sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Voo do Cagarro - 18: As piscinas naturais de Santa Cruz das Flores, Açores

Piscinas naturais de Santa Cruz das Flores.
Foto: F Cardigos
 

Nunca gostei particularmente de andar descalço sobre a areia da praia. Ficar deitado a apanhar Sol ou a nadar no mar, sim. O interminável percurso entre os dois sempre me pareceu aborrecido e, por vezes, doloroso. Aquela dor da areia a escaldar que se sente nas palmas dos pés nas praias do Algarve é, para mim, terrível.

Quando descobri as piscinas naturais de Santa Cruz das Flores, no início dos anos 80, compreendi o que era a perfeição. Uma distância curta entre o espaço em que se está a falar com os amigos, a ler um livro ou simplesmente a ganhar vitamina D e a água salgada cheia de vida natural. Que podia ser melhor?

No caso das “piscinas dos franceses”, como alguns lhes chamavam nesse tempo, havia ainda a sublime virtude de haver várias “poças”. Umas eram mais acessíveis e com muita alegria e confusão e outras, mais recatadas, onde podia, calmamente, ficar a olhar para um polvo que se movimentava pelo fundo, temer uma moreia que “sorria” no comando do seu buraco, observar os cardumes de salemas pastando ou, simplesmente, ficar hipnotizado com o suave dançar das algas ao sabor da quase inexistente corrente.

Por fora de todas as poças, o mar aberto. A água mais fria, selvagem e com um azul profundo até perder de vista preenchia a minha curiosidade, mas fugia do meu alcance de miúdo. Queria compreender, mas ainda não estava preparado para me aventurar naquelas profundezas e ondulação.

Uma vez, um tubarão aproximou-se e corremos todos por cima das pedras até o podermos ver com detalhe. Nadava calmamente ignorando ostensivamente os nossos olhos fascinados. Aproximou-se, afastou-se… movimentando lentamente o seu corpo majestoso pelo cimo da água estanhada do Oceano Atlântico. Ficámos o resto da tarde a contar histórias mais ou menos verídicas de outros tubarões que tinham comido pessoas inteiras e de uma só vez!

Nos dias de tempestade, com outros amigos igualmente mínimos como eu, descíamos parte das escadas e ficávamos siderados a olhar para a vagas que se quebravam nas pedras de fora e espumavam até perto de nós. A razão do movimento da água, a importância do arejamento para a vida subaquática e a abrasão marinha eram tudo mistérios que viria a desvendar mais tarde, mas as perguntas foram-me ali plantadas.

Mais do que na Universidade, tornei-me biólogo-marinho nas piscinas naturais de Santa Cruz das Flores. Na Universidade aprendi o nome das espécies, os conceitos que unem os processos moleculares até aos sistemas complexos, o funcionamento dos ecossistemas e tantas outras coisas... No entanto, vendo em retrospetiva, muito do que aprendi limitou-se a preencher os espaços de curiosidade que cultivei naquelas maravilhosas poças.

Ao viajar por esse mundo, ao pisar outros sítios esplendorosos, ao falar com amigos e compreendendo as suas maravilhosas experiências, volto sempre às piscinas naturais de Santa Cruz das Flores como um dos pontos de comparação para a perfeição. Ali entendi o valor da contemplação em paz, compreendi a importância da tranquilidade para a boa reflexão e descobri a beleza da amizade juvenil e sorridente.

Ao longo do tempo, propositadamente, tenho evitado voltar a meter o pé nas piscinas naturais de Santa Cruz das Flores. Desde os anos 90 que não dou ali um mergulho, apesar de ir às Flores regularmente. Acredito que a memória dos espaços é também resultado do tempo cronológico. Eu não sou o mesmo e aquele espaço, com as melhorias que, entretanto, lhe fizeram, não é o mesmo. Prefiro manter a memória daquilo que ambos éramos nos anos 80.

Quando regresso a Santa Cruz, passo na marginal, olho lá para baixo, para as piscinas, e deixo-me levar para outros tempos, quando corríamos pelo Código desde o Hotel dos franceses até às Piscinas, como escolhíamos um sítio para deixar as tolhas e nos mandávamos para dentro de água, como nadávamos, mergulhávamos, brincávamos e nos cansávamos. À noite, depois de tudo isto, caía imediatamente num sono profundo do qual só regressava com o despontar do Sol e a certeza que iria ter início mais um dia de enormes aventuras!



Sem comentários:

Enviar um comentário