quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Voo do Cagarro - 15: Contrastes transatlânticos

Museu da baleação de New Bedford, um local a visitar!
Foto: F Cardigos


Depois de ter estado numa enorme fila para um teste covid, esperava os resultados olhando para as pessoas que, por sua vez, aguardavam agora para ser atendidas. Detalho que estas pessoas que pretendiam ser testadas, tal como eu antes, tinham estado à espera durante quatro horas em pé até este momento.

Foi então que o rececionista do laboratório afirmou perentoriamente, “São 16:30. Acabou. Já não recebemos mais ninguém hoje. Podem voltar amanhã a partir das oito horas.” O desalento foi enorme, como poderão imaginar… Depois de terem estado horas à espera, estas pessoas teriam, simplesmente, de desistir. 

Acontece que a primeira a pessoa a não ser atendida era uma jovem nitidamente grávida. Pensei para mim próprio como era possível aquilo ter acontecido?! Como era possível ter-se permitido que uma grávida tivesse estado quatro horas à espera e, acima disso, como era possível agora, a ela e à criança que transportava no ventre, negar-lhes o acesso a um teste que monitorizava, precisamente, a saúde dos dois. As lágrimas escorriam-lhe pela face… Mas nem isso nem os protestos indignados dos observadores demoveram o rececionista. Com o olhar frio de quem dá ordens num campo de concentração, afirmou sem vacilar, “Estou a cumprir a minha função. Se não gostam podem protestar junto do meu patrão. Não podem esperar aqui. Amanhã às oito horas.”

O que acabo de descrever aconteceu, mas, obviamente, não aconteceu em Portugal. Em Portugal jamais admitiríamos que uma pessoa grávida aguardasse durante horas numa fila e jamais lhe seriam negados cuidados de saúde acessíveis, em que circunstância fosse. Podendo ser prestado, este serviço jamais seria negado a uma grávida, a uma criança, a um idoso ou a um cidadão portador de deficiência. Não acontecia.

Dois dias antes, à noite, no bar do hotel onde me alojara, um homem que não conheço mete conversa comigo e com um amigo. Na galhofa, chegámos à conclusão que havíamos todos estudado ciências e a conversa diverge para os percursos profissionais contrastados que fizemos partindo de uma base razoavelmente parecida. A troca de impressões flui generosa e simpática, com piadas e risos.

A certo ponto, o nosso interlocutor diz “sei que os Genesis estão a dar o último concerto da sua careira aqui na cidade. Querem ir?”. Pergunto-me quanta sorte é preciso ter para que nos façam uma proposta deste género?! Obviamente, quero ir, mas, infelizmente, não posso. “Como eles já começaram, não são 220 dólares, mas sim 70.”, reforça o nosso novo amigo. Quase estonteado, penso para mim próprio que me estão a oferecer a possibilidade de ouvir um dos últimos concertos, senão o último concerto, de uma das bandas mega conhecidas da minha geração e eu vou ter que dizer não. Tenho que declinar porque, apesar de serem apenas cerca de 60 euros, continua a ser muito dinheiro, e porque não estou neste país de férias, o que implica que, no dia seguinte, terei de ir trabalhar pela manhã. Mas o que retenho é a simpatia desta pessoa que não conheço de lado nenhum e nos oferece, a mim e ao meu amigo, a possibilidade de o acompanhar numa noite que adivinho ter sido memorável.

Não contente em ter acabado de ter sido tremendamente generoso e mal correspondido, o nosso interlocutor, para quebrar o gelo da nossa recusa, ainda profere, “Sem preocupações, dudes. Eu gosto de ir a estas coisas sozinho e tornar momentos de solidão em novas e inesperadas amizades”.

As duas histórias que descrevi atrás aconteceram nos Estados Unidos da América com poucos dias de intervalo. Há poucas culturas tão contrastadas como a norte-americana. Neste país, sistematicamente, consegue-se encontrar o melhor e o pior do mundo e da alma humana a três dedos de distância. Tanto temos um super-herói a salvar a situação como temos um vilão a dar-nos pontapés quando já estamos no chão. Num momento temos uma marcha pela paz e, em paralelo, há uma manifestação a favor da liberdade de usar armas. Num momento estão a descobrir novos planetas por essa Via Láctea fora e, no mesmíssimo momento, estão a abandonar o Afeganistão desiludindo e condenando todos a quem deram esperanças de liberdade e felicidade.

Claro que a pergunta que resta é qual o melhor… O nosso país de brandos costumes, quantas vezes complacente com o inimaginável, ou um país de nervos à flor da pele, como é a terra do Tio Sam? O melhor mesmo era um país com o nosso bom senso e a nossa ponderação a que juntasse o magnífico otimismo e a enorme proatividade dos Estados Unidos da América. Será que existe?


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