Aspecto de um coral-negro.
Quando nos detemos a pensar como
caracterizar o mar dos Açores, o primeiro problema é a própria definição do que
seja o Mar dos Açores. Até há pouco tempo, o mar era a faixa costeira que
conseguimos ver de cada uma das ilhas, muito utilizada para pesca e lazer, e os
autênticos corredores percorridos pelas embarcações de transporte de pessoas e
mercadorias.
Apenas os melhores pescadores
ousavam pensar na tridimensionalidade das massas de água e nas variações
temporais das suas características. Fosse por questões de segurança ou por
questões de abundância de uma determinada espécie, os profissionais da pesca
equacionavam as temperaturas da água, as correntes dominantes e a geometria dos
fundos.
O advento das grandes expedições
oceanográficas do final do século XIX e início do século XX alargou o
pensamento sobre os mares que rodeiam as nossas nove ilhas. Principalmente as
expedições dirigidas pelo Príncipe Alberto do Mónaco, tanto pela abrangência,
duração, intensidade, como pela dedicação e inter-relação com a sociedade
açoriana, destacam-se em termos de consequência e de perenidade. Os açorianos
conhecem e beneficiaram dos observatórios meteorológicos construídos por
iniciativa e impulso do Príncipe. Mas os mais de cem volumes de relatórios da
estadia de uma enorme equipa concentram-se nos oceanos que rodeiam os Açores.
Apenas para ilustrar numericamente, nunca houve um conjunto de expedições que
registasse tantas espécies (cerca de duas mil) no mar dos Açores como esta
centenária iniciativa. O nosso nível de ignorância era tão elevado que
desconhecíamos bancos de pesca tão importantes como o hoje chamado Princesa Alice. Esta antiga ilha jaz a
35 metros de profundidade e é um dos locais dos Açores em que há maior
probabilidade de ver jamantas em mergulho com escafandro autónomo.
O nome “Princesa Alice” foi
herdado do navio de investigação monegasco que o identificou originalmente. Dois
factos foram quase de imediato realçados pela equipa científica. Primeiro, que
era um local cheio de pescado e, segundo, que, poucos anos após a sua
descoberta, já tinha visto a sua riqueza extraordinariamente reduzida. Poucos
anos de exploração piscícola desordenada condenaram o espaço a uma nítida
exploração, bem registada também nessa época. Penso que terá sido o primeiro
registo de severa exploração no mar dos Açores. Em terra, muitos anos antes, já
o Padre Gaspar Frutuoso fizera alusões ao decrescimento de diversas populações
de plantas e animais como consequência da acção humana. O estranho é que,
durante séculos, nunca resultou desta constatação qualquer movimentação
tendente a gerir os recursos marinhos ou a defender a riqueza biológica.
Apesar de algumas iniciativas
pontuais meritórias, as expedições oriundas do Principado apenas tiveram
verdadeiros herdeiros quando nasceu a Universidade dos Açores. Tanto do ponto
de vista da biologia como da geologia, o mar, os fundos marinhos e, mais
recentemente, os sub-fundos começaram a ser verdadeiramente prospectados. O
esforço que as equipas de investigação dos departamentos da Universidade têm
feito em conjunto com os parceiros que foram identificando a nível nacional e
internacional, resultam num conhecimento dos mares que ocupa tendencialmente
todos os meios, habitats e espécies. Esta aventura do conhecimento tem
demonstrado interessantes resultados que integram diferentes ciências e
explicam alguns dos mais inesperados fenómenos do planeta Terra. Nesta busca
pela verdade, merece particular destaque o estudo das fontes hidrotermais de
grande profundidade, locais sem luz, com pressões dificilmente imagináveis, com
variações de temperatura de dezenas de graus em poucos centímetros e com elevadas
densidades de compostos químicos, para nós, letais. Estes compostos, normalmente
limitadores da vida, são precisamente o que aqui a alimenta. Bactérias
especializadas medeiam a síntese de matéria orgânica e consubstanciam a base de
uma cadeia trófica totalmente desconhecida até ao final dos anos 70.
É, portanto, envolvidos nesta
profusão de conhecimento que os açorianos vão perscrutando novas oportunidades
e vislumbrando caminhos que, como numa aventura, arriscam seguir. É nesta senda
que ganhámos inesperadas competências, como seja a gestão de quatro áreas
marinhas para lá da zona económica exclusiva. Apenas uma destas áreas tem mais
de 93 mil quilómetros quadrados e, para os países signatários da convenção
OSPAR, somos nós os responsáveis pela sua gestão, incluindo o licenciamento das
eventuais operações que se realizarem sobre os seus fundos. Temas como a prospeção
mineralógica, investigação científica, tecnologia azul e turismo marinho do
alto são expressões que começam a entrar no léxico quotidiano com uma assustadora
velocidade.
Balizando ambientalmente estas
responsabilidades e colocando fronteiras em relação à utilização,
desenvolveu-se uma rede de áreas classificadas ou de elevada importância dos
mares dos Açores integrando-a no Parque Marinho dos Açores. Para além das
classificações OSPAR, ficaram sob este instrumento de gestão as áreas
classificadas ou potencialmente a classificar ao abrigo das Directivas Aves e
Habitats.
Com fundamento, há críticas
quanto a este elevar de área e competências, apontando uma certa incapacidade
de fiscalização. É certo. Fazer fiscalização tradicional no mar dos Açores é o
mesmo que, ilustrando, ter um autocarro a percorrer todo o Portugal
continental. Impossível. Mas a magnitude do problema é muito mais elevada se
pensarmos que a ZEE que rodeia os Açores tem 10 vezes mais área que o
Continente e uma corveta se desloca habitualmente a um quinto da velocidade de
um autocarro. Para fazer, com os métodos tradicionais, a fiscalização dos
Açores precisaríamos de meia centena de corvetas. Como isso é impraticável,
teremos de pensar de uma forma bem diferente. Urge utilizar utensílios de deteção
remota, associados aos satélites, apostar nos sistemas VTS e AIS e utilizar outras
ferramentas imaginativas como fontes de monitorização ambiental e observação
situacional. Assim, sem grande esforço, mas com uma enorme organização,
poderemos facilmente exercer uma fiscalização apropriada da nossa própria casa.
Libertámo-nos dos mares costeiros
e dos corredores de transportes. Hoje, o Mar dos Açores está em transição entre
o quase um milhão de quilómetros quadrados da zona económica exclusiva e os
mais de dois milhões que resultarão da provável delimitação da plataforma
continental. No entanto, esta metamorfose terá de ser acompanhada pelo empreendorismo
necessário a uma exploração séria e uma aproximação precaucionária e
responsável, inerente a uma utilização sustentável. O Mar dos Açores cresceu,
está mais conhecido e é mais útil, mas teremos de fazer um esforço para que a
abrangência de utilizações se alargue a todos os novos temas. Este mar de
responsabilidades e oportunidades precisa de coragem, valentia, bravura e
inteligência. Felizmente, são todas características bem açorianas!
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