Talvez por ter nascido em Lisboa, os alfacinhas sempre me fascinaram. Aqueles personagens dos livros do Mário Zambujal, os declamados no “Fado Falado” ou os cantados por Jorge Palma sempre me fizeram abrir o sobrolho, mesmo no dia mais sombrio.
Num destes dias, bem cedo…
A senhora dona Lucinda está sentada à porta da tasca. Antes
casa de má fama, a tasca é hoje apenas um dos sítios onde se encontram
involuntariamente os que saem do turno da noite e os que “pegam” cedo. Um
último copo para os primeiros e uma bica rápida para os segundos.
Do alto dos seus setenta e muitos, possivelmente oitenta anos,
senão mais, a senhora dona Lucinda ofertava quem entrava um generoso “Bom dia,
senhor…” a que se seguia o nome próprio da pessoa em causa, pronunciado com
todas as letras, sílabas e cautelas.
Praticamente sem levantar os olhos do jornal, a senhora dona
Lucinda exibia a sua capacidade sobrenatural de reconhecer quem passava usando,
possivelmente, dotes de feiticeira. A idade tem destas coisas… Tinha-lhe levado
todos os que lhe eram próximos, mas deixou-lhe a vista e a boa disposição.
Todos os que entram respondem educadamente, “bom dia,
senhora dona Lucinda”, mais uma vez com todas as letras, sílabas e cautelas.
Aquele é um local de respeito, por muito atabernada que tivesse sido aquela
tasca no passado.
A todos, a senhora dona Lucinda responde que “a senhora está
no céu”. Aparentando ser a lenga-lenga assumida, o diálogo para por ali e o
transeunte entra na tasca pedindo seja lá o que for adequado: “bagaço ou
café?”, ouve-se de lá de dentro.
Aproximou-se o Pintas. Com ou sem esse nome, qualquer
história de Lisboa que se passe entre Alfama e o Bairro Alto, tem que ter um
Pintas. Aqui não é bem essa geografia, mas, sem dúvida, em território de
Olissipo.
“Bom dia, senhor…”. Dona Lucinda hesitou e travou a tempo.
“Senhor” não se adequava ao Pintas. Tinha demasiadas bebedeiras, pancadarias e
mulheres alheias no currículo... Resolveu então variar e completou-se a si
própria de forma original: “Senhor, não, que esse está no altar. Bom dia,
Pintas”.
O Pintas não se ficou e respondeu à letra, “Tem a certeza,
senhora dona Lucinda? Ele podia ter estado no altar, mas ontem tive algumas
dificuldades de cashe flóu e o Senhor talvez me tenha dado uma ajuda. Ele manda
saudades e pergunta quando é que lhe faz uma visita!”.
A senhora dona Lucinda soltou um riso alto, imediato e
descontrolado. “Ó Pintas, só tu para me fazeres rir!”, disse reconhecendo a
presença de espírito do seu interlocutor. “Bem apanhada! Ganhaste.”, completou.
“Ganhar, ganhar, ainda não ganhei nada. Mas, ó dona Lucinda,
tem aí mas moedas para eu fechar a noite? Tenho que ir para o vale dos lençóis e
preciso do embalozinho dum bagaço…” “Então tu tiveste a falar com o Senhor e
vens-me pedir trocos a mim?!”, a idosa queria nitidamente ripostar, mas o
improviso era território do Pintas: “Sim, falei e ele disse para me dar dinheiro
para uma refeição. Eu estava era a fazer-lhe um desconto!”.
É assim na Lisboa que amanhece…
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