Foto: Paulo Henrique Silva, SIARAM.
Ao longo dos últimos anos, tenho
mantido uma colaboração regular com diversos órgãos de comunicação social.
Primeiro, na saudosa Revista Mundo Submerso, onde publicava crónicas sob o
título genérico “Casa Alugada”. Depois, no Correio dos Açores e no Tribuna das
Ilhas, as “Crónicas de Bruxelas”. Terminado o meu período de vida em Bruxelas,
a minha vinda para Lisboa leva-me a iniciar um novo ciclo.
Para encontrar um nome para este novo
ciclo, resolvi começar por pensar como me sentia. Admito, rapidamente concluí
que me sinto um pouco nómada. Senti-me bem nos Açores, em qualquer ilha, e
chamo casa ao Corvo e ao Faial. Senti-me bem em Bruxelas e em todos os locais
que fui visitando ali à volta em trabalho ou lazer. Nos diferentes sítios do
continente onde vivi na minha juventude, Lisboa, Casal Vidigal, Torres Novas e
Faro, senti-me sempre bem. Os primeiros dias de regresso a Lisboa vão no mesmo
sentido, sem problemas de adaptação.
No entanto, há sempre uma
subjacente vontade de regressar ao Mar e, em particular, ao Mar dos Açores. Vou
viajando, mas, aquilo a que posso chamar casa tem maresia e água salgada, como
um cagarro. Cagarro!? É isso, digo silenciosamente em tom de eureka!
Entre o estridente som dos
cagarros a povoar o céu noturno da Vila do Corvo e as horas passadas na
campanha SOS Cagarro, sinto que tenho alguma afinidade com esta ave marinha,
apesar de não ter qualquer pretensão a ser ornitólogo. Até o meu primeiro
trabalho de campo sério nos Açores foi com cagarros. Então, no Morro de Castelo
Branco, recolhia regorgitações de cagarros e tentava, com verdadeiros
especialistas, identificar os seus itens alimentares.
Muito bem, cagarros será. Mas
cagarros quê? Falta aqui qualquer coisa… Deixei a imaginação e a memória voar
mais um pouco.
Há muitos anos atrás, em 2003, participei
numa reunião internacional da Convenção OSPAR que decorria no Algarve (Tavira).
Como qualquer reunião internacional oficial, o país tinha um representante mandatado
pelo Governo e um corpo técnico de apoio. Eu pertencia ao corpo técnico e tinha
por missão aconselhar o representante. Este, espelhando ou não a opinião dos
técnicos que o auxiliavam, expressava a posição do país. Foi neste contexto que,
entre colegas, dissertei um pouco sobre a necessidade de um maior
reconhecimento mútuo do Mar de Portugal, assente nos bons exemplos do
Continente, dos Açores e da Madeira.
Um colega mais experiente,
chamou-me de lado e disse-me: “as colónias portuguesas de pardelas [é
assim que os continentais chamam os cagarros] representam os vértices de um
polígono que tem de ser português”. Discretamente, esbocei numa folha de
papel um polígono que tinha como extremos as Berlengas, as Selvagens e a Ilha
do Corvo e concluí intimamente: “um triângulo gigante e perfeito, o
triângulo de Portugal”. Gravei. Passados uns anos, Portugal iniciou os
trabalhos relacionados com a extensão da plataforma continental e o primeiro
mapa divulgado unia, finalmente, a trilateralidade num oceano luso único.
O cagarro, o voo do cagarro, o meu voo. Voo do Mar dos
Açores no Mar de Portugal e a este volto com prazer. É isso. “O Voo do Cagarro”!
O Voo do Cagarro será o título da minha nova série de crónicas. Aqui fica a
primeira, outras se seguirão.
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