Conselho da União Europeia, edifícios Justus Lipsius e Europa.
Foto: F Cardigos
O processo que leva à determinação do orçamento de longo
prazo da União Europeia é longo, demorado e, por vezes, segue percursos complexos,
sinuosos e inesperados. No entanto, é um processo transparente, permitindo que
qualquer cidadão o acompanhe em detalhe.
Em termos muito simplificados, tal como acontece com a
maioria dos processos legislativos da União Europeia, o orçamento é proposto
pela Comissão, discutido pelos colegisladores, ou seja, pelo Parlamento Europeu
e pelo Conselho, e adotado quando chegam a um entendimento. Ou seja, ainda mais
simplificadamente, a Comissão Europeia propõe e o Parlamento e o Conselho
decidem. Reforço a sequência do processo legal para que seja claro o ponto de
situação que a seguir exponho.
A Comissão Europeia apresentou a sua proposta de orçamento
plurianual para o período 2021 a 2027 em 2018. Esta proposta era constituída
por diversos documentos. Por um lado, estão o orçamento geral e os recursos
próprios, que obedecem ao processo legislativo especial, e, por outro lado, as declinações
destes dois em diversos regulamentos conforme a temática, que obedecem ao
processo legislativo ordinário. A diferença entre um e outro processo
legislativo jaz na decisão. Sem entrar em detalhes, no “processo especial”, o
Parlamento Europeu apenas pode aceitar ou rejeitar e o Conselho tem de decidir
por unanimidade, por vezes tendo de recorrer mesmo aos parlamentos nacionais.
No “processo ordinário”, o Parlamento e o Conselho estão em pé de igualdade na
capacidade de alteração dos conteúdos propostos pela Comissão.
Desde 2018, houve um desafio adicional resultante da pandemia
de covid-19 que resultou em diversas alterações da proposta da Comissão e o
reforço do orçamento com 750 mil milhões de euros oriundos do “Next Generation
EU”, o instrumento da recuperação da União Europeia pós-covid-19. Por falar em
números gigantes, o orçamento base tem um valor de 1,1 biliões de euros. Ou
seja, no total, o valor é de quase 2 biliões de euros a serem despendidos nos
sete anos de duração do quadro financeiro.
O orçamento e cada uma das suas declinações, tanto por
resultado da pandemia como por consequência das discussões internas e externas,
tem sido alterado em pequenos e grandes detalhes. Por exemplo, um dos problemas
identificados inicialmente na proposta da Comissão tinha implicações dramáticas
para as regiões ultraperiféricas (RUP). Segundo a proposta da Comissão,
integrada numa das tais declinações, no caso o Regulamento das Disposições
Comuns, as RUP passariam a fazer um esforço próprio de 30% para poderem aceder
aos fundos estruturais e de investimento, como o FEDER e o FSE, entre outros.
Se parece generoso um cofinanciamento de 70% a fundo perdido, não é menos
verdade que o cofinanciamento anterior era de 85%. Esta passagem de 85 para 70%
implicava a duplicação do esforço próprio (de 15 para 30%). Felizmente, os
colegisladores entenderam os argumentos apresentados pelas forças vivas das RUP
e reverteram a proposta da Comissão.
Portanto, com mais de dois anos de antecedência, a Comissão
Europeia fez um conjunto de propostas que, desde então, têm estado em discussão
dentro-portas por parte de cada um dos dois colegisladores, para tomarem
posição, e, mais recentemente, fora-portas nos chamados trílogos. Os trílogos
são discussões informais entre os colegisladores em presença da Comissão
Europeia.
Apesar de ser uma discussão informal, os colegisladores levam
o resultado destas discussões para as respetivas instituições que, quase
invariavelmente, o aceitam, tornando-se assim uma decisão formal e legal,
pronta para publicação em jornal oficial.
Evidentemente, a forma como estas propostas saem da Comissão
e entram no Parlamento e no Conselho, como aí são discutidas internamente, como
saem para os trílogos, como são realizadas as discussões em trílogo, como
regressam aos colegisladores e como são aprovadas formalmente é fascinante e,
mais importante, descortinável por qualquer cidadão.
Neste processo, pós apresentação da proposta da Comissão
Europeia, os Açores e as restantes regiões ultraperiféricas conseguiram algumas
vitórias interessantes. Por exemplo, para os fundos de cooperação entre regiões
(interreg) há agora uma verba de 270 milhões de euros para uso exclusivo das
RUP, o que poderá resultar em 2 milhões por ano para os Açores, ficando apenas
dependentes das forças vivas produzirem bons projectos que captem estes
recursos. Há que estar atentos aos convites à apresentação de propostas que a
Comissão irá publicar e concorrer com competência.
No POSEI, um programa dedicado à agricultura das RUP, após
uma luta intensa e demorada, conseguiu-se reverter a decisão da Comissão, que
propunha um corte avultado. Com isso, os agricultores ficaram a ganhar mais 3
milhões de euros por ano, aumentando a segurança alimentar de todos os
açorianos.
No REACT-EU, a iniciativa de assistência à recuperação e para
a coesão dos territórios da Europa, por proposta da Comissão, após
sensibilizada pelas RUP, foi reservada uma verba de 30 euros per capita para estas regiões. Ou seja,
para os Açores serão cerca de 7 milhões de euros.
Para os assuntos do mar, pescas e aquacultura, ao contrário
de todas as restantes regiões, as RUP conseguiram manter o orçamento anterior.
Isso significará 102 milhões de euros que, a seu tempo, serão repartidos entre
os Açores e a Madeira.
Acresce ao exposto atrás que os Açores, tal como as restantes
RUP, para além das verbas que nos estão reservadas, podem beneficiar ou
concorrer em pé de igualdade com as restantes regiões pelas restantes verbas
dos tais quase dois biliões de euros para sete anos. Com esta complementaridade
entre as verbas adstritas e restantes cumpre-se o exposto no artigo 349 do
Tratado de Funcionamento da União Europeia que identifica e protege as RUP.
A instituição e implementação do conceito RUP, que é
defendido em primeira linha pela Conferência dos Presidentes das RUP, está a
ter justas consequências para os territórios mais longínquos e isolados na
periferia europeia. Durante os próximos doze meses, a presidência desta
Conferência é exercida pelo Presidente do Governo dos Açores e, durante o
próximo semestre, em sincronia com a presidência portuguesa da União Europeia.
Por tudo isto, a Região estará em boa posição para ajudar a explorar e a
expandir ainda mais as oportunidades abertas pelo artigo 349.
No total, haverá várias centenas de milhões de euros a fluir anualmente
entre a União Europeia e a Região Autónoma dos Açores. Estas verbas serão
maioritariamente oriundas do FEDER, FSE, FEADER e POSEI. Serão verbas
elevadíssimas e que exigirão responsabilidade na utilização, mas, ao mesmo
tempo, são uma extraordinária oportunidade para construir um futuro próspero, justo,
solidário e ambientalmente adequado.
Para que tudo isto aconteça é necessário que o Conselho da
União Europeia desbloqueie o orçamento. O único entrave para que isso aconteça
é a posição da Hungria e da Polónia que, quando redijo este artigo, não aceitam
que a disponibilização dos recursos europeus esteja dependente do respeito das
regras de Estado de Direito.
As verbas em causa são importantes e dariam um enorme impulso
aos Açores. No entanto, como acontece com a esmagadora maioria dos Estados e
Regiões da União Europeia, não estou disposto a abdicar da liberdade de
expressão e da independência da justiça para aceder a essas verbas. Os nossos
antepassados lutaram demasiado para chegarmos até aqui e não será o dinheiro a
comprar o seu esforço e a nossa liberdade.
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