sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Crónicas de Bruxelas: 58 - O Berço de França


Catedral de Reims, França
Foto: F Cardigos

Todos nós conhecemos países cujos habitantes trocam anedotas sobre outros países ou regiões. Estas anedotas são injustas e dificilmente comprováveis, mas, muitas vezes, escondem uma certa ternura. Na França, esta vítima é a Bélgica. Diversas anedotas começam por “Estava um belga…” e o resto repete tantas outras anedotas similares usadas em locais diferentes.
Eu penso que esta relação nasceu, no entanto, com base no complexo de Electra. É que a França é, em muitos aspectos, filha da Bélgica. Esta relação é tão profunda que nos esquecemos que alguns vultos da cultura francesa e, logo, de França são, na realidade belgas.
O grande cantor da música francesa, Jacques Brel, é belga. Os belgas de nascença Claude Lévi-Strauss, antropólogo de renome mundial, Marguerite Yourcenar, escritora e a primeira mulher eleita como membro da Academia Francesa, Tony Parker, o famoso jogador de basquetebol, e a conhecida jornalista Florence Aubenas (foi refém no Iraque durante cinco meses), adotaram a nacionalidade francesa.
Há casos de belgas que, apesar de terem sido sempre belgas, tanto de nascença como de nacionalidade, para os franceses, porque falavam e escreviam em francês, passavam por tal. Entre todos eles, parece-me merecer particular destaque o padre belga Georges Lemaître, o primeiro ser humano que teorizou sobre o “Big-Bang”. Há outros, como o escritor Georges Simenon, o Père Damien, esse missionário humanista extraordinário, e o desenhador de Lucky Luke, Morris. Django Reinhardt foi um fabuloso guitarrista de etnia cigana que nasceu na Bélgica e foi consagrado em França. Também Adolphe Sax, inventor do saxofone e outros instrumentos de sopro, nasceu na Bélgica e, talvez porque viveu muito tempo e faleceu em França, passa muitas vezes por francês. Não era. O comediante “francês” Alex Vizorek é belga.
A estes podíamos acrescentar, cada um por sua razão, outros personagens conhecidos e apreciados em França que nasceram na Bélgica: Bernard Yerlès, Francis Lemaire, Henri Garcin, Jérémie Renier, Patrick Bauchau e Raymond Devos (actores), Cécile de France, Émilie Dequenne, Marie Gillain e Natacha Amal (atrizes), Christine Ockrent e Charline Vanhoenacker (jornalistas), François-Joseph Gossec (compositor), Helena Noguerra (modelo), Irmã Emmanuelle (religiosa), Jean Servais (comediante), Lara Fabien, Muriel Dacq e Régine (cantoras), Olivier Minne (apresentador televisivo) e Samuel Buisseret (realizador). Gosto particularmente do caso da cantora “francesa” Lio. Esta cantora nasceu em Portugal, em Mangualde, veio para a Bélgica e tornou-se um ídolo em França.
Também na política francesa, há belgas de destaque, mas esta é uma história que começa muito cedo e na realidade justifica o título deste artigo. Fazendo uma história muito complicada simples, depois da queda do império Romano, a Europa ficou desorganizada durante centenas de anos. Ainda hoje há territórios que ambicionam a independência, mas, naqueles tempos, eram os aristocratas que se batiam constantemente para ampliarem, consolidarem ou defenderem os seus territórios. Quando não entre eles, lutavam contra os árabes que, entretanto, tinham aproveitado para se expandir para norte, ocupando a Ibéria e outras geografias. Na zona entre a França e aquilo que hoje é a Bélgica nasceram alguns nobres ambiciosos e violentos, como é o caso de Charles Martel. Adivinhe-se de onde vinha o apelido “martelo”…
Muito antes dele viu a luz o Rei Clovis I. Este primeiro Rei de França foi batizado na Catedral de Reims, onde, por este facto, tradicionalmente se coroaram os restantes reis de França. Clovis I foi o grande unificador do território daquilo que hoje é este país. Acontece que Clovis I nasceu em Tournai, à época território franco sálio, hoje território indisputadamente belga. Ou seja, o primeiro Rei de França era “belga” e a Bélgica ainda nem sequer existia!
Por curiosidade, refira-se que “Clovis” no francês moderno é “Louis”, o nome próprio de muitos dos reis franceses. Ou seja, de certa forma, o primeiro Rei Luís de França era belga.
Repare-se que esta situação de termos belgas a liderarem os franceses não foi caso único e repetiu-se até em tempos recentes. Foi o caso de Paul Deschanel, Presidente da França no século XIX e que nasceu em Bruxelas.
Também para o mal, a Bélgica teve um papel preponderante na História da França. Não indo mais longe, repare-se de onde vieram as duas últimas invasões bem-sucedidas de França. Tanto na primeira como na segunda guerra mundial, os exércitos invasores entraram através das Ardenas, ou seja, Bélgica.
Tudo isto é engraçado, mas a verdade é que a Europa foi vítima de tantas movimentações de tribos e povos, foi já dividida de tantas formas diferentes que encontramos ao longo da História as mais surpreendentes ligações entre os povos europeus. Temos enormes e belíssimas diferenças culturais, mas, em termos de gestão de alto nível faz todo o sentido termos uma coordenação entre nós, porque, no final do dia, somos todos, se não irmãos, pelo menos primos.

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