Com honestidade, é impossível afirmar perentoriamente como será a realidade depois de terminar este quase Calvário a que chamamos de pandemia de covid-19. Parece certo que haverá mudanças e, olhando com atenção, há já alguns vislumbres desse mundo novo. Claro que, entre aquilo que pareceria lógico e de bom senso e a realidade que iremos observar, haverá, certamente, imprevisíveis diferenças. No entanto, deixemo-nos aventurar por esse perigoso mundo da adivinhação por algumas linhas…
Aqui em Bruxelas, os cientistas têm
sido questionados pela comunicação social, tentando obter pistas sobre esse
futuro. Mais do que dar respostas sobre o que nos espera, os cientistas,
pejados de discernimento, têm antes alertado para as oportunidades que se nos
apresentam.
Essencialmente, tentam transmitir uma
mensagem de contenção e de sustentabilidade. O racional é simples: se
conseguimos optar por produtos e serviços sustentáveis durante a pandemia e se
conseguimos reduzir o consumo durante este período, porque não continuar esse
percurso. É que, salientam os cientistas entrevistados, a manutenção dos níveis
de consumo de antes da pandemia acabarão por exaurir o nosso planeta.
Num mundo perfeito, cada pessoa que não
consiga reduzir o consumo deverá colmatar o seu impacto com ações ecológicas e
sociais. Por exemplo, quem viajar de avião deverá garantir que plantará ou
onerará a plantação de árvores que consumam os combustíveis que foram emitidos.
Ou seja, o viajante deverá compensar a sua pegada ecológica de alguma forma. Para
se ter uma ideia, uma viagem entre Lisboa e Ponta Delgada “custa” cerca de 20
árvores por pessoa.
Também no tecido urbano há outras
mudanças no horizonte. Salientava há uns dias o Presidente da Câmara do
Comércio Belgo-Portuguesa que os grandes edifícios da cintura de Bruxelas ocupados
por escritórios das multinacionais estão a ser adaptados para prédios de
habitação. Isso resulta de uma sequência de fatores que começou no início da pandemia;
fatores estes que, aparentemente, modificarão a cidade para sempre. Passo a
explicar.
Durante a pandemia, as multinacionais
foram obrigadas a colocar o seu pessoal a trabalhar a partir do domicílio. Estes
prédios ficaram vazios de uma semana para a outra e algumas empresas,
obviamente, terminaram os seus contratos de aluguer.
Ora, acontece que uma grande parte dos
funcionários vivendo em Bruxelas, se antes se contentavam com um apartamento
onde pudessem essencialmente dormir, agora querem uma habitação onde, adicionalmente,
tenham condições para trabalhar. Portanto, de repente, passou a haver uma
enorme procura por apartamentos de maiores dimensões e estes, simplesmente, não
existiam. Ao mesmo tempo que grandes prédios ficaram vazios. Uma combinação com
consequência óbvias…
Mesmo para as instituições europeias,
onde o teletrabalho generalizado era suposto ser temporário, há mudanças
aparentemente perenes. No caso da Comissão Europeia já se fala em haver, pelo
menos, 40% do pessoal em teletrabalho permanente. Também estes funcionários
irão querer os seus espaços de habitação ampliados. Para além disso, ao
contrário de preferirem uma habitação perto do centro da cidade, com acesso fácil
a restaurantes, cultura e outros serviços similares, agora, com o isolamento
social, estão a prescindir dessa proximidade.
Estas pequenas habitações no centro
também lhes davam acesso rápido aos empregos, visto estarem inevitavelmente
perto dos transportes públicos. No entanto, para ir uma vez por semana ao
emprego, como agora parece ser a nova realidade, passou a ser confortável estar
mais longe do centro.
Quem parece regozijar-se com isso são
os municípios limítrofes de Bruxelas. Enquanto as pessoas se contentaram com
espaços pequenos situados perto dos locais de emprego, estes municípios pouco
beneficiavam com a “bolha europeia”. Agora, com esta desintegração do bairro
europeu, olham para os “estilhaços” e tentam capturá-los para seu benefício. Novos
habitantes significam mais impostos recolhidos e novos empregos criados nas
lojas e serviços de apoio. Esta migração é um autêntico maná para os autarcas
com visão.
Hoje de manhã, a caminho do Gabinete
dos Açores em Bruxelas, parei a bicicleta num semáforo vermelho. Olhei distraidamente
para um edifício de escritórios e estranhei a sua aparência decadente. Dou mais
atenção e reparo num anúncio de obras que preenche parte da sua face lateral onde
leio: “demolição (…) reconstrução (...) com 124
alojamentos”. Se faltava alguma evidência, ela aqui está! O mundo de
Bruxelas está a mudar. Nada será como dantes!
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