sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Crónicas de Bruxelas: 54 - Vilões de hoje, heróis de amanhã?


Cookie, o gato
Foto: F Cardigos

Que têm em comum Aristides Sousa Mendes, o Edward Snowden e Rui Pinto? Muito pouco, de facto. No entanto há uma linha comum. Todos foram considerados heróis e vilões em simultâneo. 
Aristides Sousa Medes, um dos bons seres humanos que cruzou o planeta Terra, salvou milhares de refugiados, maioritariamente judeus, durante a segunda guerra mundial. O então Cônsul de Portugal em Bordéus, em desobediência a ordens superiores, concedeu vistos aos que se encontravam em fuga do terror nazi. Esse feito levou a que fosse alvo de diversas honras e que pertença ao exclusivo grupo dos “Justos entre as nações”. Há apenas quatro portugueses com esse título. No entanto, no Portugal de então, o Governo do ditador Salazar, retirou-lhe o vencimento durante um ano. Herói mundial, vilão no seu país.
Edward Snowden é um norte-americano que, em 2013, denunciou a ação de espionagem internacional perpetrada pela Agência de Segurança Americana. Os atos de espionagem incluíam a devassa sistemática da vida privada e pública, incluindo a escuta de governos amigos, como os Europa ocidental. Quanto a mim, este é um dos maiores crimes cometidos por um país dito democrata no século XXI. O denunciante, na minha perspetiva, merecia o Prémio Nobel da Paz, mas, ao mesmo tempo, tenho que admitir, à luz da lei norte-americana, é indiscutível que Edward Snowden terá de ser detido, julgado e, muito provavelmente, condenado e preso durante muitos anos por traição. Herói mundial, vilão no seu país.
Rui Pinto é um cidadão português que, alegadamente (ainda não foi julgado), terá devassado a privacidade informática de pessoas e instituições e terá distribuído essa informação por terceiros. Ao fazê-lo, aparentemente, terá exposto diversos vícios no mundo do futebol que permitirão melhorar o desporto-rei. O que Rui Pinto terá eventualmente feito é criminoso à luz da lei portuguesa, sem qualquer dúvida, mas, em Bruxelas, tem o título quase heroico de whistleblower. Whistleblower é o nome dado a quem denuncia, ao público ou às autoridades, atitudes mal-intencionadas por parte de organizações. Herói em Bruxelas, potencial vilão em Portugal.
Onde quero chegar com estes três casos? Quero enfatizar que podemos ter dois estados em simultâneo (heróis e vilões, no caso) e, que por muito estranho que isso possa parecer, eles são compatíveis. No mundo da física atómica, essa possibilidade foi teoricamente testada no início século passado naquilo a que se chamou o “Gato de Schrödinger”. De acordo com essa experiência, é possível teorizar que um gato dentro de uma caixa, nas condições experimentais propostas por Schrödinger, está, em simultâneo, vivo e morto.
Alguns seres humanos são colocados perante situações limite e, por vezes, a única saída moralmente por si aceitável é sacrificarem uma parte da sua vida ou uma das suas existências. Tal como Aristides Sousa Mendes, talvez um dia Edward Snowden e Rui Pinto sejam perdoados no seu país. Não me compete dissertar sobre se os fins justificaram os meios até porque não conheço o suficiente sobre o último caso. No entanto, aquilo que me parece certo é que, ao optarem pelo caminho que seguiram, caíram na dupla existência do Gato de Schrödinger. Apenas quando “se abrir a caixa”, ou seja, no futuro, se saberá se estarão “vivos ou mortos” no seu país, concluindo-se então se era aceitável o que fizeram, ou não. Aristides Sousa Mendes foi metaforicamente retirado da caixa com vida. Será o destino de Edward Snowden e Rui Pinto? Serão os vilões de hoje os heróis de amanhã também nos respetivos países? O futuro o dirá.

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