Quis o destino que passasse por
vários países africanos em pouco tempo. A quantidade e a variedade de
sentimentos e sensações são demasiado vastos para conseguir sistematizar ou
alegar qualquer autoridade sobre esta geografia, mas aqui ficam algumas
pinceladas iniciais.
Em África o contraste social é
estonteante. São visíveis a riqueza e a opulência da elite financeira e dirigente.
A classe média também tem recursos suficientes para viver bem. Em contraste, há
muitas pessoas pobres, muito pobres mesmo, e esta classe representa a
esmagadora maioria da população em qualquer dos países que visitei.
Entre os pobres, há os que nada
têm e os que, apesar de tudo, vão, com muito esforço, ganhando um dia e o
próximo e arranjam o suficiente para alimentar a sua família. Quando digo muito
esforço é mesmo, mesmo muito esforço para ganhar muito pouco. O rendimento per
capita mensal médio de um dos países que visitei é de 30 euros. Um euro por
dia. Quem de nós se imagina a viver nestas circunstâncias?
Apesar disso, apesar de ser mesmo
muito difícil, eu vi famílias a lutarem e a conseguirem que os seus filhos
continuem a ir à escola. Com um resto de uniforme e uma gravata cheia de nódoas,
mas iam! E diziam que era importante e que tinham de ir aprender com os
professores.
O nível de empreendedorismo em
África é extraordinário. Há lojas, lojecas e banquinhas onde se vende de tudo,
desde fruta ao sumo de rua, passando pelas peças para automóveis. Uma placa
dizia que se Jesus Cristo voltasse à Terra era ali, naquela barbearia, que
cortaria o cabelo. Uma pequena casa muito longe de estar terminada exibia as
duas estrelas do Hotel Central de uma cidade do interior. Basta um guarda-sol e
um banco e está feita a loja onde jovens vendem saldo para o telemóvel. E estão
e continuam na luta, enchendo de vergonha as nossas preguiçosas depressões
ocidentais.
E dançam e cantam. Batem palmas e
exibem os corpos com um extraordinário sorriso rasgado e orgulhoso. Tocam
maravilhosamente, pintam com cores garridas, cheias de laranjas, verdes e
azuis. Sabem esculpir peças que explicam o mundo como é visto pelos seus olhos
e dissertam entusiasticamente sobre o seu significado. Pegam em lixo e
transformam em arte que, em muitos casos, exibiria na minha casa com prazer.
Deixem a paz instalar-se em
África e este continente vai desabrochar de imediato. As pessoas aqui sabem
lutar, têm imaginação, têm garra e estão sedentos de vida. A compreensão da
importância da educação, o respeito pelo ambiente e a diversidade cultural são
os pilares que me dão alguma segurança ao afirmar que África tem futuro!
Depois há as pessoas em situação paupérrima…
Ao final do dia, já lusco-fusco,
apeteceu-me ir dar uma volta até ao bar mais próximo do hotel. O local
escolhido, onde se podia beber uma cerveja e conversar, ficava a um quarteirão
de distância. Saí, andei um pouco e, mesmo antes de entrar, fui abordado por um
jovem que me disse “dá-me dinheiro para comer. Quero ir comprar uma pizza.
Por favor, faço qualquer coisa. Não te vou roubar, dá-me apenas dinheiro para
comer.”. Olhei para ele e vi o “estalo” da cola nos olhos avermelhados.
Estava completamente passado... Que raio?! Que dizer nestas circunstâncias?
Entrei no bar e, como já não estavam
a servir (covid oblige), tive que regressar pelo mesmo caminho. O jovem,
sem me tocar, aproximou-se novamente muito mais do que me parecia razoável e
repetiu o apelo. Ao longe vi mais uma dezena de outros jovens igualmente
indigentes e, possivelmente, também sob o efeito de drogas.
Sabia que, neste percurso
altamente vigiado por polícias e seguranças privados, estava seguro, mas, caso
me tivesse aventurado um centímetro para fora desta cordilheira teria sido
certamente roubado. E não seria a coisa certa? Claro que não, mas porque é que
eu tenho o direito a comer três refeições por dia e aquelas crianças grandes
têm de andar de roupa esfarelada por sujidade e porcaria, suplicando por um improvável
pão?! Em vez de estrem no liceu ou na universidade, esquecem-se de si próprios
refugiando-se em drogas e sabe-se lá em que mais. Não está certo. Não está
certo!
À minha frente estavam seres
humanos em desespero e eu atrevi-me a pensar que o problema era a limitação da minha
liberdade de movimentos, aquela que me permite sair de casa a qualquer hora do
dia em Lisboa ou outra cidade ocidental. O contraste norte-sul e a extrema injustiça
social entraram-me pelos olhos dentro. Algo terá de ser feito. Assim não pode
ser. Assim, não nos admiremos que haja cada vez mais migrantes a arriscar atravessar
o Mediterrâneo mesmo que as probabilidades de sobrevivência sejam baixas.
Penso no que faria se estivesse
nas circunstâncias destes jovens. Que faria se me doesse a barriga de fome e se
tivesse consciência que, do dia a seguir, o máximo que podia esperar era que a
dor fosse menor, já que a esperança era nula?
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