sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Crónicas de Bruxelas - 84: Sobre a covid-19 na China


Família Brennan na China.
Foto: Simon Brennan


Por uma questão de proximidade, por vezes, somos tentados a pensar que somos o centro do mundo. Na realidade, não é de todo assim. A União Europeia tem menos de 500 milhões de habitantes, o que representa menos de metade de outros países, como a China ou a Índia. Nestes países, a complexidade de um problema com abrangência global aumenta, potencialmente, para mais do dobro quando comparado com a União Europeia. Sendo assim pergunto-me como é gerida a covid-19 nesses países? O que podemos aprender? Da Índia, nada sei. No entanto, da China, sei e muito! Isso graças a um primo meu que emigrou e constituiu família há uma dezena de anos no país da Grande Muralha, o professor Simon Brennan. Com a sua autorização, traduzo e partilho parte de uma mensagem que enviou recentemente à família:

A vida aqui está totalmente de volta ao normal, exceto que a maioria de nós ainda usa máscaras. Na cidade onde moro não há nenhum caso endógeno há mais de 3 meses e os novos casos são de pessoas que chegam de avião. Existem grandes diferenças entre a China e a maioria dos outros países.

Ouvi dizer que, agora, algumas pessoas estão a usar uma aplicação de rastreamento em Portugal. Uma dessas aplicações é aqui usada há mais de 6 meses e ninguém reclamou. Na verdade, ninguém reclamou de qualquer medida preventiva em qualquer momento nos últimos 9 meses. Assim que os primeiros relatórios foram divulgados na China sobre o surto em Wuhan, eu e todos os outros em todo o país estávamos a usar uma máscara. Não foi preciso dizerem-nos. Era tão óbvio como usar um guarda-chuva à chuva ou tirar a roupa antes de tomar banho. Não há aqui pessoas a inventar teorias da conspiração ridículas ou mesmo seguindo qualquer uma das loucuras que vêm do oeste. Há definitivamente um lado positivo em ter o Facebook, o YouTube e o Twitter bloqueados.

As pessoas na China são muito eficientes a economizar dinheiro. A maioria das famílias tem dinheiro economizado para emergências. Apesar da pandemia e de não poder trabalhar, tivemos sempre o necessário para viver, comer e sobreviver durante esta emergência. A todos no país foi dito para ficar em casa. Qualquer coisa que se queira comprar pode ser entregue por motociclistas em qualquer lugar da China e é cobrada uma sobretaxa muito pequena por isso, cerca de 1 euro por entrega. Assim, praticamente todos puderam ficar em casa, viver das suas economias e ter tudo entregue, fosse comida, mantimentos, papel higiénico, livros, roupas, o que fosse.

Além disso, além da aplicação de rastreamento, todos estivemos a ser rastreados desde o primeiro dia. Sempre que se entrava num prédio público de qualquer tipo: loja, correio, hospital, qualquer coisa, era necessário registar o nome, telefone, número do BI e a hora de chegada e a hora de partida. Então, no caso de haver um teste positivo, as autoridades identificavam qualquer pessoa que estivesse estado na vizinhança durante as 24 horas anteriores, usando essas informações de rastreamento. Acrescentavam-se as pessoas que moravam no mesmo bloco de apartamentos e qualquer pessoa com quem esse positivo dissesse ter tido contato nas últimas duas semanas. Todas essas pessoas eram imediatamente testadas e colocadas em quarentena até que os testes tivessem resultados. Se algum desses testes fosse positivo, o processo repetia-se.

Tivemos mini-segundas vagas. Hoje, sempre que é encontrado um caso de transmissão local, as precauções mencionadas acima entram em ação e, em poucas horas, todos que os possam estar infetados são confinados. Ninguém reclama, pois todos percebem que é do interesse comum. Funcionou às mil maravilhas e estamos todos melhor com isso.

A China teve a vantagem de ter tido a experiência da SARS em 2002. Esta doença preparou-os para este novo surto. MERS, SARS e ébola eram problemas de outros para a maioria das pessoas fora da Ásia e da África. Mas a China teve sua aula prática e estava totalmente preparada para a sequela: a covid-19. A minha esposa comprou uma abundância de máscaras, luvas, lenços anti-sépticos, sabonete e álcool medicinal assim que Wuhan se tornou notícia nacional. Ela mostrou-me a mim e à nossa filha como lavar as mãos corretamente. Mostrou-nos o procedimento de descontaminação completo que eu tinha que seguir cada vez que chegava a casa. O processo demorava 15 minutos e envolvia borrifar todas as minhas roupas com álcool medicinal, removê-las e pendurá-las no varão por, pelo menos, 24 horas, lavar as minhas mãos cuidadosamente, limpar o meu telefone, chaves, maço de cigarros e isqueiro com toalhetes com álcool, em seguida, lavar as minhas mãos novamente e, finalmente, vestir-me com um conjunto de roupas limpas. Tudo o que chega de fora foi (e ainda é) limpo. Isso inclui cada saco de plástico, cada embalagem de cada alimento que é comprado. Nunca estive tão limpo em qualquer outra época da minha vida.


Sem comentários:

Enviar um comentário