sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Crónicas de Bruxelas: 51 - Bolsas de resistência


Poça da Ribeira do Ferreiro, ilha das Flores, Açores, Portugal
Foto: F Cardigos


É um enorme privilégio viver numa Região em que as prioridades não passam pelos combates à fome, ao terrorismo, ao banditismo ou às epidemias. Felizmente, estamos longe desses flagelos avassaladores e podemos concentrar-nos noutros problemas. Como seres humanos que somos, esses problemas secundários parecem-nos esmagadores. Não são.
Entre esses problemas secundários encontra-se a flora invasora. Ou seja, as espécies de plantas que não pertencem ao nosso património natural e que se propagam pelas nossas paisagens. Por razões diferentes, a conteira, o incenso, a hortênsia e a criptoméria, apenas para referir algumas, dominam a paisagem. O número de espécies de flora introduzidas desde o início do povoamento humano dos Açores é mesmo muito superior ao número das que aqui existiam anteriormente. Se formos puristas, como eu sou, não nos sentimos confortáveis com esta proliferação de alienígenas.
Por diversas razões, havia no momento do povoamento um grande laxismo ecológico. Ou seja, no nosso território existiam poucas espécies. Segundo estimativas, eram cerca de 400 espécies de flora e a essas damos-lhes o nome de “naturais nos Açores”. Dentro desse grupo, há um conjunto muitíssimo valioso que se denomina “flora endémica dos Açores”. Este grupo de espécies, as endémicas dos Açores, é valioso porque apenas existem no nosso arquipélago. Em nenhum outro lado é possível encontrar, na natureza, as espécies endémicas dos Açores. Ou seja, se alguém quiser ver flores como a Veronica dabney (não tem nome comum) ou a vidália na paisagem natural terá que se deslocar até ao nosso arquipélago. Muito antes de ser dos humanos, esta já era a terra delas.
Acontece que, neste momento, já existem mais de mil espécies de plantas nas paisagens dos Açores. Entre as que foram introduzidas para a produção ou auxílio à produção agrícola, as que foram introduzidas por razões estéticas e as que foram introduzidas por engano já há mais espécies introduzidas que naturais nos Açores. Olhando aleatoriamente para a paisagem, temos que fazer um esforço para encontrar espécies de plantas naturais nos Açores.
Há diferentes razões para o laxismo ecológico inicial dos Açores. A juventude das ilhas, a elevada distância ao continente e o seu tamanho reduzido são alguns dos argumentos comummente apontados pelos cientistas para o reduzido número de espécies naturais. Eu acrescento os eventos catastróficos, como os vulcões. Parece-me claro que se houver um vulcão como o dos Capelinhos, mas de maiores dimensões (e eles existiram nos Açores), facilmente as ilhas ficariam cobertas de cinzas e praticamente estéreis durante algum tempo. Quantas vezes isso aconteceu no passado? Com que dimensão? Com que consequências? Não sei. O resultado desta conjunção de razões é que, indiscutivelmente, temos poucas espécies de flora natural nos Açores. Compete-nos salvaguardar esta flora, como se tratasse da resistência perante um exército florístico invasor.
Por passar longos períodos fora dos Açores, posso verificar facilmente a evolução da paisagem como se tratassem de saltos no tempo e, há que admitir, a batalha está razoavelmente perdida. Não é possível contrariar totalmente o desenrolar dos acontecimentos dada a magnitude da invasão. Uma grande parte das espécies invasoras dos Açores vieram para ficar.
O que estas plantas não sabem é que a flora natural também tem os seus “truques na manga” e, com o tempo, saberá contrariar as invasoras, reduzindo-as para números admissíveis. Esta é a sequência espectável dos acontecimentos.
Apenas uma coisa poderá correr mal… Se deixarmos que as espécies naturais se extingam, então já nada haverá a fazer. Perante a morte, não haverá forma de as ressuscitar.
Ou seja, aquilo que está ao nosso alcance, e é mesmo essencial, é manter ou criar grandes e robustas bolsas de espécies naturais dos Açores, com particular ênfase para as espécies endémicas, que possam vir a contrariar as invasoras. Estas “bolsas de resistência” são uma responsabilidade de todos os açorianos e, obviamente, com particular relevância para a Direção Regional do Ambiente do Governo dos Açores (DRA). É com esta perspetiva que a Comissão Europeia tem vindo a financiar os projetos propostos pela DRA com valores muito elevados. São os casos do IP e do Vidália, projetos financiados pelo programa LIFE da União Europeia.
Hoje, olho para a Poça da Ribeira do Ferreiro (ou Poço da Alagoínha ou Lagoa das Patas, como preferirem), um dos locais mais belos à face da Terra e que fica na zona oeste da ilha das Flores, e sei que, daqui a uns anos será bem diferente e para melhor. Os incensos, as criptomérias e as conteiras que dominam o trilho de acesso serão parcialmente substituídos por floresta laurissilva. Esta é a sequência natural, basta esperar e criar as tais bolsas de resistência. A vitória é nossa, apenas não sabemos quando…

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