Santa Cruz das Flores, Açores.
Foto: F Cardigos - SIARAM.
Ao rever os artigos que já publiquei, constatei que nunca toquei num assunto que já me fez sofrer um bom bocado: a extracção de areias. No final dos anos 90, surgiu o desafio para que o DOP fizesse a avaliação das areias existentes em volta das ilhas dos Açores. À primeira vista parecia um desafio inovador, porque nunca tinha sido feito nos Açores, e era necessário organizar muito trabalho de mar. Tinha o meu nome!
Já não me recordo se me ofereci ou se fui voluntariado… O que é certo é que, em conjunto com uma belíssima equipa, lá me meti a organizar as expedições. Diga-se neste ponto, em abono da verdade, que quando comecei não entendia nada, mesmo absolutamente nada do assunto. Pior do que isso, como tinha tido uma cadeira de geologia e outra de sedimentologia na universidade, pensava que sabia… Erro…
Porque a modéstia fica bem, falei com alguns colegas mais sabedores do que eu e, em conjunto com o Fernando Tempera, lá fomos alicerçando o conhecimento e o engenho necessário para debelarmos o desafio. Nas primeiras conversas, com colegas do Departamento de Geociências, ficamos a saber que, de facto, nos Açores a areia é um bem escasso e valioso. Pelo facto de não haver areia biogénica (formada pela degradação das conchas) a areia dos Açores resulta apenas do que é emitido pelos vulcões e do que é gerado pela degradação das rochas seja no leito das ribeiras ou nos chamados “rolos” junto ao mar. Daí a sua cor escura, ao contrário da coloração mais esbranquiçada das areias continentais. Em termos estatísticos, cerca de 90% da areia dos Açores é oriunda directamente dos eventos vulcânicos, 9% das escorrências das ribeiras e 1% da abrasão costeira. Portanto, o grande fornecedor de areia do nosso arquipélago tem estado improdutivo e ainda bem. A escassez de areia, essencial para a construção civil, pode, em última análise colapsar a edificação e, consequentemente, grande parte dos investimentos estruturais e, pelo menos, os empregos directos que a actividade gera.
Por tudo isto, ficou claro que tínhamos de ir procurar onde estavam localizados os depósitos de areias no mar dos Açores, tentar contabiliza-los e definir os locais que não deveriam ser explorados por questões relacionados com a sensibilidade ambiental. Aprendemos com os colegas do então Instituto Geológico e Mineiro que o princípio para procurar areias é extraordinariamente simples. Com aparelhos sofisticados provoca-se um grande barulho à superfície do mar, um autentico pequeno sismo, analisam-se os ecos, e, a partir daí, conseguem-se identificar as lagoas de areia que existem sobre o fundo rochoso do mar.
Infelizmente, para poderem circular perto de terra, os navios utilizados têm de ter pouco calado e a possibilidade de manobrar em pouco espaço. Em súmula, têm de ser pequenos navios… honestamente, lanchas. A embarcação escolhida foi então o “Águas Vivas” ou outros equivalentes. Também infelizmente, os circuitos eléctricos emissores de som, o tal grande barulho, têm de ser independentes dos que fazem a análise do seu eco. Ou seja, para cada sistema é imprescindível ter um gerador diferente. Somando tudo, para além dos dois motores da lancha, havia a bordo três geradores, sendo um deles dedicado a provocar um “grande barulho”. Tudo isto em onze metros de barco. Tenho-vos a dizer que este não foi o pior trabalho que jamais fiz, mas andou muito perto… Para poder aguentar todo aquele barulho, colocávamos protectores auditivos e, dentro destes, auscultadores de leitores de música com o volume no máximo, ou perto disso. Foi, realmente, um trabalho muito difícil e, à conta disso, ainda hoje odeio barulho. Felizmente, não ficámos surdos, mas pouco deve ter faltado.
Depois de termos andado a transportar esta maquinaria em volta da maioria das ilhas dos Açores, desenhamos os mapas que hoje servem para definir as áreas e os volumes de areias exploráveis no arquipélago dos Açores.
Certo dia, nas Flores, depois de trabalhar durante duas semanas a fio, já meios surdos, decidimos que iríamos descansar no Domingo. Era justo e, também, se não o fizéssemos, provavelmente, fugiríamos dali. Já ninguém aguentava mais um minuto de geradores… Mal sabíamos nós que havia uma disposição nas posturas municipais de Santa Cruz das Flores que, apenas aos Domingos, permitia, que em plena Vila, se matassem porcos de forma tradicional. Ao sofrimento do animal, expresso nos guinchos agudos e penetrantes, acrescia o nosso desespero. Foi o ponto mais baixo de um dos mais difíceis trabalhos que tive na vida. Felizmente, terminou!
À parte da violência da tarefa e do contexto que envolveu alguns dos seus momentos, este foi mais um contributo que os investigadores, técnicos e marinheiros do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores deram para o desenvolvimento sustentável da nossa Região. Ter participado nisso, deixa-me verdadeiramente orgulhoso.
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