Cagarros em frenesim alimentar.
As pardelas-de-bico amarelo, conhecidas nas regiões autónomas por cagarros ou cagarras, são hoje aves marinhas estimadas pelas populações e úteis auxiliares na pesca do atum.
Foto: Carlos Toste Mendes - Centro de Mergulho do Hotel Ocidental
No final do ano de 2003, em representação dos Açores,
participei numa reunião da Convenção OSPAR em Tavira. Nela, partilhando pontos
de vista sobre a necessidade de criar verdadeiras áreas marinhas protegidas,
retorquiu-me um técnico do Instituto para a Conservação da Natureza: “as
colónias portuguesas de pardelas representam os vértices de um polígono que tem
de ser português”. Discretamente, esbocei numa folha de papel um polígono que
tinha como extremos as Berlengas, as Selvagens e a Ilha do Corvo e concluí
intimamente: “um triângulo gigante e perfeito, o triângulo de Portugal”. Talvez,
neste momento, tenha ficado particularmente claro na minha mente que Portugal
tem um enorme espaço que é seu sobre o qual deve ter direitos, mas tem, acima
de tudo, responsabilidades. Enquanto locatários deste planeta, os humanos têm a
responsabilidade de o manter, de o preservar e, quando necessário, de o
recuperar. No entanto, para podermos exercer essa obrigação e usufruir dos
direitos, o percurso seria então, e ainda é, longo.
Este percurso teve início, na realidade, com a preparação da
Expo 98. Depois, passou pelo Relatório da Comissão Estratégica dos Oceanos de
2004, incluiu a Estratégia Nacional para o Mar de 2007 e culminou, até ao
momento, na submissão em 2009 à Organização das Nações Unidas da proposta de
Portugal para a delimitação da sua Plataforma Continental. Estes marcos são
públicos e notórios, altamente dignificantes para o nosso país e para os
envolvidos; mas este artigo focalizar-se-á mais no percurso que os Açores têm
seguido, contribuindo assim para o regresso de Portugal ao mar, que começa ainda
antes do tal triângulo esboçado em Tavira com 1.8 milhões de quilómetros
quadrados.
Um dos factos cruciais e que muito auxiliou o bom andamento
deste processo açoriano foi a aliança que se estabeleceu entre o Governo das
ilhas e a Universidade dos Açores. Houve, em todos os momentos, uma sincronia
de visão e uma enorme solidariedade nos objetivos a atingir, com particular
ênfase para o Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores,
liderado então pelo Doutor Ricardo Serrão Santos, mas incluindo todos os
recantos da academia insular. Isso permitiu ter sempre uma ferramenta de
auxílio à decisão e uma representação abrangente e livre das grilhetas do
formalismo da governação. Foi assim que em todas as reuniões internacionais
relevantes, muitas delas pautadas pela ausência do Governo Português, estiveram
representantes dos Açores.
Se nem sempre foi assim, hoje, felizmente, tende-se para um
entendimento mais claro entre os representantes do arquipélago e nacionais, complementando-se
uns aos outros, permitindo uma presença internacional constante e inteligente
do nosso país. Não havendo recursos financeiros para estarmos todos em todas as
reuniões, assim, com o cruzamento de informações, com uma boa coordenação e com
objetivos bem definidos, temos uma maior capacidade de ação.
Voltando ao nosso percurso. A Universidade envolveu-se em
projetos científicos internacionais como o BIOMARE, que resultou depois no
MARBEF, uma rede de excelência, o OASIS e EXOCET/D, entre tantos outros, com os
quais lançou âncoras de conhecimento em áreas tão diferentes e complementares
como as áreas marinhas protegidas, os montes submarinos e as fontes
hidrotermais. Ao mesmo tempo, aí numa parceria mais próxima com o Governo
Regional e, no caso através do Departamento de Biologia, foram-se estabelecendo
os modelos jurídicos necessários para poder gerir o nosso mar de uma forma
coerente e consequente.
Ao nível do Governo Regional, criou-se um departamento autónomo
responsável pelo Mar, unido ao do Ambiente, e deram-se contributos decisivos
para o lançamento e fortalecimento da Política Marítima Europeia. Penso que a
Região remota mais visitada pelo então Comissário europeu das Pescas terá sido
os Açores.
Foi então que se estabeleceram as regras de uso de locais da
Zona Económica Exclusiva (ZEE) especialmente importantes para a ciência,
resultado de trabalhos científicos, diversas reuniões de utilizadores e muito
diálogo. As regras foram publicadas em relatório e são, ainda hoje, cumpridas
escrupulosamente por todos os envolvidos, desde a comunidade científica até à
comunidade de pescadores. No final do processo, a organização não-governamental
para o ambiente, WWF, premiou os envolvidos com o galardão Gift to the Earth.
Foram várias as conclusões que fomos tirando ao longo deste
percurso. Primeiro, ficou claro que apenas com um investimento sério na
componente ambiental poderíamos proteger os nossos mares. A abertura da área
externa da ZEE dos Açores às frotas internacionais, com a complacência do
Governo Português, foi um erro terrível, mas também uma enorme aprendizagem.
Depois, compreendemos que a ONU e a Convenção OSPAR estariam recetivas a uma classificação
de áreas fora do Mar Territorial e mesmo para lá da ZEE. Em terceiro lugar,
compreendemos que não haveria forma de atribuir a qualquer das ilhas a gestão
do alto-mar dos Açores e, portanto, a gestão teria de ser feita por um órgão à
parte.
Como resposta à insensata abertura da área externa da ZEE
dos Açores, encetámos uma luta legal para que se voltassem a colocar limitações
à exploração dos nossos mares. Apesar de ainda estarmos longe de uma vitória em
toda a linha, conseguimos banir as redes de emalhar e de arrasto de
profundidade. Somos dos poucos territórios do mundo que está livre dessas artes
delapidadoras dos recursos e dos fundos marinhos. Como reconhecimento, a
mediática organização internacional Greenpeace veio em 2005 aos Açores durante
a sua campanha “Defending our Oceans” com o navio “Esperanza” para enfatizar a
boa política ambiental marinha do arquipélago.
Apesar do esquema geral da ação que a seguir se descreve ter
sido gizado em 2004, apenas em 2007 foi tornado público o primeiro passo que demonstrava
a intenção e indicava os contornos da mesma. Não foi fácil convencer os
deputados da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores da
importância de ter um Parque Marinho sem fronteira externa. Em tom quase
jocoso, acusavam o Governo de querer gerir “as praias da Florida”. Tinham
alguma razão, mas o alcance da opção ficou claro logo a seguir. No início de
Outubro do ano de 2007, na cidade da Horta, era apresentada a intenção do
Governo de Portugal, sob proposta dos Açores, de classificar como Área Marinha
Protegida, ao abrigo da Convenção OSPAR, a fonte hidrotermal de grande
profundidade Rainbow. Num entendimento perfeito entre os parceiros açorianos e
a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental, os argumentos
jurídicos e técnicos apresentados prevaleceram e a aposta foi ganha. A 227
milhas a Sul-sudoeste da Ilha das Flores, portanto para lá do limite da ZEE, o
Rainbow tornava-se o primeiro novo território português de além-mar desde Quionga;
conquistada em 1916 e reconhecida como portuguesa em 1919. Ganharam os Açores,
mas, essencialmente, ganhou Portugal até porque a mesma argumentação foi depois
utilizada noutros contextos.
Se Quionga foi ganha como resultado de uma guerra, o Rainbow
foi ganho com conhecimento científico e entendimento entre parceiros
internacionais num processo em que não houve vencidos, apenas um mundo melhor e
mais responsabilizado pelo seu uso e pela sua proteção.
Integrando os conhecimentos científicos adquiridos dentro do
arquipélago, incluindo projetos com génese externa, como seja o IBAS Marinhas,
coordenado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, com os
compromissos internacionais assumidos por Portugal no âmbito das Diretivas Aves
e Habitats, ficaram rapidamente desenhados os locais que iriam integrar o
Parque Marinho dos Açores dentro da Subárea da ZEE de Portugal correspondente
aos Açores. No entanto, para além do Rainbow, faltavam definir as restantes
zonas do alto-mar. Nesse momento, alicerçados pelo bom conhecimento científico
e pela excelente integração nos grupos internacionais, lançamos mais um repto a
Portugal: “vamos classificar o Altair, o Anti-altair, a Crista Médio Atlântica
a Norte dos Açores e a Josephine!” Mais uma vez, houve um entendimento perfeito,
embora tardio, entre os Açores, a Secretaria de Estado do Ambiente, a Agência
Portuguesa para o Ambiente e a Estrutura de Missão para a Extensão da
Plataforma Continental. Com articulações perfeitas, o resultado apenas podia
ser um, e foi. No seio da Convenção OSPAR, numa reunião que decorreu na Noruega
em Setembro de 2010 ficavam definidos mais três sítios do alto-mar em volta dos
Açores e 4 para o todo Português. Um destes sítios em particular, a chamada
Crista Médio-Atlântica a Norte dos Açores (também conhecida pelo seu acrónimo
em inglês MARNA), tem uma área maior que todo o território emerso de Portugal!
Reconhecidas as áreas importantes, do ponto de vista
ambiental, no alto mar dos Açores, faltava agora estruturar o Parque Marinho do
ponto de vista legal. Tendo por base o Estatuto Político-Administrativo da
Região, estabelecemos um regime legal que dota o Parque Marinho dos Açores de
um órgão de gestão responsável pela implementação das regras que o próprio
diploma estabelece. Dada a inerente obrigação da gestão partilhada do mar,
trocamos impressões prévias com os responsáveis continentais e, mais uma vez,
houve unanimidade nas diferentes opções específicas. Mais tarde, o Parque
Marinho dos Açores foi aprovado na Assembleia Legislativa da Região Autónoma
dos Açores com a unanimidade e o aplauso dos partidos aí sentados. Com onze
sítios ambientalmente importantes definidos, o Parque traça a linha daquilo que
os Açores apelidam como a sua zona de influência e, ao mesmo tempo, estabelece,
desde logo, quais são as zonas de extração limitada por razões ambientais.
Evidentemente, do ponto de vista histórico e cultural, o mar
é importante para os Açores. Muito acima disso, no entanto, o oceano que rodeia
as ilhas é determinante para o futuro dos açorianos. As nove ilhas dos Açores
têm pouco mais de dois mil quilómetros quadrados de terra, mas o mar que nos
rodeia tem mais de 2 milhões. Encontramo-nos limitados por terra, mas incitados
pelo mar. Portanto, quando se fala em extração de minerais, pesquisa
biotecnológica do mar profundo ou aproveitamento energético no Mar dos Açores
estamos a falar numa área que os açorianos já reconheceram, já tomaram e que querem
usar para que se concretize o regresso de Portugal ao Mar. Ou, posto de outra
forma, para que se cumpra Portugal!
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