quarta-feira, 27 de maio de 2020

A União Europeia, a gestão da biodiversidade com base geográfica e os Açores

Anémonas na Ilha Graciosa, Mar dos Açores
Foto: F. Cardigos

Tudo começou com duas diretivas europeias (“Aves” e “Habitats”). Foram estas que implementaram o conceito de Rede Natura 2000 e impuseram uma alteração à gestão tradicional da biodiversidade em Portugal. Até ao final dos anos 80, havia umas espécies emblemáticas, como o lince, e uns espaços naturais indiscutíveis, como a Serra da Malcata, e pouco mais se comparado com o gigante potencial. 
Estas diretivas obrigaram a que se iniciasse um processo de inventariação, proteção e recuperação sistemático. Para além disso, e isso foi fundamental, proporcionou as verbas para o fazer. O programa LIFE financiou a Universidade dos Açores através de projetos que permitiram delinear as novas áreas classificadas. Foi um trabalho realizado por diversos departamentos universitários e que serviu de base para muita da ciência que ainda se faz no arquipélago. Entretanto, a universidade, a nível europeu, passou a financiar-se através dos programas relacionados com a ciência, como é hoje o programa Horizonte. 
O programa LIFE foi usado depois pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) e parceiros, essencialmente dirigido a aves e seus habitats (cagarro no Corvo e priolo em São Miguel, por exemplo). Mais recentemente, é utilizado em grandes projetos dirigidos pelo Governo dos Açores, mas que mantêm, entre outros, a SPEA como parceira. 
Ao referir o uso do programa LIFE pode dar a sensação que há um “bolo” de que os interessados se podem servir livremente. Nada mais errado. O “bolo”, de facto, existe, mas para lhe chegar é preciso passar por um processo competitivo agressivo. Apenas os melhores dos melhores projetos, com nível de excelência, conseguem ser financiados. Graças a muito empenho, estratégia e competência, os Açores têm tido sucesso ao longo dos anos. 
A Rede Natura 2000 a nível europeu tem uma importância económica fundamental. Estima-se que os benefícios desta rede de proteção gerem entre 200 e 300 mil milhões de euros por ano, apoiando 500 mil postos de trabalho adicionais. São números gigantes e que estão baseados na qualidade ambiental ainda existente. Aumente-se a qualidade ambiental e aumentam os números económicos. É esta parte da lógica subjacente ao Pacto Ecológico Europeu, um dos pilares para o desenvolvimento da União Europeia para os próximos anos. 
Na União Europeia defende-se a abordagem através da chamada gestão do “capital natural”. Com esta aproximação tenta-se identificar o valor do recurso e da diversidade, seja biológica ou outro aspeto natural (geológico, por exemplo), e determinar os limites de utilização ou de pressão. Assim, estabelecem-se estratégias de compatibilização dos investimentos, mesmo industriais, desde que isso não retire, ou, preferencialmente, mesmo que valorize, a natureza. É uma abordagem que é liderada na Comissão Europeia por um português que esteve há pouco tempo numa palestra em São Jorge, o Doutor Humberto Delgado Rosa. 
Claro que, poeticamente, gostaria que a proteção ambiental se desse apenas razões de abnegada contemplação e fascínio pelo mundo natural. Infelizmente, o mundo não funciona assim e exige o respeito pelos três pilares do desenvolvimento sustentável (ambiente, economia e sociedade). Apenas fazendo a importante ressalva de que sem ambiente não haverá economia nem sociedade e o contrário não acontece, parece-me que o Pacto Ecológico Europeu, acompanhado das suas recentíssimas estratégias para a biodiversidade e produção alimentar em 2030, é um documento ambicioso, exigente, mobilizador e com uma visão realista e exequível. 
Para Portugal será difícil, mas muito mais complicado será para países que não tiveram preocupações ambientais nas últimas décadas. Saibamos aproveitar este avanço para liderar!

domingo, 24 de maio de 2020

Entrevista ao Correio dos Açores: “Por que os parques naturais dos Açores são um mar de emoções!”

Gruta do Carvão, Ponta Delgada, São Miguel, Açores
Foto: F Cardigos

Frederico Cardigos é biólogo marinho especialista em gestão e conservação da natureza. Actualmente, é o coordenador do Gabinete dos Açores em Bruxelas. Mas já exerceu funções relacionadas com a gestão de áreas protegidas dos Açores de 2006 a 2013. Estão criados os parques naturais de ilha em todas as ilhas da Região. Esta foi uma boa opção?
Frederico Cardigos - Sim, sem dúvida. Foi uma opção pensada há muitos anos e durante algum tempo tendo em vista uma gestão harmoniosa e coerente de cada unidade territorial dos Açores. Ou seja, há uma estratégia regional que, depois, é plasmada nas diferentes ilhas de acordo com as suas características próprias.
Dando um exemplo. Há que preservar as espécies raras e endémicas dos Açores e esta é uma norma que consta da legislação regional. Por exemplo, a Veronica Dabneyi, uma planta que apenas existe no estado selvagem nas Flores e no Corvo, carece, obviamente, de acções de acompanhamento, protecção e restauração nessas ilhas. No entanto, não faz sentido serem direccionados esforços no habitat das restantes unidades territoriais. Portanto, terão de ser os parques naturais das Flores e do Corvo a estabelecer a estratégia local de preservação. Multipliquemos isto pelas dezenas de espécies raras e endémicas dos Açores e temos um enorme número de combinações de prioridades diferenciadas em cada ilha.
Estou, neste exemplo, apenas a referir-me à conservação das espécies. Na realidade, há também diversidade nos habitats, nas paisagens, na interpretação dessa diversidade e na conciliação de tudo isto com as ambições e sensibilidades de cada ilha. A maravilhosa diversidade natural dos Açores fica beneficiada com esta aproximação de unidade de ilha.
Cada um dos parques naturais tem uma entidade própria para gerir o território orientada para a conservação da diversidade bem como para a utilização sustentável dos recursos naturais. Os resultados obtidos apoiam esta abordagem?
Apesar de não ter dados quantitativos, posso partilhar alguns factos qualitativos que rapidamente justificam a abordagem. Repare, por exemplo, que, neste momento, já há centros de interpretação ambiental em todas as ilhas e estes têm abordagens diferentes em cada uma. Por exemplo, o Centro de Interpretação da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico nada tem a ver com o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, no Faial. Aproveitaram-se as idiossincrasias de cada bem ambiental para contar a história natural e humanizada de cada ilha e, desta forma, aliciar os turistas a visitar cada espaço. Todos ganham.
Quantas vezes ouvimos alguém dizer que, durante as longas estadias no continente, se sentem desorientados por não verem o mar quotidianamente? Esse mar faz parte do nosso património natural e é essencial para o nosso bem-estar. Mas, mesmo numa aproximação mais prática. Lembro as sábias palavras de um velho pescador da ilha do Corvo, o Sr. David Câmara, que, quando entrevistado pela RTP/Açores e confrontado pela aparente contradição entre a falta de peixe e a abundância existente na reserva voluntária da ilha, disse, “ali não se toca, é para os nossos filhos e para mostrar a quem nos visita”. Um terceiro exemplo. Ao domingo de manhã, nos cafés de qualquer ilha dos Açores, vejo pessoas equipadas para ir fazer um qualquer trilho gerido pelo parque natural dessa ilha. Ou seja, tanto do ponto de vista espiritual, como de um ponto de vista prático ou desportivo, a natureza contribui para o nosso bem-estar e a gestão de proximidade dos espaços naturais feita pelos parques é essencial para garantir o seu bom usufruto.
Para que este bem-estar possa estar ao alcance da generalidade das pessoas é necessário cumprir dois objectivos: preparar os espaços para a sua visitação e sensibilizar a população do ponto de vista ambiental. Este espírito, de compreensão e estima baseado no conhecimento e no usufruto foi imbuído a muitos biólogos dos Açores por um mariense de boa memória. Hoje, o seu nome está perpetuado no espaço que acolhe a sede do Parque Natural de Santa Maria, o Centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo.
Defende que “os parques naturais têm de ser criados de forma lógica (baseados em boa ciência), dentro de uma estratégia alargada (componente política) e de forma participada (com as pessoas)”. Como envolver as populações na gestão dos parques naturais?
O envolvimento das pessoas faz-se a vários níveis. Para além das eleições, onde se decide qual o modelo de alto nível, há a participação formal e informal. De acordo com a legislação, a participação formal é feita nos conselhos de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e nos conselhos dos parques naturais.
A nível informal, a participação faz-se através das organizações não governamentais para o ambiente e pelo envolvimento pessoal nas acções ambientais mais ou menos estruturadas. Ou seja, uma simples acção de limpeza da orla costeira ajuda a gerir o Parque Natural e essa é uma actividade em que se vê, recorrentemente, o envolvimento de jovens e menos jovens.
No entanto, quando escrevi o que refere na sua pergunta, estava a pensar numa segunda componente, importante na minha opinião. Essa segunda componente é a “admissibilidade”. Ou seja, a menos que haja uma razão prioritária, não se pode limitar a liberdade dos cidadãos. Mais uma vez exemplificando, quando se protegeram da extracção de recursos marinhos o complexo dos Ilhéus das Formigas e o Recife Dollabarat não foi questionado o cidadão comum se concordava ou não. O legislador de então considerou que a importância daquele local justificava uma abordagem top down (de cima para baixo). O mesmo aconteceu em relação às leivas, ao priolo e em muitos outros casos prioritários.
Idealmente, a estratégia utilizada deve ser bottom up (de baixo para cima). Ou seja, que sejam as pessoas, munidas da estratégia política e do conhecimento científico a decidir o que querem proteger e como querem proteger. É assim que nascem as reservas voluntárias, como foi o caso da Reserva Natural do Caneiro dos Meros, na ilha do Corvo, no final dos anos 90. No dia-a -dia, a gestão destes espaços é mais simples, porque ninguém tem de explicar a seja quem for o que se pode fazer ou não naquele local. Foi decidido por todos. É a “admissibilidade” máxima.
Na maioria das vezes, na realidade, são os governos, impulsionados pela necessidade de preservar ou gerir certos espaços ou espécies com atenção ambiental redobrada, que propõem as medidas, mas estas, sempre que possível, devem ser aceitáveis pela população. Para isso, há que incluir os espaços e os tempos de participação do público. Na génese dos parques naturais dos Açores houve um período de consulta pública formal dos diplomas em que os interessados foram convidados e puderam expressar-se.
O processo de criação, classificação e implementação dos parques naturais é moroso e complexo. Quando, finalmente, está concluído rapidamente se identificam debilidades que resultam, eventualmente, do processo não ser perfeito e, mais normalmente, por a realidade se ter alterada. No entanto, para que descubram essas incoerências é absolutamente necessário que as comunidades se envolvam.
Não fosse a pandemia e, por exemplo, no Parque Natural de São Miguel, temia-se que este Verão o turismo começasse a pôr em causa algumas reservas naturais, como a da Lagoa do Fogo. Como olha para o impacto de um futuro crescimento do turismo nos Parques Naturais?
Gerir não é apenas lidar com a normalidade. Muitas vezes, a verdadeira arte de gerir é exigida quando há novos desafios. O balanço entre a capacidade de carga ambiental e a ambição económica é um dos desafios do gestor ambiental por excelência. Não é que seja fácil encontrar o meio-termo entre aquilo que o ambiente pode suster e o benefício financeiro. Houve e haverá períodos com gestão complicada, mas encontrar o equilíbrio certo, definir o melhor método para explicar, implementar a capacidade de carga e persuadir as pessoas a respeitar é um conjunto complexo de procedimentos, mas aliciante. Exige muita interacção com cientistas, com os utilizadores e imaginação. Posto tudo isto, por vezes não resulta.
Lembro-me, a esse título, da dificuldade que foi impor um limite máximo de visitantes no Ilhéu de Vila Franca. No entanto, passados alguns anos, parece-me agora ser um tema razoavelmente consensual.
Seja por acção directa ou através de métodos indirectos, há bens ambientais que terão de ter limites de carga definidos e implementados. A acção directa é definir quantas pessoas podem visitar um local e contar até ao limite máximo antes de fechar o acesso. Os métodos indirectos socorrem-se de estratégias secundárias. Por exemplo, podemos definir que o acesso a uma determinada área apenas se faz através de um autocarro e, por acaso, esse autocarro apenas tem capacidade para 20 pessoas por hora. Nalguns museus, essa cadência é estabelecida por torniquetes que apenas deixam entrar um novo visitante depois do anterior ter saído.  (...)
Não defendo qualquer metodologia em particular para os espaços dos Açores. Penso que deve haver uma reflexão e estabelecidas as estratégias mais adequadas e ter em atenção e estas poderão não ser consensuais. Faz parte. Aquilo que é indesmentível é que os grandes monumentos da Europa que não têm acesso limitado se tornaram espaços selváticos. Lembro-me, por exemplo, do Monte de Saint Michel, no norte de França, que é um monumento brilhante, mas em que as pessoas se acotovelam para poder passar em muitas das suas artérias. Não é simpático e, quanto a mim, não é turismo de qualidade.
Em sua opinião, qual a melhor forma de conhecer, em plenitude, um Parque Natural?
Essa é uma questão fascinante. Tentando fazer um estereótipo, o que é sempre redutor, considero que há quatro tipologias de aproximação, sendo que a maioria dos visitantes acaba por ter um pouco de tudo, embora com maior expressão numa tipologia que outra. Há uma tipologia mais básica que é a do visitante “paisagista”. Este visitante vai até ao miradouro mais conhecido de cada área protegida, olha, tira uma fotografia, partilha com os amigos e vai-se embora. A seguir há o “desportista” que gosta de andar ou correr pelos trilhos dos parques. Normalmente tem uma lista de trilhos que pretende fazer e tenta percorrer o máximo possível. Os mais avançados “desportistas” inscrevem-se, participam e terminam os TrailRun. O mesmo é aplicável para a componente submarina, mas aí visitam-se sítios de mergulho. Depois, há a tipologia do “conhecedor” que sabe o nome das plantas, dos animais, das suas principais características, gosta de se embrenhar pela natureza e tem um caderno onde aponta as suas observações. Por último, temos o “social” que gosta mais de conhecer o agricultor, o pescador, gosta de ir até a uma adega quando visita o Pico ou falar com os cientistas que estudam a Pedra que Pica em Santa Maria. O “social” gosta de ver a paisagem na Lagoa de Santo Cristo, em São Jorge, mas não abdicará de comer as ameijoas, desde que tenham sido legalmente apanhadas.
Tendo o atrás em conta, por exemplo, quem queira visitar o Algar do Carvão, na ilha Terceira, não pode pensar que irá simplesmente olhar e obter o ângulo certo para tirar a necessária fotografia para as redes sociais. Ou seja, não é um turismo preparado para o “paisagista” ou para o “desportista”. Para se compreender aquele local tem de se utilizar tempo para percorrer o interior do vulcão, ouvir atentamente as explicações do guia e estar desperto para a complexidade das estalactites siliciosas. Portanto, é uma área preparada para receber “conhecedores” e “sociais”. Isto para dizer que há parques e, dentro dos parques, áreas melhor preparadas para um tipo de visitação que outros. Há que saber escolher e preparar, antecipadamente, para evitar contrariedades.
Em Dia Europeu dos Parques Naturais, que mensagem gostaria de deixar?
Nos Açores, os espaços ambientais foram, ao longo do tempo, classificados de inúmeras formas pela sua qualidade patrimonial e pela adequação da gestão. Há parques naturais que são Reservas da Biosfera, contêm áreas Ramsar (por causa da importância das zonas húmidas) ou pertencem às Sete Maravilhas Naturais de Portugal. Todos os parques têm áreas classificadas pela Rede Natura 2000. Algumas das áreas balneares Bandeira Azul e Praias de Ouro estão nos parques naturais. No seu conjunto, a abordagem utilizada nos Açores está reconhecida pela Carta Europeia de Turismo Sustentável e com o nível de platina da QualityCoast.
Estes reconhecimentos resultam da elevada qualidade ambiental que se vive dentro destes espaços e que merecem a nossa visita e utilização sustentável. Um dos parques contém, em simultâneo, uma área classificada como Património da Humanidade, pertence às Sete Maravilhas Naturais de Portugal e inclui diversas áreas Rede Natura 2000 e Ramsar. Trata-se do Parque Natural do Pico onde, por acaso, na época certa do ano, se pode ver o maior animal jamais existente à face da Terra, a baleia-azul. Uma das maiores hidrópoles do mundo localiza-se em São Miguel, nas Furnas… São tantos os títulos que uma pessoa se perde…
Mas, por acaso, nem me parecem ser as razões essenciais para a visita...
As razões essenciais são poder arriscar a vida mergulhando com tubarões no Faial; beber vinho olhando para Sua Majestade a montanha do Pico junto a um misterioso maroiço; ficar esmagado pelo som dos cagarros nas noites de verão no Corvo; emocionar-se com as quedas de água na Lagoa da Ribeira do Ferreiro nas Flores; provar uma queijada “biosférica” na Graciosa; deslumbrar-se com as grandes lagoas de São Miguel; embrenhar-se na evolução geomorfológica da Ilha Terceira no Centro de Interpretação da Serra de Santa Bárbara; ou contar num jantar, em Vila do Porto, como foi nadar com jamantas na Ilha de Santa Maria. Estas, para mim, são razões principais para visitar os parques naturais.
Penso que é essencial que os açorianos que ainda não o fizeram, que partam à descoberta ou redescoberta do Parque Natural da sua ilha ou da ilha em frente. Quando o fizerem significa apenas que há outros sete parques naturais a serem visitados, a que se acrescenta o Parque Marinho dos Açores. Estes espaços, em conjunto com os seus centros de interpretação, particularmente se acompanhados pelos seus guias especializados, são locais fascinantes. Na Fábrica da Baleia do Faial podemos aprender a história daquela unidade industrial e deixar que os mais jovens se envolvam nas actividades que os gestores do espaço organizam regularmente. A visita à Fábrica da Baleia das Flores, encimando o Boqueirão, é uma caixinha de surpresas… Não posso contar muito, para não estragar a surpresa, mas deixo uma pista: São dois centros de interpretação! Em São Miguel, também inesperado para alguns, tem o Centro de Interpretação da Cultura do Ananás. E estas aventuras e emoções multiplicam-se pelas nove ilhas…
Hoje, neste momento em que ainda temos de restringir os nossos movimentos por causa da pandemia, é o tempo ideal para planear. Força!
Assinalou-se, na sexta-feira, o Dia Mundial da Diversidade Biológica. Tem-se feito tudo o que é possível fazer na defesa da biodiversidade contra a flora invasora?
Não há recursos infinitos. Caso houvesse poder-se-ia ter uma abordagem mais violenta, mas, eventualmente, com danos colaterais. A postura que tem sido seguida pelas autoridades nas zonas terrestres inclui a remoção de flora invasora em pequenas áreas circunscritas e que permita o regresso da flora natural. Caso fosse uma acção mais acelerada, exporia o solo e não permitiria o regresso da flora natural. Ou seja, remover invasoras sim, sempre, mas com cuidado para “não se morrer da cura”.
Esta menção leva-me a outro ponto essencial da missão dos parques naturais. Esse ponto é a colaboração com as entidades privadas. Muitos dos bens ambientais classificados são privados e, portanto, há que sensibilizar os proprietários para o potencial que têm entre mãos e estimular o bom uso, que preserve a biodiversidade que gerem e que não os limite demasiado nas estratégias de usufruto. Nesta situação estão diversos parques e hotéis dos Açores e, parece-me, com excelentes resultados. Não devo mencionar casos específicos porque estou a ser injusto para os restantes, mas, apenas para estimular a imaginação e sem referir o nome comercial, reparem-se nos bons exemplos existentes nas Furnas, em São Miguel, e na Fajãzinha, na Ilha das Flores.
Os privados, sejam proprietários, agricultores, pescadores, guias turísticos são os primeiros guardiões da natureza. Aliar o seu conhecimento e o seu interesse a outros actores essenciais, como os vigilantes da natureza e as autoridades de fiscalização, é uma das ferramentas de gestão ao alcance dos parques naturais em qualquer parte do planeta.
O Governo dos Açores aprovou um diploma que classifica o Sítio de Importância Comunitária ‘Serra da Tronqueira/ Planalto dos Graminhais’ como Zona Especial de Conservação (ZEC) da Rede Natura 2000, distribuídos pelo  Nordeste, Povoação e Ribeira Grande. Para si, qual a importância desta classificação?
Vou partilhar uma das minhas emoções num Parque Natural dos Açores. Felizmente, tenho muitas e boas! Há, talvez, uns doze anos atrás, fui incumbido de mostrar um priolo a um alto responsável ambiental. Uns dias antes do combinado, falei com a directora do que viria a ser o Parque Natural de São Miguel e com vários técnicos da SPEA para se preparar convenientemente a visita à Serra da Tronqueira. Admito que estava com algum nervosismo porque, nesse momento, ainda se contavam pelos dedos das minhas mãos os priolos que eu próprio tinha visto. Das vezes que tinha ido ao Nordeste, em metade não havia vislumbrado qualquer priolo... Pedi aos técnicos da SPEA para, por favor, terem umas fotografias à mão para, no caso de não vermos qualquer ave, pelo menos teríamos umas imagens…
Chegados lá, eu nem queria acreditar… Fiquei com aquela sensação de garganta presa de emoção… Havia um bando de priolos a receber-nos! Eram tantos!
O que se tinha passado é que os diferentes projectos com financiamento LIFE, implementados pela SPEA em conjunto com o Governo e câmaras municipais do Nordeste e da Povoação, tinham feito catapultar a população desta pequena ave exclusiva da Ilha de São Miguel nos meses anteriores à nossa visita. Fabuloso!
Esta é uma das muitas coisas que se pode descobrir quando nos atrevemos a ir à procura. Os parques naturais dos Açores, mesmo em terra, são um mar de emoções!
Centrando-me na sua pergunta. Esta classificação corresponde a uma necessidade consequente à classificação enquanto área pertencente à Rede Natura 2000, mas, em simultâneo, eleva o compromisso e a responsabilidade na gestão daquele espaço. Claro que a classificação como ZEC pode também ser vista como uma oportunidade para dar visibilidade às preocupações ambientais e isso pode ter retornos financeiros, visto que alguns visitantes com elevado poder económico valorizam esta postura.
Em Dia Europeu dos Parques Naturais, que recomendações faz a Comissão Europeia para a protecção do mundo natural?
Ainda há poucos dias, nesta última semana, a Comissão Europeia publicou a sua Estratégia para a biodiversidade em 2030. Entre outros pontos, elevou a fasquia de áreas protegidas, seja em terra seja no mar, para 30% do território da União Europeia. Esta é uma enorme ambição e que nos dá, agora, a responsabilidade de auxiliar os responsáveis pela sua implementação. De acordo com o referido publicamente, o Governo dos Açores comprometeu-se em 2019 com a classificação de 15% da área marinha e, com esta Comunicação, multiplicou-se por dois a meta que já era ambiciosa. Há tempo para o fazer, até porque Estratégia tem poucos dias e é para obter os resultados apenas em 2030.
Paisagem nas Furnas, São Miguel, Açores
Foto: F Cardigos

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Crónicas de Bruxelas - 70: Que faz a União Europeia em tempos de pandemia?

Berlaymont, o edifício-sede da Comissão Europeia.
Foto: F Cardigos


Perguntam-me, legitimamente, “qual é o contributo da União Europeia “no mundo real” para combater a covid-19?”. Eu compreendo o alcance da pergunta. No meio de tanto barulho sobre a mutualização da dívida e o comportamento de um ministro das finanças do norte da Europa, ficamos sem noção se a União Europeia serve para alguma coisa nesta triste crise. A resposta simples, dou-a já: sim, serve e para muito!
Nos últimos dias, a Comissão Europeia, que tem em exclusivo o direito de iniciativa na União, tem proposto uma miríade de documentos legislativos e orientadores que se revelam muito úteis para diversos fins. São tantas as propostas e tão complexas que a própria instituição resolveu dividi-las em seis áreas temáticas que explicarei abaixo com algum detalhe.
Em jeito de nota introdutória, quero deixar claro que o Conselho, o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia procederam muitíssimo bem em termos práticos. Logo que se tornou evidente que a doença covid-19 era perigosa, que se transmitia de pessoa para pessoa e que estava presente na Bélgica, estas instituições mandaram para casa todo o pessoal cuja presença física não fosse essencial e meteu-os em teletrabalho. Ou seja, praticamente do dia para a noite, só na Comissão, mais de vinte mil funcionários passaram a trabalhar a partir de casa. Graças a esta ação, a maioria dos funcionários escaparam à covid-19 (não todos, infelizmente) e, com as ferramentas informáticas existentes hoje (processadores de texto, correio eletrónico, tele-reunião, etc) e os esforços e empenho do pessoal informático, a produtividade não diminuiu significativamente. Por causa desta decisão atempada e acertada, a Comissão continua com todo o “poder de fogo” para propor diferentes soluções.
Neste período, a prioridade número um da Comissão Europeia é a saúde pública. A garantia que os equipamentos médicos chegam ao destino, que não há constrangimentos na sua manufatura ou que os processos de autorização de novos medicamentos são céleres, são algumas das medidas a que a Comissão tem dado maior prioridade e com sucesso.
Em termos económico-financeiros, a Comissão parte de um princípio que é fácil de entender: não se pode inventar dinheiro. A Comissão autoriza que os Estados gastem mais dinheiro e permite e fomenta empréstimos para os quais dá o seu aval e garantia, o que fará crescer as respetivas dívidas, diga-se. Ao mesmo tempo, a Comissão permite que os Estados-Membros transfiram verbas entre rubricas anteriormente contratualizadas no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual. Isso é ótimo, mas não é dinheiro novo. Ou seja, para o fazerem os Estados têm mesmo de prescindir de algo que tinham planeado. Como se costuma dizer em Portugal, “quando o cobertor é curto, se cobrimos os ombros, os pés ficarão de fora”.
Para as PME, a Comissão criou um sítio internet onde são dadas explicações em como aceder a fundos europeus em tempos de covid-19 (www.access2finance.eu). Atenção, com toda a justiça muitos destes instrumentos não são acumuláveis com iniciativas similares de génese nacional e regional. Há que estudar qual a formulação que é elegível e mais conveniente para cada caso. Honestamente, tenho que enfatizar o exposto no início do parágrafo anterior: não há dinheiro novo. O que a Comissão faz, e faz bem, é gerir, reorientando verbas, dando créditos ou avais ou permitindo novas utilizações para as verbas que já existem. Portanto, quando a Comissão diz que facilitou o uso de mais de 3 biliões de euros é mesmo isso: “facilitou o uso”. A Comissão não retirou um coelho de diamantes de uma cartola dourada. Isso não existe.
O que poderia existir era uma partilha da dívida (muitas vezes referida como mutualização da dívida, eurobonds ou coronabons). Enquanto os Estados-Membros não estiverem de acordo, não haverá essa partilha. Não é uma limitação da União Europeia ou uma má-vontade da Comissão. O que falta é um entendimento entre os Estados-Membros.
Outro pedem que a Comissão Europeia, com fundos próprios, estabeleça e implemente um “Plano Marshall” que dê a resposta necessária ao caos provocado pela covid-19. A Comissão tem insistentemente respondido que esse plano será o próximo Quadro Financeiro Plurianual e que, para isso, está a ser revisto. Veremos…
Uma das funções que a Comissão Europeia, enquanto guardiã dos tratados, tem de garantir é que haja livre circulação de pessoas e bens. No entanto, a estratégia mais eficiente para combater a covid-19 é precisamente gerir adequadamente as viagens e transportes. Ou seja, a Comissão teve de criar regras para que, ao mesmo tempo, as pessoas circulassem apenas nos casos justificados, mas que as mercadorias não ficassem retidas ou atrasadas. Não foi fácil, mas apenas uns dias depois de terem colocado mãos-à-obra, criando vias rápidas e outras ferramentas, a Comissão já tinha reduzido para menos de metade os tempos médios perdidos nas fronteiras e, hoje, são insignificantes.
Outro dos aspetos prioritários para a Comissão prende-se com a gestão da crise e a solidariedade. Por exemplo, o Fundo de Solidariedade da União Europeia, que recentemente usamos nos Açores para colmatar os efeitos do Furacão “Lorenzo”, foi agilizado e ampliado o seu âmbito para que rapidamente pudesse injetar 800 milhões de euros nos países mais afetados pela pandemia.
Evidentemente, o que todos procuramos é uma cura para a doença ou, pelo menos, testes rápidos e massivos para identificar quem tem ou teve a doença. Assim, em termos de investigação e inovação, a Comissão tem dado um importante auxílio, financiando empresas e equipas científicas melhor colocadas para os avanços necessários.
Por último, mas nunca em último, a educação. A Comissão criou um espaço virtual em que agregou recursos educacionais para que todos tenham acesso à base da civilização: o conhecimento.
É muita atividade, muita informação e toda importante. Tudo isto que expus atrás, e muito ficou por dizer, foi executado do zero em poucas semanas, o que justifica o meu inegável entusiasmo pela União Europeia. Mas compreendo que é complexo explicar. É difícil passar a mensagem de que o mundo não se resume apenas aos poucos desentendimentos, mas, sim, que passa, essencialmente, por tudo aquilo que está a ser construído. Acresce que este é um processo em curso, ou seja, não se admire o leitor se, daqui a uns dias, eu estiver a escrever um artigo para atualizar o muito que aqui já vai.
Para tornar todo o processo mais ruidoso e confuso, lembro que a Comissão Europeia não toma decisões legislativas. A Comissão simplesmente propõe. Ou seja, sempre que há uma decisão que, por exemplo, tenha implicações orçamentais, essa decisão tem que ter o aval do Parlamento Europeu e do Conselho. Ou seja, a Comissão propõe e o cidadão comum pensa que decisão está tomada. Não está! Depois, quase como um inexplicável eco, o Conselho anuncia uma decisão sobre o mesmo tema. Para tornar tudo ainda mais confuso, o Parlamento de seguida anuncia que os eurodeputados irão iniciar o debate sobre esse mesmo tema. Não é fácil… Até este momento já houve três anúncios relativamente a um tema e ainda não houve, na realidade, qualquer decisão. Serão os Parlamento Europeu e Conselho, depois de se reunirem com a Comissão numa reunião habitualmente chamada de trílogo, a tomar conjuntamente a decisão final sobre o que estiver em discussão. Repito, não é fácil…
Quando a Comissão anunciou que iria possibilitar a movimentação de verbas entre rubricas do orçamento, permitindo, por exemplo, que o Governo dos Açores prescindisse da construção do novo navio e orientasse as verbas para colmatar os efeitos da covid-19, essa decisão, na realidade, foi tomada mais tarde pelo Parlamento Europeu e Conselho, habitualmente chamados em conjunto “colegisladores”. O Governo dos Açores pode utilizar esta possibilidade porque a Comissão propôs e os colegisladores, posteriormente, aceitaram a possibilidade de movimentar verbas entre rubricas do orçamento da União.
Para explicar e esclarecer todos estes temas, o Gabinete dos Açores em Bruxelas publica semanalmente um boletim, de nome Az@Brx. Os interessados em receber este boletim por correio eletrónico apenas têm de remeter um pedido para gabinetebruxelas@azores.gov.pt.
No entanto, a União Europeia é muito mais do que as suas instituições. A União é um conjunto de países e cidadãos que solidariamente fomentam a paz, dinamizam o entendimento e partilham recursos. De certa forma, e felizmente, é já impossível relatar todos os atos de solidariedade entre Estados na União Europeia consequentes ao vírus. Ao escrever a frase anterior pingou no meu ecrã a notícia que a Dinamarca acaba de informar que enviou um hospital (sim, um hospital inteiro) para a Itália. Um entre muitos, mas muitos casos. Internamente, dentro de cada país, temos registado atos de solidariedade que vão desde o apoio individual a idosos ou pessoas fragilizadas até a cidadãos e empresas, em conjunto, dando somas muito substanciais para a aquisição de ventiladores e outro material médico. Somos um continente solidário. Ainda bem!

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Crónicas de Bruxelas - 69: Elogios em tempos difíceis

"Persiste" - Painel numa ruela de Bruxelas
Foto: F. Cardigos 


Felizmente, nasci num país com uma fabulosa cultura e com uma História, com altos e baixos, de que me posso orgulhar. No entanto, se há coisa que Portugal tem de errado é a dificuldade de bem-dizer e a incapacidade de elogiar de forma incondicional. Nos poucos casos em que ouvimos um elogio é reiteradamente acompanhado de um “mas…” ou “é pena é que…”.
Tenho de admitir que eu gosto de ser confrontado com pessoas de mérito e gosto de elogiá-las, mesmo correndo o risco de exagerar ou, fruto de má avaliação ou da incerteza do futuro, me enganar. Gosto de apostar nas pessoas que demonstram bondade ou competência. Dá-me mesmo muito prazer.
Fruto das contingências laborais, tenho seguido a evolução da covid-19 nos Açores remotamente. Todos os dias, vou espreitando os comunicados da autoridade de saúde em covid19.azores.gov.pt e, pelas 18 horas de Bruxelas, assisto na RTP Açores à descrição feita pelo diretor regional da Saúde e à sessão de perguntas e respostas que jornalistas de todo o arquipélago lhe fazem. Faço aqui um pequeno parêntesis para elogiar o papel dos jornalistas terceirenses que servem de veículo para as perguntas dos colegas das outras oito ilhas. Muito bem!
Durante as suas intervenções, o dr. Tiago Lopes transmite calma, serenidade e solidariedade, que são importantes, particularmente quando dá más notícias, mas, não menos relevante, demonstra competência e empenho. Ao vê-lo e ouvi-lo durante aquela meia hora, eu, que estou distante e tenho família próxima e muitos amigos nos Açores, fico com a nítida sensação de que tudo está a ser feito para minimizar as consequências da pandemia que está a afligir o mundo. Portanto, apenas tenho de estar grato e pedir a todos que sigam as indicações das autoridades.
A pandemia que aflige o planeta é terrível e ela é particularmente perigosa nos meios pequenos e isolados. Lembro o que aconteceu no navio de cruzeiro “Diamond Princess” para ilustrar o nível de perigosidade a que as ilhas estão expostas. Sendo potencialmente mais perigosas as consequências no caso de haver um surto sem controlo, é também nas ilhas mais fácil prevenir se houver uma ação coordenada no controlo das entradas de pessoas e na pesquisa de todas as suspeitas ou casos confirmados que se vão detetando. São precisamente estas tarefas, executadas pelo Serviço Regional de Saúde, que o dr. Tiago nos descreve diariamente com todo o detalhe.
Há uns tempos, fui convidado para falar no II Congresso Regional da Ordem dos Psicólogos, que decorreu em Ponta Delgada. A abrir o evento, em nome do Governo dos Açores, estava um, para mim então desconhecido, diretor regional da Saúde de nome Tiago Lopes. Depois de o ouvir, alguém me perguntou “o que achaste, Frederico?”. Não hesitei um segundo, “competente, organizado e empático, estamos bem!” e acrescentei “Grande potencial”. Não imaginava que, uns meses depois, ele estaria a ser posto perante uma das mais difíceis provas.
As suas qualidades são amplamente reconhecidas. Já foi alvo de elogios em grande parte da comunicação social açoriana e até alguns órgãos de comunicação social continental já o referiram.
Tanto quanto me lembro, este é o primeiro político em Portugal a ter um assumido grupo de fãs. O “Fãs do Tiaguim”, assim se chama, junta, no momento em que escrevo estas linhas, mais de 40 mil seguidores numa bem-disposta e humorada página de facebook. Num território com 245 mil pessoas é um número enorme e que espelha que há muitas outras pessoas para além de mim que gostam de elogiar quem merece. Como uma das seguidoras dizia, “A Madeira tem o Cristiano Ronaldo e os Açores têm o Tiaguim!
Se consideramos que o trabalho do dr. Tiago Lopes é reconhecido, e isso parece-me consensual, imagine agora multiplicar esse sucesso por dez. Faça-o e encontra um outro açoriano, o Cristóvam, Flávio para os amigos. O compositor e cantor terceirense compôs uma belíssima música para dar força e alento ao mundo neste tempo de pandemia. “Andrà Tutto Bene” tem centenas de milhares de audições no youtube e o Cristóvam tornou-se numa nova boa estrela. Se não ouviu ainda, pare tudo e corra para o youtube mais próximo. Vai gostar!
Há um mês, Tiago e Flávio eram duas pessoas competentes e empáticas, cada um na sua área. A pandemia trouxe-os para a ribalta e hoje espalham sentimentos positivos neste período de provações e angústia. Bem hajam!