sexta-feira, 23 de julho de 2021

Voo do Cagarro - 6: O Maravilhoso mundo das reticências…

 



Não concordo, pá. Já disse que não concordo!” reafirmava o meu colega cheio de certeza e, já num tom quase entusiasta, “Parece-me impensável que se usem reticências num relatório técnico.”. “Volto a dizer, denota incerteza, gera insegurança e transmite que o autor permite ao leitor interpretações. Se queremos transmitir uma mensagem, transmitimos. Não andamos ali às voltas a hesitar, a engonhar… Para mim, quem usar reticências, está riscado. Se puder, despeço-o! Processo-o!” Tinha, claramente, passado do entusiasmo ao delírio… “Se for um poeta, ainda vá, mas um técnico?! Nem pensar. É logo ali! Rua!

De facto, o uso de reticências na linguagem técnica tem que ser bem medida. Já na narrativa, é uma ferramenta auxiliar da escrita como outra qualquer. Da mesma forma que usamos a exclamação e a interrogação, para ilustrar entoações de voz, umas reticências dão sempre jeito.

Que o meu colega não oiça, mas eu admito que uso reticências com abundância e, muitas vezes, em conjunto com outros sinais de pontuação. No máximo, para ilustrar uma admiração confusa que perdura no tempo, lá coloco a combinação máxima “…!?”. Deve até ser ilegal!

Tudo isto vem a propósito de uma mensagem que recebi por email. Tinha pedido autorização para usar uma imagem e a resposta veio num enigmático “Negativo…”. Ora, ora… Lido à letra, não, é não.

Neste caso a resposta não era bem “não”, era “negativo” e acompanhado de umas reticências… Pedi autorização para usar uma imagem e o autor dá-me uma nega polvilhada de umas inconvenientes reticências… Seria um não condicional? Significariam aquelas reticências um jocoso “não querias mais nada!”. Como interpretar… Uso a imagem: negativo… Ora, ora… Aquelas reticências…

Acabo por perder a paciência e, entre ripostar ou não, decido não usar aquela imagem e vou à procura de uma outra que fique, pelo menos, perto da glória e do esplendor da primeira. Publico a segunda opção que acabo por encontrar no meu arquivo pessoal.

As reticências são, de facto, um alicerce perigoso.

Gosto de ti…”, lembro-me de uma paixoneta de juventude ter escrito a um amigo e o ter deixado possesso. Que queria ela dizer? Que gostava dele e… era apenas isso: amigos para sempre? Que gostava dele e estava desejosa que a convidasse para dançar no bailarico da aldeia?! Dúvidas…

Certo dia, um médico enviou-me uma mensagem depois de ter recebido e interpretado as minhas análises laboratoriais. Os resultados eram belíssimos e o médico, entre a pressa e a necessidade de me dar uma resposta, escreve um animado email: “Vais sobreviver mais uns tempos…”. Distante, em Bruxelas, sem acesso aos resultados, que aliás não saberia interpretar porque não sou médico, leio a mensagem e entro em pânico: “Vou morrer! O meu amigo médico está tão triste que nem me dá uma data, preferindo substituir por umas cruéis reticências.

Não, de facto, já passaram uns tempos valentes e ainda aqui estou.

As reticências sempre fizeram estragos. Quantas guerras terão começado à conta das reticências? Imagino Júlio César a escrever a Viriato hesitando no nome da taberna “Viriato, encontramo-nos naquele sítio…” O Viriato, não compreendendo o que significavam aquelas reticências, entendeu como uma ameaça e trouxe o seu exército. O resto é História. Não é verdade, mas podia, caso já se usassem reticências nos telegramas diplomáticos, os telegramas existissem e as reticências já fossem usadas.

As reticências são malandras.

Passados uns dias, o autor da magnífica imagem que não usei, telefona-me e diz-me “vi que não usaste a minha imagem, mas olha que a que publicaste não me parecia melhor”. Coriscos… Devia estar a gozar comigo… Respondo com calma e a deferência que a pessoa me merece. “Mas… O senhor disse-me que não”… Digo, tentando esquecer aquelas reticências que me azucrinam o cérebro desde então. “Eu disse que não?! Nem pensar”. Ora, ora…. “Perguntaste-me se me importava que usasses a imagem e eu respondi “negativo…” como quem diz “sem problema” ”.

Oh! Raio dos raios… Olhei tanto para as reticências, contemplei-as de tantas formas, que me esqueci de ler como tinha colocado a questão. As reticências perseguem-me!

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