Catedral de Reims, França
Foto: F Cardigos
Todos nós conhecemos países cujos
habitantes trocam anedotas sobre outros países ou regiões. Estas anedotas são
injustas e dificilmente comprováveis, mas, muitas vezes, escondem uma certa
ternura. Na França, esta vítima é a Bélgica. Diversas anedotas começam por
“Estava um belga…” e o resto repete tantas outras anedotas similares usadas em locais
diferentes.
Eu penso que esta relação nasceu,
no entanto, com base no complexo de Electra. É que a França é, em muitos
aspectos, filha da Bélgica. Esta relação é tão profunda que nos esquecemos que
alguns vultos da cultura francesa e, logo, de França são, na realidade belgas.
O grande cantor da música
francesa, Jacques Brel, é belga. Os belgas de nascença Claude Lévi-Strauss,
antropólogo de renome mundial, Marguerite Yourcenar, escritora e a primeira
mulher eleita como membro da Academia Francesa, Tony Parker, o famoso jogador
de basquetebol, e a conhecida jornalista Florence Aubenas (foi refém no Iraque
durante cinco meses), adotaram a nacionalidade francesa.
Há casos de belgas que, apesar de
terem sido sempre belgas, tanto de nascença como de nacionalidade, para os
franceses, porque falavam e escreviam em francês, passavam por tal. Entre todos
eles, parece-me merecer particular destaque o padre belga Georges Lemaître, o
primeiro ser humano que teorizou sobre o “Big-Bang”. Há outros, como o escritor
Georges Simenon, o Père Damien, esse missionário humanista extraordinário, e o
desenhador de Lucky Luke, Morris. Django Reinhardt foi um fabuloso guitarrista
de etnia cigana que nasceu na Bélgica e foi consagrado em França. Também Adolphe
Sax, inventor do saxofone e outros instrumentos de sopro, nasceu na Bélgica e,
talvez porque viveu muito tempo e faleceu em França, passa muitas vezes por
francês. Não era. O comediante “francês” Alex Vizorek é belga.
A estes podíamos acrescentar,
cada um por sua razão, outros personagens conhecidos e apreciados em França que
nasceram na Bélgica: Bernard Yerlès, Francis Lemaire, Henri Garcin, Jérémie
Renier, Patrick Bauchau e Raymond Devos (actores), Cécile de France, Émilie
Dequenne, Marie Gillain e Natacha Amal (atrizes), Christine Ockrent e Charline
Vanhoenacker (jornalistas), François-Joseph Gossec (compositor), Helena
Noguerra (modelo), Irmã Emmanuelle (religiosa), Jean Servais (comediante), Lara
Fabien, Muriel Dacq e Régine (cantoras), Olivier Minne (apresentador
televisivo) e Samuel Buisseret (realizador). Gosto particularmente do caso da
cantora “francesa” Lio. Esta cantora nasceu em Portugal, em Mangualde, veio
para a Bélgica e tornou-se um ídolo em França.
Também na política francesa, há
belgas de destaque, mas esta é uma história que começa muito cedo e na
realidade justifica o título deste artigo. Fazendo uma história muito
complicada simples, depois da queda do império Romano, a Europa ficou
desorganizada durante centenas de anos. Ainda hoje há territórios que
ambicionam a independência, mas, naqueles tempos, eram os aristocratas que se
batiam constantemente para ampliarem, consolidarem ou defenderem os seus
territórios. Quando não entre eles, lutavam contra os árabes que, entretanto,
tinham aproveitado para se expandir para norte, ocupando a Ibéria e outras
geografias. Na zona entre a França e aquilo que hoje é a Bélgica nasceram
alguns nobres ambiciosos e violentos, como é o caso de Charles Martel. Adivinhe-se
de onde vinha o apelido “martelo”…
Muito antes dele viu a luz o Rei
Clovis I. Este primeiro Rei de França foi batizado na Catedral de Reims, onde,
por este facto, tradicionalmente se coroaram os restantes reis de França.
Clovis I foi o grande unificador do território daquilo que hoje é este país.
Acontece que Clovis I nasceu em Tournai, à época território franco sálio, hoje
território indisputadamente belga. Ou seja, o primeiro Rei de França era “belga” e a
Bélgica ainda nem sequer existia!
Por curiosidade, refira-se que
“Clovis” no francês moderno é “Louis”, o nome próprio de muitos dos reis
franceses. Ou seja, de certa forma, o primeiro Rei Luís de França era belga.
Repare-se que esta situação de
termos belgas a liderarem os franceses não foi caso único e repetiu-se até em tempos
recentes. Foi o caso de Paul Deschanel, Presidente da França no século XIX e que
nasceu em Bruxelas.
Também para o mal, a Bélgica teve
um papel preponderante na História da França. Não indo mais longe, repare-se de
onde vieram as duas últimas invasões bem-sucedidas de França. Tanto na primeira
como na segunda guerra mundial, os exércitos invasores entraram através
das Ardenas, ou seja, Bélgica.
Tudo isto é engraçado, mas a
verdade é que a Europa foi vítima de tantas movimentações de tribos e povos,
foi já dividida de tantas formas diferentes que encontramos ao longo da
História as mais surpreendentes ligações entre os povos europeus. Temos enormes
e belíssimas diferenças culturais, mas, em termos de gestão de alto nível faz
todo o sentido termos uma coordenação entre nós, porque, no final do dia, somos
todos, se não irmãos, pelo menos primos.
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