sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 80: Só teu?

 
Ursula von der Leyen
(foto oficial)

Foi o Doutor Ricardo Serrão Santos, então diretor do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, que me ensinou a fazer análise rápida de textos com recurso à contagem de palavras. Naquele tempo, há tantos anos…, os processadores de texto passaram a incluir a ferramenta word count o que facilitou esta abordagem. Para entender tendências, passámos também a fazê-la em bases de dados, motores de busca na internet ou em qualquer suporte de dados passível de análise estatística.

Passaram-se os anos e continuo a usar esse instrumento para compreender a importância dada a temas chave nos longos discursos de políticos ou ensaios de pensadores. No meu caso particular, tenho um lote de palavras base e suas variantes, como, por exemplo, “Açores”, “açoriano”, “natureza”, “natural”, “naturais” ou “mar”, “oceano”, “biodiversidade” ou “ambiente”, que procuro quase sempre. A estas acrescento outras, conforme o tópico. Também por exemplo, num discurso de Estado procurarei palavras que me são caras como “liberdade”, “paz”, “tolerância” ou “solidariedade”.

SOTEU é o acrónimo da expressão inglesa State Of The European Union (estado da União Europeia) e é um discurso anual feito pelo Presidente da Comissão Europeia perante o Parlamento Europeu e na presença da Presidência do Conselho. Este ano o SOTEU foi proferido por Ursula von der Leyen, a atual Presidente da Comissão Europeia.

Num discurso de mais de uma hora e três de debate, Von der Leyen não se escondeu atrás de subterfúgios redondos ou expressões políticas cinzentas. Tocou em todos os dramas da União Europeia como os “fluxos migratórios desordenados”, a “saída do Reino Unido da União Europeia” e os “atentados ao Estado de Direito com génese na própria União”. Para os problemas apresentou soluções ou comprometeu-se a encontrá-las com urgência.

Passar a redução de emissões até 2030 de 40% para 55%, como a Presidente se comprometeu, é de uma enorme coragem. Vai ser um esforço enorme, mas, ao mesmo tempo, é uma visão que nos obrigará a olhar para o hidrogénio com outros olhos. De distante desdém, teremos de compreender que é a crucial âncora para quem quiser fazer parte do futuro coletivo da União Europeia. Ao escrever este texto, sou acompanhado por uma lição, via webinar, sobre o que está a acontecer na Comissão Europeia nesta área e os números aproximam-se todos das centenas de milhões de euros. Está mesmo a acontecer! Este não é o momento de hesitar. É o momento de estudar com agressividade e abrangência, planear com visão e bom senso e investir com parcimónia e consequência. Mas avançar! Numa região em que, graças à geotermia, há energia em excesso, temos obviamente de seguir este caminho. Na iminência de ganharmos 1% do Fundo de Transição Justa para as regiões ultraperiféricas, é claro como o puro ar dos Açores que temos de considerar o hidrogénio como um companheiro sinergético. O próximo Hydrogen Valley terá de ser no nosso arquipélago!

Entendo que é necessário encontrar os sound bytes certos para motivar e mobilizar os europeus. No entanto, a insistência na menção às lideranças europeias, reais ou futuras, soube-me a uma abordagem meio populista. Se pudesse tirar uma parte do discurso era essa. Nós somos a União Europeia. Lideraremos o que tivermos para liderar, mas, essencialmente, somos bons, agimos por bem e somos solidários.

Usando a análise por palavras-chave que referia no início, encontramos no discurso 106 referências à “Europa”, 23 referências à “economia”, 16 referências à “liderança”, 15 referências à “saúde”, 12 ao “verde”, 10 à “energia”, 6 ao “clima” e ao “estado de direito” e há cinco referências ao “racismo” e à “liberdade” e 4 à “paz”, ao “hidrogénio” e à “solidariedade”. Há duas referências ao “mar”, uma associada às “migrações” e aos “refugiados” (6 + 4 referências), e outra por causa da “proteção do Ártico”, e uma às “pescas”. A “agricultura” merece duas referências, uma en passant. A “biodiversidade”, “ecologia” e “natureza”, enquanto repositórios de vida selvagem, não mereceram referências. O Atlântico apenas mereceu chamada de atenção quando a Presidente mencionou as relações EU-EUA. Ou seja, para além dos aspetos já mencionados atrás, em resumo, transparece uma preocupação climática e a sua relação com a economia (energia) num contexto de pandemia, mas secundarizando o capital natural e a conservação da biodiversidade.

Como corolário do que aqui expus, se me perguntarem se o SOTEU era “só meu”, direi que “não”, não era porque falha em temas que me são muito caros, mas, curiosamente, responderia facilmente que o SOTEU “é nosso”.

Só teu? Não. De todos? Sim, de facto!

 

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Crónicas de Bruxelas – 79: Acabar com os monopólios planetários estimulando as alternativas europeias

 
Jardim Leopoldo, no exterior do Parlamento Europeu.
Foto: Frederico Cardigos

Há uns dias escrevi que era necessário apoiar as empresas de sucesso europeias. Pode parecer um pouco contraditório, mas não. Temos de passar do simples sucesso ao mercado global. Hoje, dada a globalização e a falta de competição, as empresas ascendem com aparente facilidade a monopólios planetários muito pouco saudáveis.

Há diversos exemplos e não me quero estender ou tornar-me entediante, mas, apenas para estimular a curiosidade, será que quem me lê sabe qual é o sítio internet mais popular? Fácil, é o Google. E o segundo? Um pouco mais difícil, mas também se chegava lá. É o Youtube. Estes dois gigantes da internet têm muitas características curiosas. Uma destas características é que pertencem aos mesmos donos (Alphabet) e a outra, também muito curiosa, é que têm mais visitas do que todas as outras vinte empresas mais visitadas somadas. Apenas o Facebook se aproxima e, mesmo assim, a uma enorme distância destes gigantes.

Até aqui referi o nome de três empresas e um grupo. Qual a característica comum entre eles? São todos norte-americanos.

E é isto. Analisando as empresas que dominam a internet, temos empresas ou organizações norte-americanas ou orientais. Entre as 13 mais visitadas, podemos encontrar apenas duas europeias e ambas russas. Ou seja, da União Europeia ou mesmo do Espaço Económico Europeu? Zero! Como é possível?! Como podemos estar a falhar tanto naquilo que diz respeito à globalização? A resposta é complexa e não inclui a falta de apoios financeiros. Para as grandes empresas de sucesso, os sistemas financeiros têm as soluções adequadas. No entanto, a resposta para esta falha europeia inclui a falta do estabelecimento de metas e objetivos ambiciosos de alto nível, a falta de cultura de empreendedorismo e a falta de educação para lidar com o risco, o erro e a falha. Tudo isto é verdade, mas agora quero dissertar sobre outros dois grandes problemas: legislação e burocracia.

Para estimular as soluções arrojadas e disruptivas, temos de dar espaço à criatividade e à liberdade. Ao cair na tentação de tudo legislar, quartamos qualquer atividade que não esteja antecipadamente prevista. Desta forma, nós estamos a criar barreiras à inovação. Para o resolver, há que dar mais espaço à liberdade e, mesmo, ao risco e ao erro.

Como resultado da última vez que demos algum espaço ao vazio legal nasceu o Spotify (um dos poucos casos de sucesso informático europeu), sendo este herdeiro dos sistemas peer to peer que vingaram no início dos anos 2000. Explicando um pouco melhor, até ao final do século XX a maioria das pessoas ouvia música através da rádio e de dispositivos gravados como cassetes e discos (ambos com vários suportes e leitores). Com o aparecimento da partilha de ficheiros online, através de programas peer to peer, como o Napster ou o Kazaa, o público mais jovem passou a massivamente ouvir música a partir do computador via internet. Uma pessoa partilhava o ficheiro de música num sítio internet e os interessados iam a esse sítio ouvir ou descarregar o ficheiro MP3 gratuitamente. Evidentemente, os direitos de autor eram vergonhosamente atropelados.

Relativamente a estes sítios internet, nascidos da falta de legislação que os limitasse ou ordenasse, rapidamente se percebeu que promoviam a injustiça, penalizando os autores que assim perdiam os seus direitos, e foram terminados. No entanto, o rasto do sucesso da partilha de ficheiros de música promoveu a ideia de o fazer ordenadamente e legalmente.

Nós, europeus, ficámos com a música, apesar da concorrência saudável da Apple. Sim, a concorrência leal e legal é sempre saudável, já a falta dela... No rasto dessa partilha de ficheiros online, os norte-americanos estão claramente a ganhar a batalha do vídeo (Netflix, HBO e Amazon).

Mais do que remoer por que estamos a perder o streaming de vídeo, apetece-me enaltecer estarmos na frente no áudio. Ou seja, podemos ser bons e podemos liderar. Falta-nos libertar dos sistemas napoleónicos de governação que tudo querem prever e legislar. Ao contrário, temos de dar liberdade aos inovadores e dar espaço aos empreendedores. Criemos e sejamos férreos em regras de alto nível: “não fazer mal” (um dos motes da Google, diga-se), “respeitar os direitos humanos”, “proteger os trabalhadores”, “proteger o ambiente”, “pagar impostos” (coisa em que somos peritos em falhar no que diz respeito às grandes empresas), “cumprir as leis e regras já estabelecidas” e pouco mais. Em caso de necessidade, deixemos a interpretação dos detalhes para o bom senso e para a justiça. Como nos sistemas anglófonos, acompanhemos construtivamente quem tem boas ideias, atuando onde precisam para irem mais longe, estejamos disponíveis para equacionar as regras que os próprios empreendedores pedirem, para, por exemplo, dar a estabilidade legal suficiente. Depois, fiscalizemos a posteriori, e aí sem piedade. Quem se aproveitar ilegalmente da liberdade dada deve ser altamente penalizado.

Quero ilustrar um pouco mais o que se passa em termos de legislação e burocracia excessiva na Europa. Quando estive ligado à investigação científica calculei que 30% do tempo pago para investigação era, na realidade, usado em burocracia. Entre relatórios trimestrais, anuais e finais, justificação de despesas fatura a fatura e acompanhamento dos fiscais da União Europeia (“auditores”, em europês) usava-se 30% do tempo (e dinheiro, claro) que era dado para a investigação. Mas… Obviamente, o financiamento era dado para investigar e não para a burocracia associada. Então como fazer?! Simples, trabalhava-se mais. Qualquer investigador em Portugal e nos outros países da União Europeia, naqueles anos, trabalhava 130% do tempo previsto e obtinha bons resultados científicos. Era assim e faziam-no apaixonadamente. No entanto, não era vida! Trabalhar sem a respetiva remuneração devia ter ficado fechado a sete chaves no tempo em que havia escravidão. Não é para os dias de hoje na União Europeia que queremos construir!

Claro que era muito mais simples atribuir os apoios de acordo com os objetivos estabelecidos e, no final, verificar o cumprimento desses objetivos. Se tiverem sido atingidos ou excedidos, o processo ficaria fechado. Que me interessa, enquanto cidadão europeu, se o cientista comprou um pacote de pastilhas elásticas porque sofre de dores de ouvidos nas viagens de avião, como tristemente vi auditarem? O que me interessa é que os cientistas descubram rapidamente a vacina para a covid-19! Focar no importante e deixar os preciosismos de lado.

Felizmente, entretanto, melhorou e já não se exige tanta burocracia aos cientistas. Mas o bichinho carpinteiro no legislador continua a existir. O que se passava na investigação científica arrasta-se tristemente a todas as atividades. Há uma enorme tentação em complicar o que é simples e de desconfiar de todos os seres humanos.

Nesta aproximação alternativa, no caso de não terem sido atingidos os objetivos propostos na sequência de qualquer apoio europeu haveria que ser muito agressivo na fiscalização. Esse seria o procedimento lógico e é por aí que temos de ir no futuro. Refiro apoios, mas, na realidade, isto deve ser aplicado a todos os níveis. Nós não podemos ficar reféns dos super-burocratas e das pessoas complicadas. Mas há tantas…

Ou seja, em resumo, há que reforçar as administrações para garantir o acompanhamento sinergético dos investimentos, garantir a regulação, incluindo a orientada para o mercado financeiro onde já falhámos diversas vezes, garantir a fiscalização incisiva no caso de alguma anomalia real ou potencial, reforçar a competência e celeridade da justiça e garantir a existência de excelentes legisladores que criem as regras necessárias para que as novas ideias possam proliferar em segurança. O brio do legislador deveria ter também por premissa não limitar ou complicar os direitos e liberdades exceto se absolutamente necessário. Afirmam alguns legisladores que a liberdade pode aumentar o risco social. Ou seja, se as empresas estiverem mais limitadas haverá menor probabilidade de acontecer um qualquer acidente. É verdade, mas se mantivermos este caminho dificilmente teremos inovação e empreendedorismo disruptivo. Por exemplo, com as nossas regras europeias, alguém crê que a Uber poderia ter nascido na Europa? Impossível!

Hoje, uma parte muito significativa do comércio mundial, incluindo das nossas PME, está nas mãos da Amazon. Qual a alternativa europeia?! É grave. Temos que aprender em casa, mas as plataformas de vídeo que usamos são o Teams, Zoom, Skype, WebEx, GotoMeeting… Europeias? Não.

Estamos na véspera de novas revoluções, como o Hidrogénio, o Mercado de Carbono, a Inteligência Artificial e outras que nem imaginamos nos nossos mais recônditos sonhos. Que fazer? Vamo-nos enredar em legislação ou estimular o nosso próprio sucesso assente em liberdade? Portanto, desburocratizemos. Assumamos que há algum risco e, com responsabilidade individual e coletiva, vivamos em plenitude a aventura da vida!

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 78: Made in Europa!

 


A crise consequente à pandemia de covid-19 fez soar diversos alertas. Um deles foi a falta de alguns produtos essenciais no velho continente. De repente, vimo-nos reféns dos países de mão de obra barata.

Aquilo que parecia um movimento internacional sinergético e estratégico, em que a União Europeia conservava as indústrias tecnológicas melhor remuneradas e em que permitia que economias emergentes beneficiassem do monopólio dos restantes produtos, revelou-se um desastre. Perante a carência global de máscaras, reagentes para testes médicos e outros, com legitimidade, os países produtores reservaram para si grande parte destes produtos.

Correu mal. No país onde trabalho, na Bélgica, por falta de reagentes não foi possível realizar testes à covid-19 em número minimamente adequado. Sem saber quem tinha contraído o vírus, tornou-se impossível controlar os diferentes focos, a doença proliferou e chegou aos locais mais sensíveis, como os lares de terceira idade. Este país passou a deter o triste título de maior número de mortes por habitante no planeta Terra. Outros países da União Europeia tiveram problemas similares o que terá, obrigatoriamente, de nos fazer pensar, planear e agir!

É necessário dar um passo atrás e definir que produtos estratégicos terão de ser produzidos na Europa, mesmo que isso nos custe mais. É uma questão de sobrevivência. Não podemos voltar a ficar reféns de países terceiros, vendo o caos a instalar-se nos nossos territórios e, impotentes, ver sofrer e morrer aqueles a quem mais queremos bem. Nunca mais!

Noutra vertente, hoje, enquanto escrevo estas linhas, a União Europeia ainda não tem uma aplicação para telemóvel que rastreie os contactos de proximidade e alerte em caso de contração da doença. Como é possível?! É evidente que as nossas legítimas exigências em termos de respeito pela privacidade são diferentes das da China ou das da Coreia do Sul, mas, tanto tempo…? Ainda por cima, a solução encontrada, e que países como Portugal estão a utilizar, tem por base aplicações da Apple e da Google. Faz isto sentido?! Num continente que tem a Tom-Tom, excelente em soluções de mapeamento, e a Nokia, excelente em software para plataformas móveis, por que razão o, potencialmente, mais importante instrumento de saúde tem de ter por base empresas norte-americanas?! Nada contra os Estados Unidos da América, antes pelo contrário, mas nós temos de ter a nossa autonomia, independência e soberania também no que diz respeito à Saúde.

Alargando o campo de observação, as maiores empresas do mundo são quase todas norte-americanas ou orientais. Segundo uma lista a que tive acesso, das vinte gigantes tecnológicas mais valiosas, apenas uma é europeia (trata-se da “SAP”, uma empresa alemã). De entre as 20 maiores plataformas de mensagens ou redes sociais, zero têm sede na União Europeia. Como foi isto possível?!

É necessário fortalecer as boas empresas globais que temos, como a Airbus, Spotify, Unilever, IKEA, Lego ou as da indústria automóvel, e estimular o empreendedorismo europeu para criarmos alternativas em termos de sistemas operativos, soluções móveis, equipamentos para a internet das coisas, reativar os têxteis, o calçado, recursos minerais, a comida e todos os produtos relacionados com a saúde. Não podemos continuar retraídos, apostando apenas na componente social das pequenas e médias empresas, como tem sido feito. É importante, mas muito limitado para a nossa própria segurança coletiva. 

No início da pandemia, em tempo record, a Comissão Europeia conseguiu repatriar 600 mil europeus que estavam bloqueados em países terceiros, no período em que cessaram a maioria dos voos comerciais internacionais. Repare-se, é o mesmo que, de repente, evacuar um país do tamanho do Luxemburgo. Foi uma importante tarefa e desempenhada com nível de excelência. Precisamos destes impulsos positivos e proativos!

Na minha opinião, da mesma forma que a Comissão Europeia geriu bem as pontes aéreas que se instalaram para rapidamente repatriar cidadãos europeus, tem de ser consequente, competente e inspiradora para o que se seguirá. Há que fazer um plano que seja orientador e estimulante para a indústria europeia. Isto diz respeito a matérias primas e produtos manufaturados, mas também a serviços e até a redes sociais. Não bastam palavras soltas. É preciso um extraordinário plano com potencial para ser entusiasticamente seguido pelos diferentes níveis de governação e todas as partes interessadas da União Europeia.

Ao mesmo tempo, é absolutamente crucial que os cidadãos europeus compreendam que, também eles, fazem parte da mudança. É essencial que nos disponibilizemos para comprar europeu, mesmo que isso custe mais caro. Se queremos continuar a ter segurança social, proteção civil, educação e boa qualidade de vida em geral, quando pensarmos em adquirir o novo telemóvel, o novo carro ou o novo computador temos de pensar “Europa”!