Em Lisboa, os prognósticos para a viagem de avião não eram
bons. “Vamos lá ver se dá…”, dizia a hospedeira de terra, sem grande confiança
que o voo corresse bem.
A tempestade Eunice tinha fechado diversos aeroportos n
o
Reino Unido e no norte do continente europeu. Quando o avião levantou, o meu aeroporto
de destino, Bruxelas, era um deles. O aeroporto estava fechado. Tinha tudo para
correr mal…
Ao meu lado sentou-se uma simpática senhora septuagenária.
Compreendemos rapidamente que éramos ambos dos Açores e, por isso, o mau tempo
não ensombrava as nossas viagens de avião. “Mau tempo no continente é brisa nos
Açores!” disse a minha interlocutora.
A senhora, da qual não sei o nome, vivia há meio século na
Bélgica e voltava aos Açores, pelo menos, duas vezes por ano. “Não consigo
deixar de regressar…” disse com o belo sotaque de sílabas explicadas que usam
na ilha verde.
Lamentámos já não haver voo da Tui direto de Bruxelas para
Ponta Delgada e de outras mazelas de que sofrem os passageiros frequentes. Do
mau tempo, pouco notávamos ainda.
Ao aproximarmo-nos de Zaventem, o município onde se situa o Aeroporto
Nacional de Bruxelas, o avião começou a balançar mais e mais, até ter testado
todas as capacidades do Airbus 321-neo. Uma criança chorava no meio do pesado
silêncio dos adultos. Pumba, pumba, catrapumba, e mais uma forte agitação no
exterior, agora acompanhada de grande comoção dentro do pássaro de metal e um
susto que calou o infante durante alguns segundos. Mais vira para um lado,
sobe, vira para o outro, abana, agita, sobe outra vez, desce depressa, desce
devagar, alinha com a pista, desce.
No meu conta quilómetros pessoal, verifico que o avião pouco
passa dos 200 km/h. Normalmente, o avião toca no chão aos 250. Imagino que os
restantes 50 km/h estejam diluídos na tentativa de domar a besta.
Finalmente, tráz! O avião toca no chão, agarra-se, trava, crava,
imagino que vá fazer um pião, mas não faz. A pista cola-se às rodas ou o
contrário e zica, trica! Está feito.
Nunca tive dúvidas... Nem eu, nem a senhora septuagenária ao
meu lado. Olhamos um para o outro e imaginamos a tatuagem “Tanya 95” cravada
sobre o ombro esquerdo e que encabeça uma longa lista de tempestades a sério. E
o break dance sobre a pista das Lajes da Terceira com ventos cruzados?!
Eles sabem lá! Nem sequer borregámos…! Uma aprendiz de tempestade, claramente.
Pensamos tudo isto sem palavra dizer ao mesmo tempo que os
continentais no avião irrompem num aliviado bater de palmas. Alguém grita,
“vivam os pilotos!”. É apenas uma aragem sobre Zaventem…
Aterramos e estranho... Em vez de ir para as mangas, o avião
detém-se longe do terminal. Esperamos, esperamos... até que o próprio piloto
admite não saber bem o que se passa.
A certo passo, parecendo sair de uma cena cómica, vemos umas
escadas a passar perto de nós. Os operadores testam as manetes, sobem as
escadas, descem, empurram um pouco mais as ditas, voltam atrás, à frente e lá
encostam. A senhora septuagenária, diz “amadores” e tem alguma razão.
Ao sairmos, explicam que é a escada de emergência da
Lufthansa e os operadores, simples funcionários de pista, tinham-se
voluntariado para resgatar os passageiros que estavam presos nos aviões. As
mangas do aeroporto tinham-se avariado com a tempestade e não havia plano B. Todos
agradecem aos funcionários de pista, abnegados seres humanos e dignos desse
nome.
No autocarro, todos sorriem. Uns aliviados pelo susto que
passaram, outros agradecidos aos pilotos, outros ainda por terem visto a bonita
face de humanos a ajudar humanos sem razão acrescida e, todos eles, por terem
estórias para contar.
Chegamos aos tapetes de distribuição de bagagem. Não costumo
andar de mala de porão, mas a necessidade de trazer muitos livros de trabalho a
isso obrigou.
Esperamos, esperamos, esperamos… Passado uma hora, uma voz
acalma-nos, “a bagagem será distribuída dentro de momentos”. Esperamos,
esperamos, esperamos… Passada mais meia hora, quando o relógio já batia a uma e
meia da manhã, aparece um grupo de funcionários das operações de bagagem. Trazem
o suor, o cansaço e o desespero estampado na face. Todos compreendemos que
devem estar numa situação ainda pior que a nossa e ninguém se queixa. Começam a
tirar do tapete as centenas de malas que já lá estavam amontoadas. Pela rádio walkie
talkie, alguém lhes diz “já tiraram malas suficientes? Já podemos meter o
tapete a andar?”
As centenas de pessoas que estavam à espera das bagagens de
vários voos acumulados, percebem finalmente o que está a acontecer. O tapete
está bloqueado! Atiramo-nos às bagagens e, menos de 3 segundos depois, o tapete
está limpo. Missão cumprida.
O tapete começa a rolar. Aí estão as bagagens de Milão,
Munique, Madrid, Geneva, Tenerife, Eskişehir e Lisboa!
São duas da manhã. Mais do que exasperado ou cheio de sono,
estou contente. Vi a coragem de uma septuagenária de São Miguel, vi a
competência e a abnegação de gente boa e vi humanos a colaborarem
repentinamente pelo bem comum. Lindo! Oxalá todas as tempestades terminassem
nesta boa bonança.
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