sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Crónicas de Bruxelas - 88: Finalmente em Couto Misto

 


Estátua do penúltimo Juiz de Couto Misto.
Foto: F Cardigos

Couto Misto é um território encravado entre Portugal e Espanha, entre Trás-os-Montes e a Galiza. O que distingue este território de qualquer outro é o facto de ter sido um país independente pelo menos desde a fundação de Portugal até meio do século XIX. Durante centenas de anos, Couto Misto observou a sucessão de reis em Portugal e dos monarcas dos diferentes reinos que hoje constituem a Espanha sem lhes ser vassalo. Um dos países mais antigos do mundo com eleições por democracia direta, o Couto Misto tinha, no século XIX, 800 habitantes espalhados por terras que hoje são espanholas e portuguesas.

Esta república secular recebeu o primeiro grande golpe aquando das invasões francesas. Um general de Napoleão cujo nome não merece ser repetido resolveu queimar todos os documentos que confirmavam a singularidade e os direitos de Couto Misto. Um crime contra a humanidade, tal como tantos outros cometidos pelos exércitos de Napoleão, e que, ainda hoje, carece de um pedido de desculpa por parte de França. Em vez disso, o nome deste general consta entre os gravados no Arco do Triunfo em Paris. Sei que a História tem de ser vista à luz do seu tempo e que a guerra não é justa, mas a atuação dos generais franceses que lideraram as três invasões de Napoleão foi arrepiante mesmo sob a luz negra do seu tempo. Um bom amigo arqueólogo, não advogando o pedido de desculpa, porque “guerra é guerra”, disse-me “devolverem o que roubaram era interessante”. Sim, concordo, era o mínimo!

O segundo e último golpe deu-se quando Portugal e Espanha resolveram incluir Couto Misto na resolução de um conjunto de disputas fronteiriças em 1864. Qual Salomão, dividiram o Couto Misto em dois ficando uma parte para Espanha e outra para Portugal. Em 1868, o Couto Misto, enquanto país, acabou formalmente.

Há vários anos que conhecia a história de Couto Misto e aguardava apenas a oportunidade certa para o visitar. Estando em Soutelo de Vila Real de Trás-os-Montes, terra da minha cara-metade, e de regresso a Bruxelas de carro, tive finalmente a possibilidade de fazer um pequeno desvio e vislumbrar Couto Misto. Munidos de máscaras e gel para as mãos, com a aplicação de rastreio instalada nos telemóveis e conscientes da necessidade de manter o distanciamento social, entrámos em Couto Misto por terras de Espanha.

Apenas em filmes de terror de má qualidade, vi alguém chegar a uma aldeia e ser severamente avisado para partir de imediato. No entanto, foi exatamente isso que nos aconteceu assim que colocámos um pé em Couto Misto.

Ao nos cruzarmos com o único habitante que vislumbrámos em Santiago de Rubiás, uma das aldeias que constituem o Couto Misto, a resposta ao “buenos días!” no melhor castelhano que consegui improvisar veio num Português de raízes profundamente nortenhas, “Que belo dia encontraram para nos visitar…”.

Estonteados entre o belo e inesperado português das terras setentrionais da Lusitânia e a lisura bruta digna de um Miguel Torga, ainda respondemos, “Sim, de facto está frio” aludindo aos flocos de neve que caiam aqui e ali. A contrarresposta foi tão simples como clara. “Aqui há nove casos. Tenham cuidado e não toquem em nada. Não falem com ninguém e vão-se embora pela vossa saúde.”.

Todos sabemos quão secos, honestos e escorreitos podem ser os transmontanos, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Ali, em pouquíssimas palavras, fomos confrontados com uma amostra de Portugal do Norte profundo.

De longe, acompanhei alguns passos daquela boa alma escondida num corpo pesado com mais de um metro e oitenta de altura. Com as asas que não lhe vi, deslocava-se de casa em casa perguntando se estava tudo bem e se podia ajudar. Não vi mais nenhum dos 40 habitantes de Santiago, mas ouvi as respostas, todas em Português com um sibilar de Viseu e uma correia castelhana. Lamentavam a sorte, agradeciam a atenção e terminavam com um “Vai com Deus”.

Com um índice de casos de covid-19 de 22500 por 100 mil, este deverá ser um dos territórios mais contaminados do mundo. Lembro que na União Europeia, numa abordagem simplista, se passa para o nível “vermelho” com apenas 150…

Respeitando as indicações, não falámos com mais ninguém e partimos depois de uma brevíssima passagem pelo adro da igreja para fotografar a estátua do penúltimo juiz de Couto Misto, o líder tradicionalmente eleito, e de darmos uma vista de olhos ao caminho “Privilegiado” que, ao abrigo da independência deste antigo microestado, ligou livremente durante anos e anos os reinos de Leão, da Galiza, de Castela e de Espanha a Portugal. Em poucas palavras, estivemos em terras de contrabandistas legalizados por uma qualquer razão que se perdeu na lonjura dos tempos e por entre as labaredas napoleónicas…

Gostaria de fazer longas dissertações sobre a pertinência, ou não, da revitalização dos privilégios que fizeram de Couto Misto uma história de sucesso, de tenacidade e de sobrevivência ao longo dos séculos. Desejava dissertar sobre o que restou da cultura e sobre a justificação para a origem do termo “Misto” (mistura, partilha ou místico?). No entanto, a pandemia impediu-me de conhecer os habitantes de Couto Misto. Conheci apenas o seu anjo da guarda, que por todos velava, mas foi muito pouco para o que ali nos trazia.

Voltaremos? Penso que sim. Há coisas que me escapam em Couto Misto e que gostaria de entender. Passada a pandemia, iremos a este território vizinho do berço da nacionalidade e cujas raízes antecedem Portugal. Estará ali visível a alma fundadora do nosso país? É demasiado tentador.


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