Por F Cardigos.
Visto com os olhos da época, aquilo que hoje seria absolutamente inaceitável, a pirataria de Estado, a escravização de prisioneiros ou a condenação à morte sem julgamento prévio eram práticas comuns e também perpetradas por esta Ordem. Durante o tempo em que lhes foi dada a liderança do arquipélago de Malta, a Ordem aproveitou para saquear e pilhar todas as embarcações do poderosíssimo Sultão Suleimão I, “O Magnífico”, que passavam por perto. De tal forma a Ordem se tornou insuportável que acabou por obrigar o Sultão, contra vontade, a reagir.
Desta forma, o Sultão dirigiu para Malta uma força supostamente invencível que, aplicando uma estratégia mal desenhada e pior aplicada, acabou por não conseguir derrotar as forças cristãs. Ao contrário do que tinha acontecido em Rodes algumas dezenas de anos antes, quando os Cavaleiros de São João foram derrotados pelo Sultão, em Malta resistiram a uma força desigual que, ainda hoje, é apelidado de “o grande cerco”.
As aventuras e as atrocidades infligidas de parte a parte foram tais que ainda hoje servem de referência para demonstrar os extremos de intolerância e de maldade que os seres humanos conseguem infligir uns aos outros. Apenas para ilustrar, e peço desculpa aos mais sensíveis, uso um dos mais terríveis eventos.
Não conseguindo vencer os cavaleiros de São João pela força das armas, as forças do Sultão resolveram usar métodos de desmoralização do adversário. Assim, mataram parte dos prisioneiros e penduraram os seus corpos no exterior das muralhas de uma fortaleza que, entretanto, tinham tomado, expondo assim os corpos aos seus adversários. Como resposta, os cavaleiros de São João mataram também uma parte dos seus prisioneiros, decapitaram-nos e usaram as suas cabeças como balas de canhão que arremessaram por cima da fortaleza tomada... Tenho dificuldade em pensar em alguma coisa pior.
O que é certo é que os cavaleiros de São João, contra todas as expectativas, resistiram e repeliram as forças do Sultão. Malta resistiu e Malta ganhou. Com o tempo, mais de uma centena de anos, a Ordem desleixou-se, perverteu-se e acabou por se dissolver em termos militares com uma tomada pacífica da ilha por partes das forças de Napoleão. Apesar disso, a Ordem de Malta, com um figurino completamente diferente, ainda hoje existe.
Muitos anos mais tarde, durante a II Guerra Mundial, o arquipélago de Malta, já sem a Ordem, foi posto novamente à prova. Desta vez, as forças do Eixo cercaram e bombardearam intensamente Malta durante vários anos. Raide aéreo após raide aéreo, as bombas e a destruição foram desmoralizando e efetivamente destruindo as três ilhas habitadas do arquipélago. Nalguns dias, chegou a haver mais de duas dezenas de bombardeamentos, mas os malteses resistiram e não cederam.
Nas celebrações do Dia Europeu do Mar deste ano, tive a oportunidade de visitar a capital de Malta, La Valetta. Não pude visitar absolutamente mais nada porque todo o tempo foi consumido nos trabalhos. Em La Valetta, no trajeto que me levava do Hotel até à sala de conferências (o antigo hospital dos Cavaleiros de São João), encontrei umas estranhas portas na base do lado de fora das muralhas. Uma das portas estava aberta. Entrei. Lá dentro, um pescador arranjava as suas artes de pesca. Pedi-lhe para explicar o que pescava, como pescava e, obviamente, porque haviam portas no lado de fora de uma muralha?
A resposta foi pronta. Durante os raides alemães da segunda grande guerra, as famílias tinham de se esconder. Não podiam ficar em suas casas. Tiveram que escavar autênticos bunkers em todas as estruturas consolidadas de Malta onde, durante os três longos anos de cerco, os malteses se refugiram e, heroicamente, resistiram. Hoje, estes bunkers são casas de aprestos labirínticas, testemunhas de algumas das mais orgulhosas páginas da história deste povo que, por duas vezes, soube dizer “não” e resistir pelo que considerava correto.
No centro de La Valetta, na praça principal, há duas modestas placas que, por qualquer razão, me chamaram a atenção. Aproximei-me e li. Numa, o Rei Jorge de Inglaterra agradece aos malteses o heroísmo e devoção da sua resistência. Meia dúzia de metros mais à frente, na mesma parede, e com a mesma modéstia da anterior, Franklin Delano Rosevelt, enquanto Presidente dos Estados Unidos da América, reconhece ao povo de Malta o valoroso serviço à causa da liberdade e justiça muito para além do que seria espectável.
Malta, dizem, tem paisagens, tranquilidade, arte, cultura, tradições, desportos marinhos, vida noturna, e uma série de outras virtudes turísticas. Eu não tive oportunidade para experimentar estas virtudes e, mesmo assim, adorei. Em resumo: Malta, vale a pena!