“Não concordo, pá. Já disse
que não concordo!” reafirmava o meu colega cheio de certeza e, já num tom quase
entusiasta, “Parece-me impensável que se usem reticências num relatório
técnico.”. “Volto a dizer, denota incerteza, gera insegurança e
transmite que o autor permite ao leitor interpretações. Se queremos transmitir
uma mensagem, transmitimos. Não andamos ali às voltas a hesitar, a engonhar…
Para mim, quem usar reticências, está riscado. Se puder, despeço-o! Processo-o!”
Tinha, claramente, passado do entusiasmo ao delírio… “Se for um poeta, ainda
vá, mas um técnico?! Nem pensar. É logo ali! Rua!”
De facto, o uso de reticências na
linguagem técnica tem que ser bem medida. Já na narrativa, é uma ferramenta
auxiliar da escrita como outra qualquer. Da mesma forma que usamos a exclamação
e a interrogação, para ilustrar entoações de voz, umas reticências dão sempre
jeito.
Que o meu colega não oiça, mas eu
admito que uso reticências com abundância e, muitas vezes, em conjunto com
outros sinais de pontuação. No máximo, para ilustrar uma admiração confusa que
perdura no tempo, lá coloco a combinação máxima “…!?”. Deve até ser
ilegal!
Tudo isto vem a propósito de uma
mensagem que recebi por email. Tinha pedido autorização para usar uma imagem e
a resposta veio num enigmático “Negativo…”. Ora, ora… Lido à letra, não,
é não.
Neste caso a resposta não era bem
“não”, era “negativo” e acompanhado de umas reticências… Pedi autorização para
usar uma imagem e o autor dá-me uma nega polvilhada de umas inconvenientes
reticências… Seria um não condicional? Significariam aquelas reticências um jocoso
“não querias mais nada!”. Como interpretar… Uso a imagem: negativo… Ora,
ora… Aquelas reticências…
Acabo por perder a paciência e,
entre ripostar ou não, decido não usar aquela imagem e vou à procura de uma
outra que fique, pelo menos, perto da glória e do esplendor da primeira.
Publico a segunda opção que acabo por encontrar no meu arquivo pessoal.
As reticências são, de facto, um
alicerce perigoso.
“Gosto de ti…”, lembro-me
de uma paixoneta de juventude ter escrito a um amigo e o ter deixado possesso.
Que queria ela dizer? Que gostava dele e… era apenas isso: amigos para sempre?
Que gostava dele e estava desejosa que a convidasse para dançar no bailarico da
aldeia?! Dúvidas…
Certo dia, um médico enviou-me
uma mensagem depois de ter recebido e interpretado as minhas análises
laboratoriais. Os resultados eram belíssimos e o médico, entre a pressa e a
necessidade de me dar uma resposta, escreve um animado email: “Vais
sobreviver mais uns tempos…”. Distante, em Bruxelas, sem acesso aos
resultados, que aliás não saberia interpretar porque não sou médico, leio a
mensagem e entro em pânico: “Vou morrer! O meu amigo médico está tão triste que
nem me dá uma data, preferindo substituir por umas cruéis reticências.”
Não, de facto, já passaram uns
tempos valentes e ainda aqui estou.
As reticências sempre fizeram
estragos. Quantas guerras terão começado à conta das reticências? Imagino Júlio
César a escrever a Viriato hesitando no nome da taberna “Viriato,
encontramo-nos naquele sítio…” O Viriato, não compreendendo o que
significavam aquelas reticências, entendeu como uma ameaça e trouxe o seu
exército. O resto é História. Não é verdade, mas podia, caso já se usassem
reticências nos telegramas diplomáticos, os telegramas existissem e as
reticências já fossem usadas.
As reticências são malandras.
Passados uns dias, o autor da
magnífica imagem que não usei, telefona-me e diz-me “vi que não usaste a minha
imagem, mas olha que a que publicaste não me parecia melhor”. Coriscos…
Devia estar a gozar comigo… Respondo com calma e a deferência que a pessoa me
merece. “Mas… O senhor disse-me que não”… Digo, tentando esquecer
aquelas reticências que me azucrinam o cérebro desde então. “Eu disse que
não?! Nem pensar”. Ora, ora…. “Perguntaste-me se me importava que
usasses a imagem e eu respondi “negativo…” como quem diz “sem problema” ”.
Oh! Raio dos raios… Olhei tanto
para as reticências, contemplei-as de tantas formas, que me esqueci de ler como
tinha colocado a questão. As reticências perseguem-me!
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