Há belíssimas sensações
que são impossíveis de imaginar até que nos acontecem. Uma dessas pequenas
maravilhas é observar o cair da neve.
O contraste entre a aconchegante
e bucólica neve que cai lá fora com a revolta que o poeta sente perante o
sofrimento dos mais frágeis é o tema da “Balada da Neve” de Augusto Gil. Não é o
tema da minha Balada, possivelmente por não ter vivido os rigores do inverno na
Guarda do início do século XX.
Apenas quando comecei a
trabalhar na Bélgica, tive oportunidade de ver neve a cair como deve ser. Era
tão ignorante no tópico que julgava que a nevinha que tinha visto cair em
Lisboa e no Faial, nos mais rigorosos invernos, tinham algum significado. Nada
mais errado. Já era adulto bem entrado quando vi neve a cair com a dignidade
desse nome.
Lembro-me como se fosse
hoje. Era noite cerrada e, depois de mais um dia de trabalho que acabou tarde demais,
decidi ir para casa a pé. Os cinco quilómetros de frio estavam mesmo a calhar
para meter ideias em dia e desmultiplicar a velocidade a que ainda corria o
cérebro.
Ao virar uma esquina,
comecei a ver a neve a chegar-se entre mim e o candeeiro de rua mais próximo.
Silenciosos, elegantes, mas convictamente, os flocos de neve iam-se deixando
cair à minha frente. Primeiro poucos, depois mais, mas nunca demais. Tão
brancos, alvos com distinção. Desejei não chegar a casa.
Apesar do frio, deixei a
janela do quarto aberta para ouvir o silêncio da neve a cair. De manhã, ainda
caíram mais uns flocos, como que a garantir que eu os via. Sim, certamente eram
para mim, visto estar a gostar tanto. Pareceu-me justo.
No dia seguinte, alguns
centímetros de neve cobriam todas as superfícies que não tinham sido
anteriormente polvilhadas com sal. Em Bruxelas, é obrigatório os proprietários
colocarem sal nos passeios em frente de suas casas. A Administração Pública
trata das ruas. Portanto, restam os carros, os jardins, as árvores e os
telhados. Todos cheios de neve, como uma cobertura de açúcar na história de
Hansel e Gretel.
Desde então, ao contrário
da maioria dos meus colegas e amigos, desejo que o inverno seja frio e
terrível. Apelo aos ventos e tempestades para emprestarem o seu tempo a onde
quer que eu esteja e em que, pelo menos num dos dias, haja neve.
Amaldiçoo as alterações
climáticas por tudo, mas também por me estarem a roubar a probabilidade de ter
invernos frios. Não é sempre, até porque também adoro o calor e o chamado bom
tempo, mas, agora que a conheço, eu preciso de uns dias de neve por ano.
Este ano, no Luxemburgo, acordei
e levantei-me de um só salto quando me disseram que estava a nevar. Fui para a
janela ver, contemplar, fotografar e filmar. Vesti-me convenientemente e peguei
na bicicleta.
Ninguém me tinha
explicado. Ninguém me tinha explicado como era bonito andar de bicicleta no
meio da neve. Os pneus de inverno, com piso de pequenos pinos em borracha,
aconchegavam-se na neve permitindo um fluir razoavelmente rápido e seguro. Mas
mais do que isso, tão confortável... Era tão aconchegante que pensei poder
adormecer em cima da bicicleta.
Ninguém me tinha
explicado como era maravilhoso ver os flocos a cair à minha frente e, alguns, a
agarrarem-se ao casaco. Absolutamente fantástico. E assim fui, nos 8 km que
separam a minha casa do trabalho, a ver a neve a flutuar até ao chão, a tocar-me
e a dar-me memórias de suavidade e sincronia com o universo que nunca
esquecerei.
Os Açores são perfeitos,
mas, se pudesse mudar uma coisa, era dar ao arquipélago uma semana de intensa
neve por ano. Passariam de perfeitos a sublimes.
Esta é a minha Balada da
neve.
Sem comentários:
Enviar um comentário