Poucas coisas me irritam tanto na
comunicação oral em português como a utilização da expressão “coisa”. Quando
oiço “coisa”, fico fora de mim. Para além disso, fico perdido… A que se refere
a coisa?
- “É mais acima?”, pergunto. -
“Sim, perto daquela coisa”, respondem. Não!! Ninguém sabe qual é a “coisa”.
Trata-se da loja do Senhor José, da gaiola da Tia Gertrudes, do carro da Dona
Felisberta?! Do prego na parede? Ninguém sabe.
- “Está um pouco amargo, mete
mais um pouco daquela coisa branca?”. Coisa branca?! Será açúcar, sal ou
arsénico? Opto pelo último apenas para provar um ponto de vista.
Usar “coisa” é um perigo fruto da
preguiça.
- “Queres alguma coisa?”,
perguntam-me. Com prazer traquina, respondo - “Sim”, sabendo perfeitamente a
inutilidade da minha resposta que terá de ser seguida de um arrastado – “O que
queres, então?”.
- “A verdadeira arte é comunicar
em português sem utilizar as expressões “hã” e “coisa” ”, disse-me o meu
avô há muito tempo e acrescentou que o nível seguinte é não utilizar a expressão
“mas”. Ainda me lembro, até porque não se ficou por aqui.
“Pior, mas muito pior”, disse-me
ele com uma voz soturna e grave, “é utilizar expressões como “subir para cima”
ou “voar pelo ar”. São pleonasmos de quem está desatento ou tem muito tempo
livre”. “Coisa de poetas”, disse com desdém.
O céu ficou pesado, com uma cor
de cinzento chumbo, o vento e os pássaros calaram-se, os olhos dele ruboresceram-se
quando expressou as palavras seguintes. “Nota bem. Nunca, mas nunca uses a
expressão… Eu vou dizer, mas apenas para que nunca digas. Se o disseres, eu
volto de onde estiver apenas para te assombrar para o resto da vida.” Pausa,
seguida de silêncio mórbido. Reinício lento: “A expressão “espaço de tempo” é o
erro primordial. Desde a fundação do universo que não se misturam o espaço e o
tempo. Tinham passado poucos momentos após a formação do universo e o espaço já
tinha consolidado as suas três dimensões, nas quais podemos andar para a frente
e para trás, para cima e para baixo, e o tempo corria sem olhar para trás.
Portanto, jamais uses aquela expressão que alguns seres humanos tentam vulgarizar.”
Não sei se as evoluções resultantes
da Teoria da Relatividade ou as multidimensões da Teoria das Cordas permitem
misturar espaço e tempo desta forma, mas, apenas o calafrio que me causa poder
ter o meu avô a erguer-se em fúria por entre os mortos é suficiente para não ousar
usar aquela expressão. Sim, sim, não me apanham a repeti-la… “Período de tempo,
período de tempo, período de tempo…”, repito todas as noites, tentando
memorizar para não ser apanhado em falso.
A verdade é que a língua
portuguesa, até por estas subtilezas que alguns apelidam de erros, é uma
extraordinária forma de comunicar, seja em discurso direto, poesia ou canto. Desde
sempre que me delicio com a imaginação dos nossos escritores, poetas, cantores
ou declamadores. As “Palavras Ditas” do Mário Viegas são por mim visitadas e
revisitadas (ah, que pleonasmo lindo!) sempre que toca a nostalgia de ouvir um
bom português cheio de emoção.
Mas que coisa esta, o espaço e a
vastidão que o português ocupa no meu tempo, hã?!
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