sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 82: Tão simples…


Como todos nós, tenho seguido com atenção a evolução da pandemia de covid-19. Depois do enorme choque inicial, em que as unidades de cuidados intensivos de alguns hospitais da China e da Itália ficaram bloqueados pelo acréscimo de doentes e tiveram de ser feitas escolhas que fizeram entrar em pânico os médicos daqueles países, entrou-se na desejada fase de gestão da evolução da pandemia.

Tal como foi dito desde o início pelos cientistas sérios, o vírus continua connosco, não houve curas milagrosas, a vacina ainda não está disponível e o essencial continua a ser gerir os números de infetados para que não se voltem a bloquear as unidades de cuidados intensivos. Graças a uma aprendizagem construtiva e permanente, hoje sabemos, dia a dia, qual é a evolução da doença, o que permite aos políticos informadamente introduzir medidas ou retirar restrições. Ao mesmo tempo, há uma melhor capacidade técnica para lidar com a doença, o que tem feito descer os números de mortes per capita, mesmo com um aumento significativo do número de casos registados por dia.

Tal como as autoridades de saúde e políticas têm responsabilidades enormes na gestão da pandemia, ao comum dos cidadãos, como eu, é solicitado algum esforço. Esse esforço deve-se materializar no seguir rígido das regras variáveis em vigor e em cumprir quatro preceitos: (1) lavar as mãos com frequência; (2) respeitar algum distanciamento social; onde isso não for possível, (3) usar máscara; e (4) usar a aplicação telemóvel para rastreamento de contactos próximos. Perante o enorme desastre económico e social em que esta pandemia se ameaça materializar, estes quatro pontos não me parecem ser um enorme desafio. Consigo lidar com todos eles e vou sensibilizando quem me está próximo para fazer o mesmo.

Um dos pontos que mais confusão parece fazer à generalidade das pessoas é o uso voluntário da aplicação no telemóvel. Para além das teorias da conspiração que, de tão deslocadas não me merecem comentário, há muitas pessoas legitimamente preocupadas com a partilha de dados em linha. Ou seja, apesar de não ser nada de particularmente importante e de ser inutilizável em termos comerciais ou legais, ao usar a aplicação de rastreamento haverá mais dados a circular na internet. Não quero entrar em detalhes técnicos, mas quero apenas frisar que o sistema Android, que 86% da população mundial utiliza de forma nativa nos seus telemóveis, recolhe e partilha com os seus parceiros comerciais muito mais informação pessoal numa hora do que jamais será recolhida pela aplicação usada em Portugal para rastrear contactos.

Algumas das pessoas que vejo a hesitar na utilização voluntária da StayawayCovid não piscam os olhos para usar o Google maps, esse sim, devorador de dados pessoais. Então, qual o porquê da reticência em usar a aplicação de rastreio? Não sei a resposta. Aquilo que sei é que se a aplicação for usada pela generalidade da população será muito mais fácil detetar os casos chamados assintomáticos e, com isso, ajudar efetivamente a controlar a propagação da doença. Para mim, a verdadeira questão não é usar ou não a aplicação, mas sim porque demorou tanto tempo a estar disponível.

Algumas pessoas dizem-me que não usam voluntariamente a aplicação de rastreio de contactos porque estão fartas das ordens do regime e das tentações capitalistas. Estas mesmas pessoas dizem-me que querem lutar contra as tiranias do Estado e das multinacionais e… imaginem, propagam e organizam a sua ação através do Twitter! Não usam o StayawayCovid, uma aplicação que apenas serve para avisar as pessoas se estiveram recentemente próximo de alguém com a doença e que respeita o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, mas espalham as suas preferências políticas e filosóficas num sistema comercial que vive da venda dessa informação. Custa-me muito a compreender…

Ao escrever estas linhas, pensei que era muito simpático ter um exemplo recente desta utilização dos dados pessoais por parte de redes sociais. No mesmo momento caiu a seguinte notícia no meu Google Chrome: “Facebook avisa que poderá ter de sair da União Europeia caso seja proibido de partilhar dados com os EUA” na sequência de “regulador de privacidade na Europa pretende proibir o Facebook de transferir dados de utilizadores” (Observador, 21 de setembro). Ou seja, o Facebook, que todos usamos quotidianamente, recolhe e exporta dados pessoais para outro continente e isso não preocupa a maioria dos cibernautas, mas a informação anódina e irrelevante que nos avisa se houver um contacto com uma pessoa infetada, isso sim, levanta preocupações. Não me faz qualquer sentido.

O uso voluntário da aplicação StayawayCovid parece-me ser uma decisão de básica sensatez. Dito isto, sou contra a obrigatoriedade da sua utilização. O Estado deve evitar intrometer-se nas decisões privadas e nos esforços pessoais voluntários. Deve explicar as vantagens do uso da aplicação, publicitar mesmo esses benefícios e estimular positivamente a sua utilização, mas jamais impor.

Penso que há um esforço pessoal a fazer para ultrapassarmos este período difícil que, neste momento, se materializa nos quatro pontos que menciono atrás. O que é mais difícil? Cumprir aquelas quatro regras ou ver alguém que nos seja próximo a sofrer com a doença e a economia a colapsar? Para mim, é tão simples que não hesito um segundo!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Crónicas de Bruxelas – 81: Tiros nos pés? Não, obrigado!


Foto: F. Cardigos

Um pequeno à parte em jeito de introdução para explicar que este assunto me perturba particularmente. Eu sou mesmo muito ambientalista e fico possesso quando vejo alguns autoproclamados ambientalistas agirem contra os interesses do mundo natural. Para mais, neste caso, ainda me multaram!

Há uns dias informaram-me que na maioria da cidade de Bruxelas não se poderia circular a mais de 30 km/h. Essa medida foi promovida pelos partidos ditos verdes e, alegadamente, para limitar a poluição. Ora… Como explicar esta decisão sabendo que um carro polui muito menos se andar a 50km/h do que a 30 porque pode circular com uma engrenagem mais elevada?! Não querendo poluir e circulando tão lentamente quanto possível em quinta velocidade, eu fui multado. A uns “estonteantes” 36km/h, numa das avenidas da cidade capital da Bélgica e, para muitos, da União Europeia, eu fui multado. Está na lei e não cumpri, portanto, pague-se. Claro está.

Ter pessoas bem-intencionadas, mas sem a necessária competência técnica resulta em péssimas decisões. Não seria muito mais simples taxar a gasolina à proporção? Ou seja, quem gastasse menos combustível, poluía realmente menos e, desta forma, atingiam-se os objetivos iniciais.

Alguns amigos, perante esta proposta, dizem-me que a população se iria revoltar com mais taxas. “Foi o que aconteceu em França com os coletes amarelos”, referem. No entanto, o fenómeno dos coletes amarelos é muito mais complexo e resulta, essencialmente, do aprofundar do fosso geográfico, com a centralização de serviços públicos em terras distantes para obter otimização económica, e do fosso social. A classe média francesa está a ver diminuir a sua qualidade de vida e os seus rendimentos e, ao mesmo tempo, por exemplo, as grandes empresas tecnológicas de fora da Europa nem sequer pagam impostos naquele país… É realmente exasperante, mas penso que a questão do preço do combustível foi, simplesmente, o rastilho de algo mais profundo e importante.

Ao mesmo tempo, posso acreditar que não é verdade por uma razão simples: onde trabalho, o preço da gasolina desceu até 0,9 euros por litro e voltou a subir até 1,5 nos últimos meses e não houve qualquer revolução. Se as pessoas entendem que os preços variam de acordo com as regras de mercado, claramente, estas mesmas pessoas entenderiam se o preço variasse numa escala muito menor para recuperar o ambiente para si e para os seus filhos e netos.

Admito, talvez as taxas não sejam a melhor solução e haja outras ações mais adequadas para proteger o ambiente e respeitar o Acordo de Paris para as Alterações Climáticas. Aquilo que ninguém entende são as medidas (supostamente) ambientais que resultam em maior impacto ambiental! Isso, claramente, não faz sentido absolutamente nenhum.

Não é a primeira vez que sou confrontado com a incompetência bem-intencionada de pessoas ditas ecologistas (nada contra as pessoas verdadeiramente ecologistas, reforço). Quando trabalhava no Parlamento Europeu, fomos confrontados com uma nova técnica de pesca: pulse fishing (do inglês, “pesca por impulso elétrico”). Em termos simplistas, esta é uma arte de arrasto de fundo em que os peixes são capturados por uma rede em forma de saco em movimento depois de serem atordoados por um impulso elétrico.

Esta técnica estava em desenvolvimento pelos pescadores holandeses e, essencialmente por três razões, tem um impacto ambiental mais reduzido que a pesca de arrasto tradicionalmente usada para capturar pescado nos fundos marinhos. Primeiro, a arte mal toca no substrato: isto resulta num menor revolvimento, reduzindo a destruição de corais e esponjas ou, pelo menos, facilitando a sua recuperação após a passagem da arte. Ao mesmo tempo, em segundo lugar, como mal toca no fundo, as embarcações que rebocam a arte gastam muito menos combustível, logo, poluem menos. Em terceiro, como a arte emite um impulso e este pode ser modelado, apenas as espécies-alvo e do tamanho selecionado serão atordoadas e, em consequência, capturadas.

Os pescadores franceses, confrontados com uma técnica que não dominavam e que permitia capturar peixe muito mais barato (por não ser necessário tanto combustível) ficaram em pânico. Para minha surpresa, os poderosos ambientalistas franceses também se uniram aos pescadores, salientando, como ouvi numa conferência no Parlamento Europeu, que não se podia pescar com eletricidade porque “é mau”. Com esta argumentação “brilhante” e alguns erros processuais por parte dos holandeses, que se precipitaram antes de terem terminado os testes e esconderam a técnica (por causa das patentes), a nova arte, depois de discussões longas e ruidosas, foi mesmo bloqueada no Parlamento Europeu. É natural que seja totalmente abandonada nos próximos anos. Ou seja, os “verdes” conseguiram bloquear uma técnica Verde. Bravo!

Legislar e gerir com excelência o bem público é uma arte que não resulta apenas de boas intenções, até porque dessas está o inferno cheio… Para merecer o poder legislativo e executivo é necessário ter permanente bom senso, saber ouvir quem mais sabe e aplicar os conhecimentos com competência técnica e estratégica. Aproximando-se novas eleições, há que ler os programas eleitorais propostos e confrontar os candidatos com o seu conteúdo. É desta dialética entre a adequação do programa proposto com a nossa própria visão de futuro, a competência para o aplicar e a confiança que os candidatos nos merecem que deve nascer a decisão do voto. Fica a sugestão ou, como canta Sérgio Godinho, “cuidado com as imitações”.

O Grande Senhor da Ilha Azul!

 

Senhor Mário Frayão junto ao navio de investigação francês "Pourquois pas?"
Foto: F. Cardigos

 

Um dia, estando eu envolto numa terrível situação, procurei o Senhor Mário Frayão no sítio habitual. Precisava da generosidade das suas palavras. Por uma incrível sequência de acontecimentos, não nos encontrámos imediatamente e, pela primeira vez, senti a dor que me provocaria o dia em que partisse. Aqui está. Chegou o dia.

É difícil descrever a tristeza que se sente, o que nos vai na alma no momento em que sabemos que um verdadeiro amigo partiu. Custa-me resumir o que é grande e complexo, mas sinto que realmente perdi um pouco de mim com a má notícia que me acabaram de dar.

Tenho, neste momento, a nítida sensação que não termino na dimensão limitada do meu corpo, mas que me projeto no éter e todos os meus amigos são também parte de mim, como se fossemos todos um. A partida do Senhor Mário Frayão afeta-me fisicamente. Uma parte de mim partiu também. Olho para este pedaço abruptamente decepado e vejo apenas memórias. Vazio, silêncio, respeito, solenidade, ternura... saudade!

O Senhor Mário Frayão, entre muitas outras coisas, foi o grande fundador deste jornal, o Tribuna das Ilhas. Foi ele que convidou a maioria dos cooperantes que, ainda hoje, fazem parte da Cooperativa que sustenta o único semanário da ilha do Faial. É a ele que devemos, também financeiramente, a existência desta publicação. Uma entre muitas coisas que nos deixou este Grande Senhor da Ilha Azul.

Quando ele e eu nos sentávamos no Peter ou no Bar da Marina, ou qualquer outro local da cidade da Horta, mas invariavelmente ao domingo de manhã, semana após semana, o Senhor Mário contava-me histórias da sua incrível vida. Ele sentia especial orgulho pelos tempos em que andou de câmara de projetar ao ombro a exibir filmes nas Flores, num tempo em que a maioria das pessoas daquela ilha não tinham ainda tido a oportunidade de ver cinema. Para além da reação e do prazer das pessoas, preocupou-o e marcou-o a difícil vida dos florentinos.

Por razões nada edificantes para os responsáveis, o Senhor Mário teve que partir da ilha do Faial depois da Revolução dos Cravos. Durante anos viveu no Continente e sempre sem grande apego à vida que levou nos arredores de Lisboa. Raramente me falava desses tempos. Digo eu, estava apenas a tomar fôlego para voltar à cidade da Horta que ele amava da mesma forma abrupta, enérgica, proativa e comprometida como quando declamava os poemas de Vítor Rui Dores sobre a cidade-Mar.

Do meu lado, ele exigia-me que lhe falasse do oceano, da biologia dos animais marinhos e do futuro. Pedia-me que desse o mote para conversas sobre futuros plausíveis e, comentando ora um ora o outro, construímos cenários sustentáveis para a energia, o turismo, a agricultura e a cultura. Como o Senhor Mário Frayão gostava de cultura… do Conservatório, de música…

Nos dias em que tínhamos tempo, após a degustação do pequeno-almoço, partíamos para um passeio pelos arredores da cidade. Aí, algumas das suas aventuras ficavam ilustradas geograficamente e, em cada local, projetávamos imaginários parques, bairros e jardins. Dois “jovens” a imaginar dias vindouros nas paisagens idílicas que generosamente a ilha do Pico dá à ilha do Faial.

As suas memórias mais emotivas eram sempre dirigidas à sua esposa, que partiu muito antes dele. Com um carinho reverente, dizia-me que era a sua confidente, a pessoa que sempre o entendia e que se sentia absolutamente perdido sem ela. Ao longo dos anos, pareceu-me, foi encontrando nalguns familiares mais próximos e amigos o substituto possível para a dor e para a ausência.

Agora, hoje, soube que se juntaram novamente… É a fórmula de que abuso para amenizar a minha própria dor.

Até sempre Mário Frayão, o Grande Senhor da Ilha Azul!