Foto: F Cardigos
Portugal é um país com uma cultura rica. É quase um lugar comum ler isto, mas eu acredito plenamente na sua veracidade: a cultura e a arte do nosso país, plasmada em todos os temas que consigamos imaginar, é diversificada, contrastada e surpreendente. No entanto, mesmo eu, com esta convicção, por vezes fico deveras surpreendido.
Estava a almoçar na Póvoa de Varzim com um conjunto de
pessoas que mal conhecia. A conversa gingava por temas inertes, típico de quem
não sabe mais sobre os interesses dos seus interlocutores. Já tínhamos passado
pela típica conversa sobre o tempo, a pandemia estava arrumada e o silêncio
ameaçava impor-se… Sinceramente, já tinha deixado de me concentrar nas palavras
que saltavam de um lado para o outro da mesa quando alguém disse algo que captou
a minha atenção. “As geminações entre cidades duram tipicamente um dia. O
dia da assinatura.” Não faço ideia como a conversa chegou ali, mas
interessava-me. Até porque tenho algumas ideias sobre uma potencial geminação
para a cidade da Horta, regressei ao mundo dos atentos e segui com atenção.
“Nós aqui na Póvoa temos uma ideia diferente. Apenas
admitimos geminações com cidades com que se estabeleçam relações perenes e
consideramos que isso é possível se houver uma história muito forte que ligue
os dois lados.” Pareceu-me sensato. “Por isso, vamos propor uma
geminação com a cidade espanhola onde a nossa comunidade piscatória se abriga
quando é apanhada por tempestades”.
“Como sabem?” retorqui eu, percebendo que me tinham
faltado palavras, “Como sabem que é nessa cidade e não noutra? Portos são
portos, certo? Devem abrigar-se no porto que estiver mais perto e não numa
cidade específica.”
A resposta foi tão imediata que compreendi que era assunto
já falado e amadurecido na Póvoa. Explicaram-me que a porta da igreja, naquela
cidade espanhola, tem inscrições com as siglas das suas famílias de pescadores
da Póvoa. Estranhei a expressão “siglas” e perguntei, “que siglas são essas?
Acrónimos?” Negativo. Eram, na realidade, desenhos originais. As famílias
de pescadores da Póvoa de Varzim têm sinais próprios e únicos para se
identificarem. “A sério?!”, respondi em tom de espanto. “Sim”,
complementaram dizendo, “as camisolas de lã poveiras, aquelas que foram recentemente
alvo de um plágio com mediatização internacional, cada uma tem a sigla da
família a que pertence. Aliás, as artes de pesca e os barcos, tudo tem o desenho
específico da família em causa.”
“Mas isso é fantástico! É um aspecto cultural que eu
desconhecia por completo”. Os meus interlocutores esboçaram um sorriso, com
verdadeiro gosto por partilhar algo que me estava a fascinar e continuaram. “Os
pescadores da Póvoa de Varzim têm regras e códigos próprios que são reconhecidos
com apreço pela restante comunidade da região. Por exemplo, se um pescador
adoecer, os outros levarão as suas artes para o mar, para que ele continue a
pescar, mesmo sem lá estar. Este nível de reconhecimento pela identidade
própria é tão elevado que, até há pouco tempo, os pescadores que tivessem de ir
a tribunal eram autorizados a levar consigo alguém que explicasse os factos ao
juiz de acordo com as regras da comunidade e essas eram tidas em conta nas
decisões”.
O almoço estava a terminar, mas antes de concluir, um dos
interlocutores ainda me disse. Se quiseres saber mais coisas sobre a Póvoa de
Varzim, experimenta, por exemplo, procurar por “tricana poveira” na internet.
Procurei e fiquei ainda mais espantado. Pensei com os meus botões: “se é
assim com uma cidade, multipliquemos por todas as cidades de Portugal… Temos um
país extraordinário. Apenas há que ir à procura e, principalmente, não nos
deixarmos iludir por um primeiro olhar ou com as primeiras palavras trocadas.
Para descobrir, para nos maravilharmos, há que procurar, explorar e conversar.
A magnífica jornada do conhecimento, cá dentro!”
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