Como já referi anteriormente, é muito raro seguir emissões televisivas. Para além do Telejornal, do Jardin Extraordinaire e do Benfica, raramente me apanharão embevecido no pequeno ecrã. No entanto, ontem, e por acaso, esquecemo-nos de desligar o aparelho depois das notícias da noite do canal belga francófono RTBF.
Sorrateiramente, começou a emissão seguinte,
o “#Investigation”. Detive-me um pouco e, depois, não pude perder pitada.
Tratava-se do resultado de meses de investigação jornalística sobre produtos biológicos
na Bélgica. Aconselho que assistam a este programa que está agora disponível online.
Ao longo de cerca de uma hora e 20
minutos foram apresentados indícios muitíssimo fortes de anomalias no respeito
pela legislação relacionada com a classificação de produtos biológicos. Lembro
que, de acordo com os normativos da União Europeia, para um produto poder
ostentar este título tem de respeitar um conjunto de regras, entre as quais a repartição
equitativa dos rendimentos, respeito pelos direitos dos trabalhadores, respeito
pelo bem-estar animal e não utilização de organismos geneticamente modificados.
Menciono estas regras especificamente porque, de acordo com os resultados
obtidos pelos jornalistas de investigação implicados, estão todas a ser
desrespeitadas por produtores e com o passivo beneplácito das grandes
superfícies comerciais belgas.
Alguns produtores belgas e outros
estrangeiros, com particular ênfase para os oriundos de Almeria em Espanha,
estão a contribuir ativamente para colocar dúvidas sobre a veracidade da
certificação dos produtos biológicos. Confrontadas com as provas inequívocas
dadas na reportagem, duas das grandes superfícies comprometeram-se a rever os
seus métodos e fornecedores e, posteriormente, deram nota aos jornalistas dos
resultados das suas ações. Dado parecer-me ser a forma adequada de reagir e
agir menciono os seus nomes: Carrefour e Delhaize.
Na reportagem são também sumariamente
investigadas as propriedades organoléticas e químicas de alguns destes produtos.
Fica o registo: os produtos biológicos com circuito curto (que são produzidos
localmente) são os mais saborosos, com menos poluentes e mais nutritivos e, os
piores, são os produtos alimentares não-biológicos com circuito longo (produzidos
noutro país).
Uma das pessoas entrevistadas referia
estarmos perante um período de dores de
crescimento dos produtos biológicos. Ou seja, a colossal procura dos
consumidores por produtos verdes obrigou as grandes superfícies a dispor de enormes
quantidades e isso reduziu o seu nível de exigência quanto à confirmação das
premissas que os classificam. Com o tempo, tudo irá melhorar, até porque o
consumidor assim o exigirá, referia a mesma pessoa com um bom senso que me
convenceu.
Para isso acontecer, para garantir
que os produtos chamados biológicos passem mesmo a sê-lo, será necessário
aumentar a transparência por parte dos produtores e dos vendedores. Ou seja, o
consumidor tem de poder ver para além das figuras bonitas da publicidade dos alegados
produtos biológicos. Com as novas tecnologias isso é, na realidade, facílimo. Por
exemplo, os grandes produtores de galináceos, que tantas tecnologias utilizam
para garantir a salubridade e produtividade, teriam de disponibilizar o streaming de vídeo dos aviários via
internet. Com este passo, qualquer um poderia verificar o respeito pelo
bem-estar animal. Obviamente, teriam de ser respeitadas questões relacionadas
com a proteção de dados industriais, patentes e, acima de tudo, a privacidade
de quem ali trabalhasse, mas, com alguma imaginação e engenho, tudo é possível.
Da mesma forma que podemos, a qualquer momento, verificar como são tratados os
animais nas pastagens dos Açores, também deveria ser possível escortinar o que
se passa dentro dos mega-aviários ditos de produção biológica.
De facto, como é salientado na
reportagem, custa muito a acreditar que unidades de produção com 20 mil
galinhas poedeiras num único espaço estejam a respeitar o mínimo bem-estar. Há que
aumentar a transparência.
Esta reportagem partilha muitos
outros detalhes, alguns deles reveladores de uma atitude desumana e hipócrita
por parte de alguns produtores, distribuidores e vendedores absolutamente
intolerável nos dias de hoje. Por outro lado, mostram também alguns belíssimos
exemplos que convém divulgar e tentar reproduzir.
Talvez mais importante do que a
própria reportagem seja relembrarmos o quão importante é o jornalismo de
investigação. Apesar de, segundo a ONG “Repórteres sem Fronteiras”, Portugal
ser um dos países com maior liberdade de expressão jornalística, há que
promover ainda mais a sua ação, garantir-lhes o acesso aos temas que
investigam, garantir-lhes as condições de trabalho previstas na lei e dar-lhes
alento. O jornalismo de investigação é essencial à sobrevivência da democracia.
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