sábado, 26 de julho de 2003

O Desenvolvimento Sustentado do Mar

Dia 5 de Junho tive a oportunidade de assistir a uma conferência pública do Professor Mário Ruivo. Tenho que adiantar que para nós, a generalidade dos biólogos marinhos portugueses, o Professor Mário Ruivo, a par do Professor Luiz Saldanha e do Investigador Emygdio Cadima, é uma das sumidades fundamentais da nossa própria identidade enquanto profissionais. É uma daquelas pessoas que fala com um enorme conhecimento de todos os temas que ligam o homem ao mar, ao que alia, ainda por cima, o saber próprio da idade. Portanto, o que o Professor Mário Ruivo diz é, para mim e à partida, uma verdade insofismável.

Nesta conferência, o Professor falou na importância da participação pública para o desenvolvimento sustentável. A partir das suas palavras, eu próprio criei a minha interpretação queagora partilho convosco.

Esta coisa do “desenvolvimento sustentável” nasceu em 1987 com o Relatório “O Nosso Futuro Comum”, também conhecido por Relatório Brundtland. A importância da “participação pública” no reforço do desenvolvimento sustentável ficou fortalecida na Conferência do Rio, 1992. Depois de Joanesburgo, em 2002, passou a defender-se algo chamado de “triálogo”. Digamos que, pela forma como eu pessoalmente o interpreto, o triálogo é a declaração de vitória do mundo capitalista. Assume-se que para além do Estado e da Sociedade Civil, a iniciativa privada tem uma palavra e uma responsabilidade no desenvolvimento sustentável. Ao Estado cabe o papel de mediador e à Sociedade Civil o papel de inventor e reivindicador. Não que me agrade, mas é uma aproximação realista, talvez compatível com um dos objectivos depois de Joanesburgo: “que os benefícios da globalização sejam para todos”. É difícil ver muitos benefícios na globalização: porque raio temos de ser todos iguais? Penso que a globalização pode ser uma machadada muito pouco interessante na diversidade e na Cultura, mas é certamente uma oportunidade para que os países pobres passem a ter acesso a comida. Tenho dúvidas que isso funcione assim, mas, de certa forma, é positivo que os países tenham consciência que, já que não podem lutar eficientemente contra a globalização, ao menos, ganhem algo com ela... É uma perspectiva um pouco derrotista, mas, quem sabe, realisticamente saudável.

A nível pessoal, tenho de repetir, nada disto me agrada muito. Penso que a iniciativa privada, enquanto tal, deveria ter um papel secundário em relação à sociedade civil e ao Estado, mas, realisticamente, se calhar este é o caminho a seguir. De facto, grandes empresas como, apenas a título de exemplo, a Coca-Cola, a Microsoft ou a Nestlé, têm um poder muito maior do que qualquer ONG, mesmo pensando na WWF, na Amnistia Internacional ou em outras. Se conseguirmos incutir a essas empresas um sentido de responsabilidade equivalente ao poder que já têm, talvez o mundo passe a ser um pouco melhor.

Como se traduzirá essa responsabilidade é algo que ainda não consigo vislumbrar. A Coca-cola continua a produzir uma bebida que faz mal, a Microsoft programas de computador que encravam e a Nestlé está a uniformizar a comida a nível mundial. Como podem essas companhias ser re-orientadas para um papel responsável? Elas não podem sequer imaginar a perda de lucro, seria contra-producente... Então como é que isto se irá processar? Não sei. O Professor Mário Ruivo considera que é o consumidor que irá alterar essescomportamentos das empresas, realizando opções de compra conscientes. Eu penso apenas que este será um dos grandes desafios do nosso tempo.

A nível político, como toda a gente sabe, a Cimeira de Joanesburgo não foi nada de muito importante. No entanto, houve mais duas conclusões de relevo: que é necessário erradicar a pobreza e que é necessário melhorar o nível de vida médio. Segundo as conclusões da mesma cimeira, isto poderá ser atingido através de intervenções a diversos níveis. Estes níveis deverão passar a ser conhecidos pela sigla WEHAB (do inglês: Water, Energy, Heat, Agriculture e Biodiversity). Água, Energia, Calor, Agricultura produtiva e com segurança alimentar e Bioversidade e gestão dos ecossistemas, são então os vectores de intervenção mundial no sentido do desenvolvimento sustentável.

O papel do Estado, ou do Super-Estado, como a União Europeia, será de produzir legislação que promova os interesses dos cidadãos, desde que permitam o desenvolvimento sustentado (i.e. a necessidade de conciliar o desenvolvimento económico com a preservação do ambiente) e com intervenções ao nível do WEHAB. Depois de Joanesburgo a evolução deste tipo de pensamentos tem continuado. Neste momento o interesse maior tem residido na criação de indicadores ambientais (Conselho de Laken, Dezembro de 2002) que, a par dos indicadores económicos e sociais, certifiquem a qualidade das decisões tomadas.

Quando escrevo estas linhas ainda não se sabe se a gestão da Zona Económica Exclusiva das Regiões dos Açores, Madeira e Canárias (área entre as 50 e as 200 milhas da costa) e de Portugal continental (entre as 12 e as 200 milhas), passou para a União Europeia, ou não. Essa passagem significaria que as águas do largo passarão a poder ser exploradas porqualquer navio da UE e utilizando qualquer arte, desde que cumprindo os escassos permissivos regulamentos comunitários. Na minha opinião isso seria um perfeito disparate e próximo de um crime ambiental. E mesmo em relação às resoluções da enfezada Cimeira da Terra de Joanesburgo isso seria de um antagonismo atroz. Não faz sentido que:

  1. as suas águas dos cidadãos de Portugal passem a ser exploradas por frotas irresponsáveis como a Espanhola (gosto imenso do povo Espanhol, mas o seu comportamento em relação à pesca é profundamente anti-ecológico);
  2. esta área seja gerida pela mesma entidade que não consegue controlar a decadência da pesca do bacalhau, entre outras pescarias, no norte da Europa (a União Europeia);
  3. não se preze a biodiversidade de ecossistemas frágeis, tal como já foi alertado por inúmeros cientistas, nomeadamente da Universidade dos Açores,
  4. não se respeitem as opiniões das ONGs (WWF, Seas at Risk e Greenpeace) as quais, numa carta conjunta dirigida ao Conselho da Europa, alertaram para o enorme perigo da abertura das águas da Macarronésia em relação às frotas internacionais;
  5. não se respeite o órgão representativo mais importante da Europa, o Parlamento Europeu, que já aprovou uma resolução apelando à manutenção da privacidade destas ZEE;
  6. se desrespeite o sentido ecológico dos pescadores Açoreanos que sempre se recusaram a utilizar artes de pesca demasiado destrutivas (redes de arrasto) e se empenharam na criação de áreas marinhas protegidas (a arte de pesca mais eficiente utilizada nos Açores está proibida até três milhas da costa).

Ao contrário de mim enquanto escrevo, quando ler estas linhas poderá já ter a informação suficiente para aferir o seu próprio indicador ambiental sobre o poder responsável dos Estados e o verdadeiro objectivo da União Europeia: lucro de curto prazo ou desenvolvimento sustentável?


Publicado na coluna "Casa Alugada"

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