos
do Faial (basta ver a simbologia do Fayal Sport para compreender claramente isto).
Estão também elas na origem da maior expressão musical do Faial neste período.
Para além das quatro orquestras e bandas filarmónicas existentes no final do
século XIX, durante o Tempo dos Cabos Submarinos, a Horta teve, pelo menos,
mais cinco bandas de diferentes tipos e com constituições mistas entre
empregados das companhias e pessoas oriundas da ilha.
Manuel
António de Sousa Lopes (1907-2005), nascido no Mindelo em Cabo Verde, foi poeta
e empregado da companhia telegráfica inglesa, tendo estado colocado no Faial de
1944 a 1959. Curiosamente, foi neste período que este fundador do movimento
cultural “Claridade”, peça basilar da identidade cabo-verdiana, escreveu alguns
dos seus mais importantes textos. Diz-se que as saudades de casa o estimularam
a ser particularmente criativo e prolífero.
Foi
através dos funcionários das companhias dos cabos que foram introduzidas,
vulgarizadas ou mantidas no Faial novas tecnologias como a fotografia, o
cinema, o raio X, a eletricidade e o radioamadorismo. Foram
tempos fantásticos e que deram um espírito aberto aos que tiveram a felicidade
de viver na cidade da Horta nesses anos.
O
Tempo dos Cabos Submarinos na Horta merece ser estudado. Nesse sentido, têm
sido realizados colóquios, produzida documentação e dinamizados contatos
internacionais para estabelecer parcerias sobre este património comum. A motivação
do mundo académico e a reabilitação do equipamento técnico depositado no Museu
da cidade são também disso sinais. Sobre essa época, autores como Carlos
Silveira, antigo radiotelegrafista, Yolanda Corsépius, filha de um engenheiro
alemão colocado na Horta, o Professor Francis Rogers, o Doutor Ricardo Madruga
da Costa, a Professora Katja Grötzner Neves, neta de um técnico alemão colocado
na Horta, entre muitos outros, publicaram interessantes relatos. É importante relembrar
e perpetuar esta época crucial da cidade da Horta. Para entender o “ser
faialense” é essencial estudar o negócio do vinho, a presença dos Dabney na
ilha do Faial, a época baleeira, as grandes guerras, o tempo dos clippers, o surgir e o fortalecer da
autonomia regional e, não menos importante, o Tempo dos Cabos Submarinos.
É
preciso que a memória desse tempo seja perpetuada em espaço próprio. Diversas
entidades e pessoas nisso se têm empenhado. O Governo Regional, os
ex-cabografistas entusiastas e simpatizantes da Horta do Tempo dos Cabos
Submarinos, posteriormente organizados no Grupo dos Amigos da Horta dos Cabos
Submarinos, o Arq. Martins Naia, o Professor Henrique Melo Barreiros e antigos
funcionários têm feito um importante esforço para que se crie um espaço
museológico que salvaguarde o espólio tecnológico dessa época no “Operating
Room” da “Trinity House” e para que se reabilite o espaço urbano e os imóveis
que lhe serviram de palco, ou seja, as áreas mais relevantes do traçado dos
cabos desde os locais de amarração até ao seu ponto de convergência na Rua
Consul Dabney. Preconiza-se a sinalização de memoriais, tendo como referência
um “Roteiro do Cabo Submarino” proposto por Francis Rogers, integrando a
memória das instalações da Rádio Naval. Procurar-se-á, por outro lado,
estabelecer contactos com aqueles que foram os principais parceiros desta
epopeia.
Ao
mesmo tempo, é necessário que os atuais responsáveis pelo edifício que albergou
a diretor da DAT iniciem as obras de adaptação e o ocupem. Este edifício, que
faz parte do conjunto classificado como a “Colónia Alemã” e que já albergou o
Conservatório Regional da Horta, está a degradar-se rapidamente. É urgente
fazer-se alguma coisa.
Na
cidade da Horta, no primeiro e segundo quartel do século XX, em períodos
particularmente difíceis para a humanidade, transcenderam-se as fronteiras
linguísticas, políticas, sociais e religiosas, num verdadeiro e harmonioso
cosmopolitismo. Este passado, original em Portugal e, em certa medida, pioneiro
da globalização, deve ser motivo de enorme orgulho para todos os faialenses e
constitui uma luz orientadora para o caminho a seguir no futuro.
Bibliografia utilizada:
-
Carlos M. Ramos da Silveira (2002) O Cabo Submarino e Outras Crónicas
Faialenses. Núcleo Cultural da Horta, 184p.
-
Francis M. Rogers (1983) A Horta dos Cabos Submarinos. Delegação do Turismo da
Horta, 45p.
-
Vários autores (2011) O Porto da Horta na História do Atlântico: O Tempo dos
Cabos Submarinos. Museu da Horta e Associação dos Antigos Alunos do Liceu da
Horta, 173p.
-
Yolanda Corsépius (1999) Algumas Notas Sobre Aspectos Sócio-Culturais na Horta
no Tempo dos Cabos Submarinos. Edição do Autor, 56p.
Agradecimentos:
São
devidos agradecimentos a Yolanda Corsépius, ao Arq. Martins Naia e à Margarida
Abecasis, pela análise crítica deste texto, e à Biblioteca Pública e Arquivo
Regional João José da Graça, na Horta, pelo auxílio na seleção e
disponibilização dos recursos bibliográficos.
Ao
Grupo dos Amigos da Horta dos Cabos Submarinos, estrutura integrada na
Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta, um agradecimento muito
especial por todo o trabalho que têm conduzido e a que se deve a dinâmica que o
“Tempo dos Cabos Submarinos na Horta” tem tido nos últimos tempos.
Olhando para o futuro no Corvo:
montagem dos novos cabos submarinos que ligarão a fibra óptica do Corvo às Flores e ao
Faial e Graciosa.