segunda-feira, 29 de julho de 2019

Crónicas de Bruxelas: 49 - Anoitece

André Bradford à entrada do Parlamento Europeu em Bruxelas
Foto: Rui Soares


Pelos acasos que a vida vai compondo, encontramo-nos pela primeira vez em trabalho exactamente na cidade de Bruxelas em 2009, ou perto disso. Nesta cidade, o André Bradford, a certo passo, disse ao grupo que o acompanhava, eu incluído, “gosto de aqui estar”.
A vida deu voltas, revoltas e aqui nos voltamos a encontrar muitos anos mais tarde. Mais precisamente no dia 3 de abril de 2019. O André estava em campanha eleitoral para o Parlamento Europeu e veio à cidade de Bruxelas para participar num debate sobre agricultura dinamizado pela CAP.
De facto, foram muito poucas as vezes que estivemos juntos até que o André chegou novamente à cidade de Bruxelas e em nenhuma tínhamos falado mais do que alguns segundos. Quando nos encontramos pela primeira vez, nesta segunda vaga, falamos mais longamente de coisas agradáveis e outras menos. Quero crer que é da honestidade clara e escorreita que nascem as boas amizades. Foi o que aconteceu naquele dia.
Impressionou-me que o André não se tenha sentado na sombra da sua inevitável eleição (dada a posição confortável que tinha na lista do Partido Socialista) e tenha ido à conquista dos votos, com ações de campanha todos os dias, “excepto ao domingo”, disse-me ele. “Tento reservar, tanto quanto possível, o domingo para a família”. Mais um aspecto que lhe desconhecia e que muito me agradou. A preocupação com o conforto da família. Esta atenção foi uma constante nas mensagens que trocamos.
Não foi a ausência de adversário que o demoveu. Qual D. Quixote, foi lembrando os ausentes que eles também contavam e que queria trabalhar com todos depois de eleito. Um dos seus primeiros actos depois de eleito foi precisamente, e como tinha prometido, colocar-se à disposição dos adversários ausentes para com eles trabalhar. Uma acção de enorme dignidade.
Na minha lista de amigos, o André foi o último a entrar. Depois daquele três de abril fomos trocando mensagens, muitas vezes através da extraordinária equipa de campanha que montou em volta de si, para que, quando chegasse a Bruxelas, já eleito, pudesse adaptar-se tão rapidamente quanto possível.
Também me impressionou, e não menos, que, depois de eleito, tenha redobrado o empenho. Ainda antes de ter tomado posse, o André já vinha a Bruxelas regularmente, negociando as responsabilidades que queria assumir em defesa dos açorianos. Com argúcia, manteve o Gabinete de Bruxelas do seu antecessor, o eurodeputado Ricardo Serrão Santos. Com isso, com algum suor e com muita competência da sua parte ficou imediatamente em condições de entrar em funções ao mais alto nível, obtendo resultados para os seus Açores. Foi neste período que o André me disse, nesta fase já de viva voz, “não me importo nada de ser um desalinhado se isso for a melhor forma de servir os açorianos”. Nunca me deixou qualquer dúvida o laço de aço que o unia ao povo dos Açores.
Os resultados apareceram logo que iniciou as funções como eurodeputado sendo efectivo nas comissões de Agricultura e das Pescas e na delegação das relações com os Estados Unidos da América e suplente na Comissão de Desenvolvimento Regional e na Delegação das Relações com o Canadá. Percebi que os seus colegas eurodeputados reservaram, enquanto puderam, a coordenação dos socialistas nas Pescas para ele.
Já não nos voltamos a encontrar. Ainda trocamos umas mensagens, referindo futilidades, e a seguir o André iniciou a sua última luta. Nesse período, no Parlamento Europeu, fui abordado por pessoas, daquelas pessoas que são raposas velhas lá no sítio, que sabem muito e que são agudamente exigentes. Disseram-me elas que contavam com o regresso do André porque “é daqueles que se preocupa e que quer fazer. Não há por aqui muitos…” E é isto. Nem uma semana de trabalho como eurodeputado e já ele se destacava.
Impressiona-me muito a partida do André. Não há justiça na morte, mas esta tem um particular sabor a fel. O André era uma pessoa ambiciosa na vontade de fazer bem. Os Açores ficam sem o seu único representante no Parlamento Europeu e o mundo ficou mais pobre.
Anoitece na minh’alma e sei a razão. Hoje partiu o meu amigo André Bradford.

Bruxelas, 18 de julho de 2019

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Crónicas de Bruxelas: 48 - A refletir sobre o processo eleitoral no meio de uma enorme irritação

Comprovativo do voto antecipado.
Foto: F Cardigos


Como anunciei oportunamente e orgulhosamente através das redes sociais, eu votei nas eleições europeias. No dia indicado, desloquei-me à Secção Consular da Embaixada de Portugal em Bruxelas, identifiquei-me, peguei no boletim de voto e num envelope, fui até ao local apropriado, coloquei a cruz onde pretendia, dobrei o boletim em quatro, coloquei dentro do envelope, fechei-o, entreguei ao presidente da mesa que, por sua vez, o colocou dentro de um outro envelope, selou-o e remeteu-o à minha freguesia na Região Autónoma dos Açores.
Tudo perfeito?
Não!
O meu voto chegou aos Açores depois das urnas terem fechado e, portanto, não foi contabilizado. Eu, totalmente involuntariamente, contribuí para os mais de 80% de abstenção dos Açores nas eleições europeias.
Com que vontade fiquei eu e os restantes açorianos em voltar a participar no processo democrático? Porque irei gastar o tempo, a paciência e o dinheiro da Secção Consular de Portugal na Bélgica para que não se contabilize o meu voto?!
Que se passa com os responsáveis com o processo eleitoral em Portugal? Depois de mais de 28 anos de introdução do voto eletrónico na Bélgica (em 1991), ainda andam a fazer experiências em Portugal?! Rápido! Provem o que valem e lancem o voto eletrónico em todos os distritos e regiões autónomas de Portugal e no estrangeiro já nas próximas legislativas. O voto eletrónico é banal. Não tem qualquer ciência. Usa-se dos Estados Unidos até aos países bálticos há dezenas de anos.
Em Portugal não se usa voto eletrónico porque os responsáveis simplesmente não fizeram o suficiente. Com esta falta de eficiência debilita-se ainda mais a democracia. Querem mesmo que as pessoas desistam totalmente de participar?! Estão a jogar ao perde-ganha com um sistema que custou anos de luta, as vidas de pessoas de bem e a liberdade de muitos homens e mulheres.
Estou irritado, caso não se note…
Um dos funcionários do consulado já me tinha dito, “voto para os Açores… Tem a certeza que chega a tempo?” Garanto que não coloquei minimamente a possibilidade das suas suspeitas terem fundamento. Afinal de contas, Portugal gastou muito dinheiro com o voto antecipado, nomeadamente para os portugueses deslocados em missão (uma boa ideia!), e, portanto, certamente, alguém estudou o assunto e concluiu que os votos chegariam a tempo ao seu destino. Ou não…? Reparem, eu estou no centro da Europa, mas quantos votos oriundos do Brasil, do Havai, dos militares em missões humanitárias em África e de outros sítios onde há portugueses deslocados em serviço terão sido validados?!
Não “coloquei a hipótese”, como referi atrás, mas fiquei a remoer. Quando o remoer me chegou ao hipotálamo, escrevi para os Açores e pedi para verificarem. Não demorou muito para me darem a má notícia.
Raios!? Que se passa? 28 anos depois de se começar a votar eletronicamente, em Portugal ainda se fazem as primeiras experiências?! As primeiras experiências… Estou irritado porque o meu voto foi inútil, por ter contribuído para abstenção e por não haver ainda voto eletrónico em Portugal. Claro que estou irritado!

Notas:


segunda-feira, 1 de julho de 2019

Crónicas de Bruxelas: 47 - Gabinete do Plano de Portugal


Transportes públicos gratuitos em Bruxelas?
Foto: F Cardigos

Estamos entre períodos eleitorais. A seguir às recentes eleições para o Parlamento Europeu, seguir-se-ão depois do Verão, as eleições legislativas nacionais e as eleições regionais na Madeira. Nestes períodos há sempre tendência a exagerar nos feitos e, principalmente, nas promessas.
Como resultado desta dialética, as pessoas perdem-se nos cantos de inverdades, na folia de promessas razoavelmente irresponsáveis, exageradas ou mesmo impraticáveis, desiludem-se, desmotivam-se e muitas optam por não votar ou votam em soluções radicais. Veja-se o Brexit…
Para evitar isso, a Bélgica criou o Gabinete Federal do Plano (GFP). Este é um órgão independente e de interesse público. Realiza estudos e previsões sobre questões de política económica, social e ambiental e sua integração numa perspetiva de desenvolvimento sustentável. Qualquer medida proposta por um partido político antes das eleições tem de passar pelo escrutínio do GFP. Caso o GFP chumbe a medida proposta, esta não pode ser usada pelos candidatos a cargos públicos durante as eleições. Com este Gabinete, a Bélgica limitou muito a ação dos partidos extremistas nas suas promessas de coisas impossíveis e elevou o grau de responsabilidade. Como resultado secundário, não podendo digladiar-se abertamente na penumbra da dialética enganadora, os partidos passaram a ser mais pragmáticos na mensagem. Aqui, claramente, a bandeira do pilar social é do PS/SP.a, do ambiente é dos Ecolo/Groen, da independência do norte da Bélgica é do NVA, a da intolerância é do VB, a da família é do CDH/CD&V, o liberalismo é do MR/OpenVLD, etc.
Portanto, aqui na Bélgica, quando uma pessoa vai votar, não tem dúvidas sobre qual das propostas ideológicas é prioritária na sua opção. Questões como um novo aeroporto ou um novo hospital passam a secundárias porque o Gabinete escortina previamente se são adequadas e sustentáveis. Obviamente, se são adequadas para o desenvolvimento sustentável da Bélgica, quem será contra? Não faria sentido… Nesse caso, a luta de prioridades torna-se relevante (o aeroporto ou o hospital?) e, como dito atrás, a luta de ideias passa a central.
Por exemplo, na preparação das eleições regionais de Bruxelas, um dos partidos políticos considerou que ter transportes públicos gratuitos seria a melhor opção em termos ambientais e sociais. Com receio de um chumbo do GFP, por potencialmente não ser sustentável do ponto de vista económico, esta força partidária decidiu estudar detalhadamente a proposta e o seu impacto nas contas públicas. Concluíram que não era economicamente sustentável e inibiram o uso da proposta por parte dos seus candidatos. Optaram por uma versão mais suave, que inclui transportes públicos gratuitos apenas para os menores de idade e reformados e isso, sim, passou no crivo do GFP. Portanto, haver transportes públicos gratuitos e para todos, que me pareceria à partida uma excelente ideia, não pode ser um argumento utilizável na campanha eleitoral.
A existência do GFP empurra as forças partidárias para um grau superior de responsabilidade que me parece muito sensato. Será uma estratégia a seguir em Portugal?


Referências: