Couto Misto é um território encravado entre Portugal e
Espanha, entre Trás-os-Montes e a Galiza. O que distingue este território de
qualquer outro é o facto de ter sido um país independente pelo menos desde a
fundação de Portugal até meio do século XIX. Durante centenas de anos, Couto
Misto observou a sucessão de reis em Portugal e dos monarcas dos diferentes
reinos que hoje constituem a Espanha sem lhes ser vassalo. Um dos países mais
antigos do mundo com eleições por democracia direta, o Couto Misto tinha, no
século XIX, 800 habitantes espalhados por terras que hoje são espanholas e
portuguesas.
Esta república secular recebeu o primeiro grande golpe
aquando das invasões francesas. Um general de Napoleão cujo nome não merece ser
repetido resolveu queimar todos os documentos que confirmavam a singularidade e
os direitos de Couto Misto. Um crime contra a humanidade, tal como tantos
outros cometidos pelos exércitos de Napoleão, e que, ainda hoje, carece de um
pedido de desculpa por parte de França. Em vez disso, o nome deste general consta
entre os gravados no Arco do Triunfo em Paris. Sei que a História tem de ser
vista à luz do seu tempo e que a guerra não é justa, mas a atuação dos generais
franceses que lideraram as três invasões de Napoleão foi arrepiante mesmo sob a
luz negra do seu tempo. Um bom amigo arqueólogo, não advogando o pedido de
desculpa, porque “guerra é guerra”,
disse-me “devolverem o que roubaram era
interessante”. Sim, concordo, era o mínimo!
O segundo e último golpe deu-se quando Portugal e Espanha
resolveram incluir Couto Misto na resolução de um conjunto de disputas fronteiriças
em 1864. Qual Salomão, dividiram o Couto Misto em dois ficando uma parte para
Espanha e outra para Portugal. Em 1868, o Couto Misto, enquanto país, acabou
formalmente.
Há vários anos que conhecia a história de Couto Misto e
aguardava apenas a oportunidade certa para o visitar. Estando em Soutelo de
Vila Real de Trás-os-Montes, terra da minha cara-metade, e de regresso a
Bruxelas de carro, tive finalmente a possibilidade de fazer um pequeno desvio e
vislumbrar Couto Misto. Munidos de máscaras e gel para as mãos, com a aplicação
de rastreio instalada nos telemóveis e conscientes da necessidade de manter o
distanciamento social, entrámos em Couto Misto por terras de Espanha.
Apenas em filmes de terror de má qualidade, vi alguém chegar
a uma aldeia e ser severamente avisado para partir de imediato. No entanto, foi
exatamente isso que nos aconteceu assim que colocámos um pé em Couto Misto.
Ao nos cruzarmos com o único habitante que vislumbrámos em Santiago
de Rubiás, uma das aldeias que constituem o Couto Misto, a resposta ao “buenos días!” no melhor castelhano que
consegui improvisar veio num Português de raízes profundamente nortenhas, “Que belo dia encontraram para nos visitar…”.
Estonteados entre o belo e inesperado português das terras setentrionais
da Lusitânia e a lisura bruta digna de um Miguel Torga, ainda respondemos, “Sim, de facto está frio” aludindo aos
flocos de neve que caiam aqui e ali. A contrarresposta foi tão simples como
clara. “Aqui há nove casos. Tenham cuidado e
não toquem em nada. Não falem com ninguém e vão-se embora pela vossa saúde.”.
Todos sabemos quão secos, honestos e escorreitos podem ser os
transmontanos, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Ali, em pouquíssimas
palavras, fomos confrontados com uma amostra de Portugal do Norte profundo.
De longe, acompanhei alguns passos daquela boa alma escondida
num corpo pesado com mais de um metro e oitenta de altura. Com as asas que não
lhe vi, deslocava-se de casa em casa perguntando se estava tudo bem e se podia
ajudar. Não vi mais nenhum dos 40 habitantes de Santiago, mas ouvi as
respostas, todas em Português com um sibilar de Viseu e uma correia castelhana.
Lamentavam a sorte, agradeciam a atenção e terminavam com um “Vai com Deus”.
Com um índice de casos de covid-19 de 22500 por 100 mil, este
deverá ser um dos territórios mais contaminados do mundo. Lembro que na União
Europeia, numa abordagem simplista, se passa para o nível “vermelho” com apenas
150…
Respeitando as indicações, não falámos com mais ninguém e
partimos depois de uma brevíssima passagem pelo adro da igreja para fotografar
a estátua do penúltimo juiz de Couto Misto, o líder tradicionalmente eleito, e de
darmos uma vista de olhos ao caminho “Privilegiado” que, ao abrigo da
independência deste antigo microestado, ligou livremente durante anos e anos os
reinos de Leão, da Galiza, de Castela e de Espanha a Portugal. Em poucas
palavras, estivemos em terras de contrabandistas legalizados por uma qualquer
razão que se perdeu na lonjura dos tempos e por entre as labaredas napoleónicas…
Gostaria de fazer longas dissertações sobre a pertinência, ou
não, da revitalização dos privilégios que fizeram de Couto Misto uma história
de sucesso, de tenacidade e de sobrevivência ao longo dos séculos. Desejava
dissertar sobre o que restou da cultura e sobre a justificação para a origem do
termo “Misto” (mistura, partilha ou místico?). No entanto, a pandemia impediu-me de conhecer os
habitantes de Couto Misto. Conheci apenas o seu anjo da guarda, que por todos
velava, mas foi muito pouco para o que ali nos trazia.
Voltaremos? Penso que sim. Há coisas que me escapam em Couto
Misto e que gostaria de entender. Passada a pandemia, iremos a este território
vizinho do berço da nacionalidade e cujas raízes antecedem Portugal. Estará ali
visível a alma fundadora do nosso país? É demasiado tentador.
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