Música de rua em Bruxelas.
Foto: F Cardigos
Foto: F Cardigos
Era um jovem quando pela primeira vez estive numa cidade em
que, no mesmo final de semana, havia mais de uma centena de concertos musicais
gratuitos. A cidade era Bruxelas e o evento chamava-se então "Rally du
Jazz". Ao caminhar pelas ruas de Bruxelas nesses dias, íamos ouvindo
diferentes sons que escolhíamos ouvir durante mais tempo ou passar à frente. As
melodias que a cada esquina se adivinhavam transmitiam emoções diversas. Entre
o que se gostava e o que não se gostava, entre o que já se conhecia e o que se
descobria, as vibrações eram muito positivas. Para mim, que, como a maioria dos
jovens dos países do Sul, não tinha grandes recursos económicos, era uma forma
de, adicionalmente, entrar em muitos dos espaços habitualmente pagos de
Bruxelas. É que todos os concertos eram estritamente gratuitos.
Os músicos vinham dos quatro cantos do mundo, embora muitos
fossem belgas e, diga-se, bons. A esse título conto uma pequena história. Um
destes dias estive num concerto de uma banda musical da qual não sabia
absolutamente nada, tirando o nome. Uns amigos desafiaram-me e lá fui eu para o
que poderia apelidar de "blind concert". Gosto do conceito. Os
"El Juntacadaveres", assim se chamava a banda, tocavam música de
inspiração sul-americana e eram muito razoáveis. Gostei. Chegado o momento de
apresentar os músicos, o vocalista começa a dissertar: "dos Estados Unidos
da América, o nosso baixo", já não me lembro do nome, e continuou as
apresentações até ao baterista, "de São Paulo, Brasil, Paulinho Curucutu,
uma salva de palmas para ele!". Aplaudi, como aliás tinha aplaudido os
restantes artistas. No final, não resisti e fui à saída de artistas onde várias
pessoas se digladiavam para comprar CDs e obter os autógrafos dos músicos. Fiz
o mesmo e dirigi-me ao Paulinho Curucutu. Estendendo o CD disse "Oi cara,
vocês tocam muito bem. Fiquei surpreendido.", disse eu tentando dar uma
entoação de terras de Vera Cruz às minhas palavras. Ele respondeu-me no melhor
francês "Pardon. Que dites vous?!". Mas... "Vous êtes
brasilien!?", disse eu entre o tom acusatório e confuso... "Moi?! Tu
rigoles?! Je n'ai
jamais été au Brésil.". Depois, continuou ele em francês,
"Ah... as apresentações dos músicos... Isso é uma brincadeira que o
vocalista faz para dar um aspecto mais convincente à nossa actuação! Desta vez
fui brasileiro? Já fui argentino, colombiano e costa-riquenho...
Desculpa..." Fiquei desarmado. Sabia que os poetas são uns autoassumidos
mentirosos e aceites como tal pela sociedade, mas os músicos...? Não sei se
está certo... No entanto, o fundamental para este artigo é que eles eram belgas
e tão bons artistas que, sem hesitação, eu pensaria que eles eram naturais,
crescidos e vividos nos quatro cantos do mundo que o vocalista apregoou.
Adolf Sax, o inventor do saxofone, era belga. Um dos meus
guitarristas favoritos, Django Reinhardt, era belga. E dezenas de músicos que
fui descobrindo em Bruxelas e em Portugal são belgas. Apesar de ser um país
pequeno, a bélgica tem bons artistas em penso eu, isso resulta de uma política
de educação musical que funciona. Para as crianças é relativamente fácil obter
boas aulas de música por quase nada. Há, de facto, uma estratégia que
privilegia as artes e, entre elas, a música. Por exemplo, as finais e
meias-finais do concurso de musica clássica Rainha Elisabeth são transmitidas
em directo pela televisão nacional e as finais em horário nobre. É uma
estratégia que não deixa a boa cultura em segundo plano em relação às telenovelas
e big-brothers, como vemos na nossa televisão portuguesa.
Uma das pérolas de Bruxelas é precisamente o Museu dos
Instrumentos Musicais, um local imprescindível a quem visita a cidade.
Começando pelo magnífico edifício Arte-nova e terminando na fabulosa coleção de
instrumentos que podemos mesmo ouvir individualmente, tudo é extraordinário. O
"Sounds", o "Jazz Station" e o "L'Archiduc" são
alguns dos espaços que quase diariamente apresentam bons concertos. Desde o
artista de rua, convidado a tocar nessa noite, aos melhores intérpretes
internacionais, tudo é possível encontrar nestas e noutras salas.
Em qualquer final de tarde ou final de semana, nas ruas
centrais de Bruxelas, temos sempre música pelo ar. Entre os cafés com música ao
vivo, as salas de espectáculo ou os artistas de rua, há sempre música para nos
animar ou, simplesmente, confortar. No entanto, durante o fim de semana do
"Rally du Jazz", cujo nome passou a "Jazz Marathon" e agora
é "Jazz Weekend", a harmonia é elevada a um nível absolutamente
extraordinário. Que o digam os 300 mil visitantes que, nesse final de semana,
enchem anualmente as ruas, cafés, discotecas e parques de Bruxelas.
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