Anémonas da espécie Parazoanthus sp. fotografadas na coroa do Banco Princesa Alice.
Foto: F Cardigos.
Como investigação fundamental cita-se habitualmente, para entender rapidamente o conceito, os estudos em matemática, em biologia descritiva, antropologia pré-histórica ou filosofia. Dificilmente imaginamos de algumas destas ciências sair, de imediato, alguma patente ou resultado com mais-valias económicas. No entanto, não há computadores que funcionem sem boa matemática, não há avanços no conhecimento evolutivo sem conhecimentos anatómicos detalhados, não nos conhecemos a nós próprios sem entender como aqui chegamos e nada disto funcionará sem os alicerces epistemológicos e morais associados à filosofia. Ou seja, não há ciências aplicadas sem as suas bases fundamentais.
Posto tudo isto, como se podem identificar as necessidades fundamentais e quais as ciências aplicadas a desenvolver? Manda a boa decisão política deixar os próprios cientistas identificarem os caminhos da investigação fundamental e reservar aos primeiros as perguntas necessárias para o desenvolvimento das ciências aplicadas. Portanto, neste momento, eu estou muito ligado à segunda parte da equação (ciências aplicadas) e menos à primeira (ciências fundamentais).
Apesar disso, não posso deixar de tecer algumas considerações. Nos Açores, faz-se investigação fundamental marinha que será, na minha opinião, fulcral para o nosso desenvolvimento abrangente, sustentado e responsável. Entre elas encontram-se os estudos em paleontologia e evolução, a taxonomia e a geologia.
Apenas com estudos paleontológicos que deem sequência ao esforço de anos feitos pelas equipas do Departamento de Biologia da Universidade dos Açores e seus convidados se poderá entender na totalidade o acervo que temos em Santa Maria. Esta ilha, que começou a crescer, sabe-se agora há 45 milhões de anos e que emergiu das águas há cerca de 8 a 12 milhões de anos, é o único local dos Açores que nos pode dar pistas sobre como se formou a vida no nosso arquipélago. Qual foi pois o contributo dos Açores para o desenvolvimento das espécies marinhas do planeta? Que espécies aqui viveram antes de nós? E porque desapareceram? Estas são perguntas muito interessantes e cujas respostas consubstanciarão a nossa própria existência.
O ramo da biologia que se encarrega de descrever as espécies, atribuindo-lhes nomes, toma o nome de taxonomia. Contam-se por poucos dedos os especialistas que, em cada grupo de espécies, têm a capacidade de fazer boas descrições. Com o advento da biologia molecular chegou a colocar-se em causa a necessidade destes especialistas, o que apenas os tornou ainda mais raros. Como se tem percebido ultimamente, são essenciais. É que apenas com este complemento se pode fazer com que a biologia molecular aplicada à sistematização das espécies, e estudos evolutivos relacionados, façam sentido. Estou a complicar… A biologia molecular pode analisar os genomas determinando a proximidade evolutiva entre dois ou mais organismos. No entanto, se não houver uma ciência descritiva, que associe esses números às características intrínsecas, de pouco nos servirão essas relações e proximidades genéticas. Nos Açores temos poucos taxonomistas. Um deles é o Professor Frias Martins e o seu trabalho tem sido coroado com a descrição de inúmeras espécies e o respeito da comunidade internacional ligada à malacologia (ciência que estuda os moluscos). Parece-me haver espaço científico para mais e, estou em crer, a necessidade que o legado deste investigador não fique sem escola ou, dito de outra forma, sem sucessores.
Quando se fala tão abundantemente da possibilidade de se virem a extrair minerais no mar profundo dos Açores, e parece-me que bem, é estranho que isso não seja acompanhado por um conhecimento profundo e detalhado da nossa geologia marinha. Até agora, têm sido essencialmente geólogos de fora do arquipélago a informar-nos do potencial e sensibilidade. Os nossos geólogos têm estado mais orientados para a investigação relacionada e lá está, aplicada, aos riscos geológicos (vulcões e terramotos), à geotermia, ao hidrotermalismo e à dinâmica costeira. É preciso mais e, parece-me, é preciso depressa.
De entre as várias ciências marinhas aplicadas e tentando intersecta-las com um futuro cluster marítimo dos Açores, parece-me que teremos de identificar as áreas de utilização do mar, tanto em termos reais como potenciais. Para além das já mencionadas, parece-me que tecnologias marinhas, o turismo, a engenharia costeira e a biologia pesqueira serão algumas áreas da ciência aplicada que deverão acompanhar-nos detalhadamente nos próximos anos.
Apenas se pode utilizar um meio tão hostil como o mar com ferramentas tecnológicas adequadas. Tal como os noruegueses já entenderam há muitos anos, essas ferramentas, para além de serem úteis localmente, têm a enorme vantagem de terem um mercado global onde poderão ser valorizadas.
O turismo do mar ainda está pouco desenvolvido nos Açores. É necessária análise científica que dote os decisores políticos com os cenários detalhados relacionados com a utilização equilibrada do mundo marinho. Queremos crescer, mas queremos que isso seja feito com inteligência, com respeito pelas populações locais e com sustentabilidade ambiental. Há que identificar nichos e falhas e alicerçar boas utilizações. Um curso de turismo não pode ser apenas de guias turísticos, embora eles sejam cruciais. Tem de haver uma ciência do turismo obviamente relacionada com um ordenamento territorial consequente. Países como a Costa Rica pediram aos melhores cientistas mundiais que pensassem o seu território e tiveram resultados extraordinários. Hoje, a Costa Rica é um país modelo. Tudo resultou do pensamento, do planeamento, da ação e da análise ou, resumindo, do seu desenvolvimento sustentável.
Num mundo ameaçado pelas alterações climáticas, em que as zonas de interseção entre o mar e a terra são consideradas as mais sensíveis, nos Açores conjuga-se o problema com a oportunidade. Se compararmos a nossa realidade com a de outros locais (o Continente, por exemplo), as nossas ilhas são uma imensa orla costeira. Para além das zonas de arribas, temos praias (de calhau rolado e areia) e temos portos. Todas estas zonas precisam da engenharia para resolver os problemas emergentes de um clima cada vez mais castigador e, aparentemente, associado a um mar crescente. Segundo alguns modelos, o nível médio das águas dos mares subirá até dois metros em 2100 o que, com os fatores cumulativos locais, pode significar subidas de onze metros. Não é o caso dos Açores, mas, mesmo com subidas de “apenas” dois metros, imaginem o que sucederá à maioria dos portos e marinas? Precisamos de ciência e precisamos dela rapidamente. Há que adaptar, melhorar e pensar bem nas novas infraestruturas.
Apesar de não ter escrito de forma hierárquica, chegamos agora à “última” ciência aplicada proposta. Num arquipélago que emprega milhares de pessoas na atividade da pesca, é fundamental ter uma ciência relacionada com a análise e avaliação dos mananciais, do potencial de pesca, da capacidade de carga e da determinação racional do esforço. É preciso utilizar os melhores modelos, estudar com os melhores cientistas e não perder a escola que já foi angariada pelo Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores. Apenas nos poderemos impor como decisores dos recursos vivos se tivermos acesso à melhor informação. E apenas nos poderemos impor desta forma porque a Comissão Europeia assim o exige e também porque moralmente apenas desta forma estaremos a agir de forma responsável.
Estas são algumas linhas com “cheiro” a futuro. É um futuro no qual eu quero participar até porque o aroma de futuro sustentável, que entregará um planeta melhor aos nossos filhos, é absolutamente irresistível.
* Biólogo-marinho, atualmente a exercer as funções de diretor regional dos Assuntos do Mar dos Açores.
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