domingo, 12 de novembro de 2017

Crónicas de Bruxelas: 6 - A boa música

Música de rua em Bruxelas.
Foto: F Cardigos

Era um jovem quando pela primeira vez estive numa cidade em que, no mesmo final de semana, havia mais de uma centena de concertos musicais gratuitos. A cidade era Bruxelas e o evento chamava-se então "Rally du Jazz". Ao caminhar pelas ruas de Bruxelas nesses dias, íamos ouvindo diferentes sons que escolhíamos ouvir durante mais tempo ou passar à frente. As melodias que a cada esquina se adivinhavam transmitiam emoções diversas. Entre o que se gostava e o que não se gostava, entre o que já se conhecia e o que se descobria, as vibrações eram muito positivas. Para mim, que, como a maioria dos jovens dos países do Sul, não tinha grandes recursos económicos, era uma forma de, adicionalmente, entrar em muitos dos espaços habitualmente pagos de Bruxelas. É que todos os concertos eram estritamente gratuitos.
Os músicos vinham dos quatro cantos do mundo, embora muitos fossem belgas e, diga-se, bons. A esse título conto uma pequena história. Um destes dias estive num concerto de uma banda musical da qual não sabia absolutamente nada, tirando o nome. Uns amigos desafiaram-me e lá fui eu para o que poderia apelidar de "blind concert". Gosto do conceito. Os "El Juntacadaveres", assim se chamava a banda, tocavam música de inspiração sul-americana e eram muito razoáveis. Gostei. Chegado o momento de apresentar os músicos, o vocalista começa a dissertar: "dos Estados Unidos da América, o nosso baixo", já não me lembro do nome, e continuou as apresentações até ao baterista, "de São Paulo, Brasil, Paulinho Curucutu, uma salva de palmas para ele!". Aplaudi, como aliás tinha aplaudido os restantes artistas. No final, não resisti e fui à saída de artistas onde várias pessoas se digladiavam para comprar CDs e obter os autógrafos dos músicos. Fiz o mesmo e dirigi-me ao Paulinho Curucutu. Estendendo o CD disse "Oi cara, vocês tocam muito bem. Fiquei surpreendido.", disse eu tentando dar uma entoação de terras de Vera Cruz às minhas palavras. Ele respondeu-me no melhor francês "Pardon. Que dites vous?!". Mas... "Vous êtes brasilien!?", disse eu entre o tom acusatório e confuso... "Moi?! Tu rigoles?! Je n'ai jamais été au Brésil.". Depois, continuou ele em francês, "Ah... as apresentações dos músicos... Isso é uma brincadeira que o vocalista faz para dar um aspecto mais convincente à nossa actuação! Desta vez fui brasileiro? Já fui argentino, colombiano e costa-riquenho... Desculpa..." Fiquei desarmado. Sabia que os poetas são uns autoassumidos mentirosos e aceites como tal pela sociedade, mas os músicos...? Não sei se está certo... No entanto, o fundamental para este artigo é que eles eram belgas e tão bons artistas que, sem hesitação, eu pensaria que eles eram naturais, crescidos e vividos nos quatro cantos do mundo que o vocalista apregoou.
Adolf Sax, o inventor do saxofone, era belga. Um dos meus guitarristas favoritos, Django Reinhardt, era belga. E dezenas de músicos que fui descobrindo em Bruxelas e em Portugal são belgas. Apesar de ser um país pequeno, a bélgica tem bons artistas em penso eu, isso resulta de uma política de educação musical que funciona. Para as crianças é relativamente fácil obter boas aulas de música por quase nada. Há, de facto, uma estratégia que privilegia as artes e, entre elas, a música. Por exemplo, as finais e meias-finais do concurso de musica clássica Rainha Elisabeth são transmitidas em directo pela televisão nacional e as finais em horário nobre. É uma estratégia que não deixa a boa cultura em segundo plano em relação às telenovelas e big-brothers, como vemos na nossa televisão portuguesa.
Uma das pérolas de Bruxelas é precisamente o Museu dos Instrumentos Musicais, um local imprescindível a quem visita a cidade. Começando pelo magnífico edifício Arte-nova e terminando na fabulosa coleção de instrumentos que podemos mesmo ouvir individualmente, tudo é extraordinário. O "Sounds", o "Jazz Station" e o "L'Archiduc" são alguns dos espaços que quase diariamente apresentam bons concertos. Desde o artista de rua, convidado a tocar nessa noite, aos melhores intérpretes internacionais, tudo é possível encontrar nestas e noutras salas.

Em qualquer final de tarde ou final de semana, nas ruas centrais de Bruxelas, temos sempre música pelo ar. Entre os cafés com música ao vivo, as salas de espectáculo ou os artistas de rua, há sempre música para nos animar ou, simplesmente, confortar. No entanto, durante o fim de semana do "Rally du Jazz", cujo nome passou a "Jazz Marathon" e agora é "Jazz Weekend", a harmonia é elevada a um nível absolutamente extraordinário. Que o digam os 300 mil visitantes que, nesse final de semana, enchem anualmente as ruas, cafés, discotecas e parques de Bruxelas.

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