sexta-feira, 17 de junho de 2022

Voo do Cagarro - 27: Em solidariedade com a Ucrânia

 
Kyrill Korsunenko em concerto em Bruxelas.
Foto: F Cardigos

De volta a Bruxelas, tenho-me empenhado em diversos projetos pessoais, continuando a aproveitar a travessia do meu deserto laboral. A travessia está quase terminada e “penso já ver o primeiro oásis, ali ao fundo… Aquela luzinha, vês?”
Um desses projetos é apoiar os meus amigos ucranianos, mesmo que modestamente. Continuo revoltado com o massacre do povo inocente da Ucrânia. Penso muitas vezes nas crianças que deixaram de ter futuro porque um tirano de uma terra distante tem sonhos imperialistas e acesso fácil a bombas voadoras. Como poderá a jovem que perdeu uma perna por estas mesmas razões alguma vez voltar a ter uma vida normal?! Ouvi-a esta manhã na rádio e virou-me o estômago. Não está certo, não está certo!
Também continuo particularmente irritado com o comportamento dos amigos do déspota Putin… Por falar nos seus amigos, o Sergey Lavrov (ministro dos negócios estrangeiros da Federação Russa) não vos faz lembrar o Mohammed Saeed al-Sahhaf, o entusiasta ministro da Informação de Saddam Hussein que fazia declarações hilariantemente negacionistas perante a óbvia queda do regime iraquiano de então? Como vejo pouca televisão, nem sei se são parecidos fisicamente, mas ao nível do registo comunicacional são fenotipicamente os mesmos.
Foi esta perspetiva, de tentar auxiliar a Ucrânia no que está ao meu alcance, que me levou à segunda sala mais importante da cidade de Bruxelas: a Sala Gótica dos Passos da Câmara Municipal de Bruxelas (aqui dita Salle Gothique de l'Hôtel de Ville de la Commune de Bruxelles). É um contraste enorme entre a solenidade e a importância histórica da sala e o seu aspeto. Não é particularmente grande, a decoração é modesta e os materiais usados na sua construção variam entre o histórico trabalhado e o incompleto, entre o valioso e o pechisbeque, entre o aprumado e o abandonado, mas os belgas têm-lhe uma adoração que ultrapassa a sensatez. É de tal forma assim que, eu que não nutro qualquer estima pela sala, cada vez que lá entro, fico em silêncio contemplativo por respeito e tentando entender a lógica daquela contemplação coletiva.
Naquele dia, na tal Sala Gótica, iria decorrer um concerto de solidariedade para com a Ucrânia e, portanto, tendo sido gentilmente convidado, lá estava eu.
Antes do início do programa musical propriamente dito, as músicas, jovens ucranianas, tocaram os hinos da Ucrânia e da Europa e diversos políticos foram convidados a discursar. Como já adivinhava, mesmo antes de terem irrompido as primeiras notas do “A Ucrânia ainda não morreu” (o “Hino da Ucrânia”), já eu estava emocionado. Quando terminou o último acorde do quarto andamento da nona Sinfonia de Beethoven (o “Hino da Alegria” ou “Hino da Europa”) já não podia falar, tal o aperto na garganta. Sou assim…
Começaram os discursos…
O embaixador da Ucrânia em Bruxelas demonstrou “aquela enorme coragem que até se vê do espaço” (dito de forma mais vernacular nas redes sociais, mas que não posso repetir aqui). Disse tudo o que tinha a dizer e sem hesitar um instante em adjetivar com toda a precisão o que sentimos pelos ditadores russos, sobre a injustiça do sofrimento imposto ao povo ucraniano e apelou ao apoio internacional. No caso, por iniciativa das próprias músicas, fomos convidados a colaborar na aquisição de uma ambulância a ser utilizada no leste da Ucrânia. Contribui generosamente, se tivermos em atenção a minha atual situação laboral…
Tomaram também a palavra os presidentes das câmaras de Bruxelas e de Kiev (este último por via remota). Referiram o seu recente encontro em Kiev e como partilharam a dor e o sofrimento dos ucranianos, não hesitando o belga um milímetro em estar ao lado do colega.
No entanto, o discurso da noite foi proferido pela representante da Comissão Europeia. Tendo sido ela própria uma refugiada de guerra quando criança, tentou explicar o inexplicável para quem se vê, de um momento para o outro, longe de tudo o que conhecia. Partiu com absolutamente nada de Chipre, apenas tendo como consolo as palavras de sua mãe, dizendo-lhe que jamais lhe tirariam “a cultura e a educação” e isso era “tudo o que é necessário para começar de novo”. Por compreender esta importância, a Comissão Europeia abriu a possibilidade dos ucranianos concorrerem a programas de financiamento cultural como qualquer outro cidadão de um Estado-membro. Sobre a atitude do Governo da Federação referiu que, “por mais que destruam património cultural da Ucrânia”, e, segundo a UNESCO, já destruíram centenas de obras classificadas, “iremos reconstruir. Este património pode ser destruído, mas não será apagado! A União Europeia não permitirá!”
Começou a música…
Foram tocadas obras de compositoras e compositores ucranianos. Não sendo eu um apreciador fervoroso de toda música erudita eslava, estava preparado para não me deleitar particularmente…
Até que… apareceu na sala um jovem pianista de nome Kyrill Korsunenko. Fixem este nome. Ainda não é, mas não tenho qualquer dúvida que se poderá tornar num pianista de primeiro nível. “Eu ouvi-o” e, parece-me, daqui a uns anos, vou dizer isto orgulhosamente com um brilho nos olhos e de coração cheio!

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