sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Crónicas de Bruxelas - 77: O grande estaleiro!

 


Obras em autoestrada na Alemanha
Foto: S Paradela

Nos últimos dias tive a oportunidade de passar por diversos países do centro da União Europeia. Ao contrário do que esperava, não encontrei países deprimidos ou fechados sobre si próprios. O que vi foi muita atividade, particularmente visível no que diz respeito à construção civil. Com diversas tipologias e dimensões muito contrastadas, registei dezenas de intervenções na Alemanha, Polónia e República Checa. Na Bélgica também há intervenções, mas isso não é invulgar, é antes uma forma de ser. Os belgas adoram bricolage e transferem essa postura até aos mais altos níveis do Estado, mas isso são contas de outro Rosário e já foi tratado num artigo anterior (ver Crónicas de Bruxelas 8 - “Trânsito”).

No caso dos restantes países para além da Bélgica, de facto, neste momento, há também intervenções um pouco todo o lado. Não se pense que esta é uma observação simplista ou superficial. Este registo é resultado de um enorme e enfático constatar de que tudo está a mexer na Europa central e que, essencialmente, a pandemia não nos deitou abaixo. Em média, a cada cinquenta quilómetros de autoestrada havia uma intervenção que condicionou o andamento da viatura onde me desloquei e, em cada cidade por onde passei, havia, pelo menos, uma intervenção nos monumentos mais significativos. Dada a dimensão e quantidade, estou certo de que estas intervenções tinham génese ou, no mínimo, estímulo do Estado respetivo. Nalguns casos, raros, estas intervenções perturbaram mesmo o andamento ou a visitação. Na maioria, no entanto, as obras estavam bem planeadas, sendo o incómodo mínimo ou nulo.

Apesar de não ter qualquer informação estruturada que o garanta, a sensação que tive é que estas intervenções estão a ser realizadas por cinco razões: (1) são obras necessárias; (2) aproveitam o período de confinamento e hesitação no turismo; (3) ajudam a introduzir dinheiro na economia; (4) preparam o retoma dos restantes setores, para que não hajam percalços adicionais no futuro reativar da mobilidade e visitação; e (5) contribuem para a reação anímica das populações em causa. Curiosamente, fiquei consciente desta quinta razão ao passar pela Eslováquia. Ao contrário dos restantes países mencionados, na Eslováquia não há um frenesim comparável, não há obras e o semblante das pessoas é triste e sombrio. O contraste evidente entre os dois grupos de países justifiquei-o no meu íntimo com a reação e vigor do próprio Estado às consequências da pandemia. Talvez esteja a ser injusto…

Logo no início da pandemia, os Estados membros da União Europeia solicitaram à Comissão Europeia autorização para se agilizarem as chamadas “ajudas de Estado” e para transferir verbas entre as rubricas dos programas operacionais europeus. Adicionalmente, por iniciativa própria, a Comissão estabeleceu o que apelidou por “três redes de segurança” para protegerem os trabalhadores, as empresas e os países. Em conjunto, estas estratégias permitiram rapidamente movimentar centenas de milhares de milhões de euros que agora se estão também a traduzir no que pude observar nestes últimos dias por essa Europa. O dinheiro existe e está a ser enfaticamente utilizado nalguns países da União Europeia. A União Europeia, de acordo com a minha perceção, transformou-se num grande e animado estaleiro.

Perante os desafios aparentemente intransponíveis têm de nascer soluções extraordinárias. Há que implementar ações perenes que, no caso da crise sanitária e económica consequente à pandemia causada pela doença covid-19, nos mobilizem e abram caminhos que reativem a sociedade. O verdadeiro sucesso será atingido se conseguirmos fazer isso evitando os percursos que nos levaram à crise climática e à riqueza contrastada entre o norte e o sul. O futuro terá de reconciliar a humanidade com o nosso planeta ou, como há uns anos li num final de tarde sombrio numa parede na Catalunha, “el futur no serà”.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Crónicas de Bruxelas - 76: O mal está sempre à espreita

 
Entrada do Campo de Concentração Nazi em Birkenau, Polónia.
Foto: F. Cardigos

Durante a segunda guerra mundial, a Alemanha nazi adaptou uma base militar polaca para acolher prisioneiros políticos desse país. Aí, os opositores e resistentes polacos seriam julgados e cumpririam a pena a que fossem condenados. A esmagadora maioria dos julgados morreram poucos minutos depois do início do julgamento.

Assim nascia o horrível campo de concentração de Auschwitz e, depois, nas redondezas, o ainda mais infame campo de Birkenau. Estes dois espaços são os exemplos mais conhecidos, mas houve dezenas de áreas similares por toda a Europa central no início dos anos 40.

Os dois antigos campos de concentração foram preservados para, tanto quanto possível, servir de memória. De certa forma, é como quem diz, “isto aconteceu mesmo e foi aqui!”.

Visitar estes espaços é o mesmo que viajar a um passado que queremos esquecer, mas que temos que recordar. Foi este o contexto da minha visita ao Museu Nacional Auschwitz-Birkenau.

Nos olhos pesados do guia que nos acompanhou, eu penso ter conseguido ver esta luta interior dos polacos. Querem esquecer que foram abusados de todas as formas pela Alemanha nazi, incluindo terem sido transformados no palco dos mais tristes crimes que a humanidade já conheceu, mas, ao mesmo tempo, são os guardiões desta memória. “Tenho de continuar…”, pareceu-me ler nos seus pensamentos.

A intolerância extrema, a cega sede de poder e o autoritarismo da Alemanha nazi dos anos 30 do século XX foi-se transformando, progressivamente, no mal absoluto que culminou na segunda guerra mundial e nas diferentes estratégias para exterminar diversos grupos de seres humanos, em particular o povo Judeu, o povo Cigano, os homossexuais, os portadores de deficiência e todos os que se lhes opunham. A ascensão de Hitler, apoiado na insatisfação de parte da população de então, tem um evidente paralelo no que vemos hoje na Europa.

Ao verificar como certos políticos dramatizam os palcos institucionais, incluindo a ameaça de utilizar os tribunais como extensões da sua cólera, é uma cópia bacoca, mas perigosa, da ascensão do império do mal. Se não fosse por outra razão, e há muitas outras, essa seria já suficiente para eu traçar uma rígida linha vermelha. Não irei por aí!

Para os mais esquecidos, lembro que estes dois campos do sul da Polónia não foram os últimos. A lição não serviu de emenda perene. Na realidade, na antiga Jugoslávia, enquanto o país se desmoronava no final do século XX, lá apareceram, novamente, os campos da infâmia, onde as pessoas foram aprisionadas e, em muitos casos, conduzidas à morte. Que mal fizeram? Nada. Culpadas de nada, mas mesmo assim vítimas. Revolta-me tanto…

Dizem-nos diversos intelectuais que, ao darmos atenção à emergência dos extremismos, estamos a dar-lhes o palco que necessitam para prosperar. Concordo que, para estes novos políticos de velhas ideias, muito mais importante do que ter razão é serem falados. No entanto, o relativo silêncio de nós todos, permitiu que chegassem onde já estão novamente.

Há que manter o olhar atento e compreender que aos pezinhos de lã que equipam os ditos nacionalistas se seguem as pisadas do que já vimos no passado. Culpam e estigmatizam uma etnia, no caso de Portugal os ciganos têm sido os principais visados, e aí vão “os meninos nazis” desfilando alegremente nas ruas da liberdade que lhes deram. Esticam os braços e, depois, perguntam inocentemente, “Eu?!”. Que ironia…

Há um caminho longo e não unívoco entre o que se verifica na Europa e as sombras do passado, é verdade. O que me preocupa, no entanto, não é a extensão e o percurso do caminho, mas sim ele existir.

Há que repetir, vezes sem conta, que não é admissível responsáveis eleitos hostilizarem grupos de pessoas com base no género, nas identidades de género, nas suas crenças, nas etnias ou nas tendências políticas. Há que repetir, vezes sem conta, que não é admissível que responsáveis eleitos mintam. Há que repetir, vezes sem conta, que a liberdade de expressão não pode ser colocada em perigo e que essa mesma liberdade não pode ser um veículo para o ódio ilegal. Há que garantir o direito à informação, à educação e decidir com base na melhor ciência. Proteja-se e promova-se a cultura e honre-se a diferença. Sei que não é nada fácil, mas respeitem-se estas linhas, incluindo no dia em que formos votar, e o “caminho” não poderá ser trilhado porque ele não subsistirá.

Acabei de sair de Auschwitz-Birkenau e uma profunda dor de cabeça invade-me e obriga-me a escrever estas linhas. Fica o alerta, que vem repetido e repetirei: o mal está à espreita.

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Finalmente, as férias! Ou talvez não…

Este último ano foi totalmente contrastado. No último semestre de 2019, a European Desk da Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa conseguiu dar os primeiros passos, com a organização das “Rotas da Economia Azul” e de um “Jantar das Regiões”. Cada um com a sua estratégia e público alvo, estes dois eventos tentaram ajudar a aproximar ainda mais Portugal da Bélgica e das instituições europeias. Já os seis primeiros meses de 2020 têm sido pouco promissores. A pandemia tem colocado nevoeiro sobre as iniciativas presenciais e apelam a muita imaginação e engenho para que se possa manter o nível anterior. Iremos conseguir! 

Ao aproximar-se o Verão, no entanto, dei por mim a planear as férias em Portugal. Como sempre acontece, com entusiasmo, procuro refúgio na ilha do Corvo, nos Açores. Da capital europeia, onde trabalho, passo para o mais pequeno concelho do meu país. Entre os passeios, as conversas com a família de sempre e os amigos de décadas, a leitura, a música, os filmes, o mar, ah o nosso mar!, e o mergulho com escafandro autónomo, tudo é perfeito e, apenas por pensar nisso, fico preenchido e sereno. É o meu obrigatório recarregar de baterias anual. 

Este ano é particular. A pandemia colocou tudo em alvoroço, lançando a confusão na saúde pública e estabelecendo a desordem na economia global. Todos os vetores da nossa existência foram reequacionados e, nesta época, as habituais e inquestionáveis férias ficaram “acinzentadas”. 

Participando eu em tantas reuniões com pessoas cujos trajetos não conheço, que fazer? Perante o aumento dos casos e das restrições na Bélgica, que devo eu fazer?! Manter os planos e arriscar transportar a doença para um dos poucos locais de Portugal que ainda não contactou com o vírus ou adiar para um momento mais oportuno? Arriscar a saúde dos meus familiares e amigos septuagenários e octogenários ou limitar os meus movimentos por agora? 

Como eu, muitos outros trabalhadores colocados em missão no exterior e também os estrangeiros que estimam e desejam passar as férias em Portugal hesitam. Pelo que fui falando com amigos e encontrando na comunicação social, fui sistematizando as razões a ter em conta na decisão. Para além das já invocadas (1), identifiquei outras: (2) viabilidade, garantia e preço das viagens de avião, (3) instabilidade das regras no local de partida e de destino, incluindo as chamadas listas laranjas e vermelhas, (4) orientações das entidades patronais, que receiam que os seus trabalhadores fiquem retidos em quarentena nos locais de destino ou no local de partida depois de regressarem, e (5) receio por parte da população de destino. Estes cinco conjuntos de razões fazem com que se hesite. As saudades das famílias e a chamada do país fala alto, muito alto, e a decisão pende dificilmente para qualquer dos lados. 

Compreendo os que, mesmo assim, resolveram regressar a Portugal. E, também, compreendo bem os que prescindiram da viagem. Ambas as opções implicam sofrimento e o verdadeiro culpado é o vírus. Essa é a gigante maleita do início do século XXI. 

Os emigrantes que já estão em Portugal fazem um balanço misto. Claro que gostam de estar com a família e isso vale quase tudo, mas, por outro lado, os testes, a distância social e as omnipresentes máscaras ensombram um período que deveria ser de relaxe e convívio. 

Sei também que o nosso regresso anual é extremamente importante. Os que nos estimam precisam de nós por perto e Portugal precisa que ajudemos presencialmente a economia. 

Os que ficarem retidos nos países de acolhimento, vendo estas férias de Verão definitivamente ensombradas, podem sempre ajudar o nosso país com o que forem encontrando no comércio luso local ou em páginas internet como o “Compre Português na Bélgica”, uma iniciativa desta Câmara do Comércio. Não são as soluções ideais, mas, este Verão, poderá ser o possível. No Natal, queira o vírus, compensarão a dobrar! 

Publicado em: https://www.ccb-portugal.be/post/ccbp-newsletter-agosto-august-2020

 

Finally, the holidays! Or maybe not...


This past year has been totally contrasted. In the last semester of 2019, the European Desk of the Belgian-Portuguese Chamber of Commerce was able to take its first steps with the organisation of the " Routes of the Blue Economy " and a "Dinner of the Regions". Each with its own strategy and target audience, these two events tried to help bring Portugal even closer to Belgium and to the European institutions. In contrast, The first six months of 2020 have been unpromising. The pandemic has dimmed the face-to-face initiatives and called for a lot of imagination and ingenuity to maintain the previous level. We will prevail!

As the summer approached, however, I found myself planning the holidays in Portugal. As always happens, with enthusiasm, I seek refuge in Corvo island, Azores. From the European capital, where I work, I go to the smallest municipality in my country. Among The trails, the conversations with my family and friends, the reading, the music, the movies, the sea, ah our sea!, and the scuba diving, everything is perfect and, just by thinking about it, I am filled with serenity. It's my mandatory annual recharging period.

This year is different. The pandemic has thrown everything into turmoil, creating confusion in public health and establishing disorder in the global economy. All the vectors of our existence have been reassessed and, at this time, the usual and unquestionable holidays have become "greyed".

Participating in so many meetings with people whose journeys I don't know, what should I do? Faced with the increase of cases and restrictions in Belgium, what should I do?! Keep the plans and to risk transporting the disease to one of the few places in Portugal that has not yet come into contact with the virus or postpone it to a more opportune moment? Risk the health of my septuagenarian and octogenarian relatives and friends or limit my movements for now?

Like me, many other workers abroad and also foreigners who cherish Portugal and wish to spend their holidays in our homeland hesitate. I have been talking to friends and analysing the media and have systematised the reasons that are being taken into account in the decision. In addition to those already mentioned (1), I identified others: (2) feasibility, guarantee and price of air travel, (3) instability of the rules at the place of departure and destination, including the so-called orange and red lists, (4) guidelines from employers, who fear that their workers will be held in quarantine at the places of destination or the place of departure after returning, and (5) fear from the population of destination. These five sets of reasons really make one hesitate. We miss our families and the call of our country speaks loudly and the decision is difficult.

I understand those who have nevertheless decided to return to Portugal. And, also, I understand well those who have given up the trip. Both options involve suffering and the real guilty one is the virus. That is the giant threat of the beginning of the 21st century.

The emigrants who are already in Portugal send a mixed assessment. Off course, they like to be with their family and that's worth almost anything, but, on the other hand, the tests, the social distance and the omnipresent masks overshadow a period that should be of relaxation and conviviality.

I also know that our annual return is extremely important. Those who cherish us need us around and Portugal needs us to help the economy.

Those who are stuck in the host countries, seeing these summer holidays definitely overshadowed, can always help our country with what they find in the local Portuguese commerce or in internet pages like "Compre Português na Bélgica", an initiative of this Chamber of Commerce. These are not ideal solutions, but this summer they may be the possible ones. At Christmas, the virus allowing, we will pay off twice as much!

 

Published in: https://www.ccb-portugal.be/post/ccbp-newsletter-agosto-august-2020

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Crónicas de Bruxelas - 75: A União após a Cimeira Europeia de 17 a 21 de julho

 


Edifício Europa do Conselho da União Europeia.
Foto: F. Cardigos

Decorreu a recente Cimeira Europeia extraordinária de 17 a 21 de julho. Nestes dias, os 27 chefes de Estado ou de Governo da União Europeia encontraram-se para discutir o Quadro Financeiro Plurianual e o Plano de Recuperação pós pandemia de covid-19. Como a análise regional já foi feita, bem feita e publicada em notícias, artigos de opinião e entrevistas, nestas minhas notas ir-me-ei cingir aos efeitos europeus.

Quadro Financeiro Plurianual

Um dos pontos que deteve os líderes em Cimeira durante cinco dias foi a decisão sobre o que fazer com o orçamento de longo prazo da União Europeia, um dos blocos económicos mais significativos do mundo. Não foi tarefa simples até porque, como é fácil de adivinhar, as posições não eram similares. Havia e há três tendências que, colocando pela positiva, são “pró estado de direito”, “pró contenção orçamental” e “pró coesão”.

Com uma abordagem “Orwelliana”, podemos afirmar que todos são “pró”, mas uns são mais do que outros… Para complicar, alguns países pertencem “muito” a duas ou mais tendências. De tudo isto se falou nesse épico final de semana numa Cimeira que deveria ter durado dois dias (17 e 18 de julho) e durou cinco.

Com o esgrimir dos argumentos tomaram-se decisões sobre o quadro financeiro plurianual, ou seja, as verbas que a Comissão Europeia irá gerir durante os próximos sete anos (2021 a 2027). A definição das prioridades, que poderia ter sido o ponto essencial da discussão, estava já ultrapassada ainda antes do início da Cimeira. Há muito que a Comissão emitiu as suas seis prioridades que, pela falta de reação ou discussão, supõe-se, agradaram a todos.

O engenho da Comissão Europeia foi ter estabelecido prioridades suficientemente vagas para permitir a sua interpretação ao jeito do interesse de cada Estado-membro. Por exemplo, os poluidores, como a Polónia, enfatizam o envelope financeiro que terão à sua disposição para abandonar o carvão como base energética (o chamado Fundo de Transição Justa) e a maioria dos restantes países realça a aposta na neutralidade carbónica. Já quanto ao prazo para essa transição, parece não ter havido uma decisão vinculativa. Uns dizem que não se comprometeram com prazos e os outros afirmam que será em 2050 e com metas incisivas até 2030. Em que ficamos? Assim, sem decisão, “vai andando a procissão”.

O certo é que, neste momento, no que diz respeito ao orçamento de longo prazo, nesta Cimeira Europeia apenas restava decidir o seu volume total. Pensar-se-ia que, com isto, se tivesse simplificado a discussão. Não foi o caso.

Os países ditos “frugais”, que são, por esta ordem, “pró contenção orçamental”, “pró estado de direito” e “pró coesão”, querem um orçamento pequeno, que lhes exija um menor esforço. Aqui estão a Holanda, Áustria, Suécia e Dinamarca. De certa forma, estes foram os vencedores da Cimeira. Ao encolherem o orçamento da União e ao obterem “descontos” para os seus próprios contributos, irão investir menos a curto prazo. Claro que como são grandes beneficiários da União a longo prazo, graças ao funcionamento do mercado único, talvez a “brincadeira” lhes venha a sair cara.

De um segundo lado de um imaginário triângulo estiveram os, por esta ordem, “pró coesão”, “pró estado de direito” e “pró contenção orçamental”.  Estes países pretendem injetar dinheiro na economia para movimentar as suas indústrias e serviços, caso da Alemanha e da França, ou para auxiliar em termos sociais, caso da Itália, Espanha e Portugal. Visto que o orçamento da União, somando o Quadro Financeiro Plurianual e o Plano de Recuperação é o mais elevado de sempre, também são vencedores. Cerca de 1,8 biliões de euros é, sem dúvida, uma verba astronómica e que quase duplica o orçamento do quadro comunitário anterior. No entanto, uma parte significativa destas verbas será distribuída a título de empréstimo o que fará crescer as dívidas dos países que as utilizarem e, com isso, as assimetrias internas na União Europeia.

Por último, temos os Estados membros com aspirações autocráticas. Estes, por ordem, são “pró coesão”, “pró contenção orçamental” e “pró estado de direito”. Neste caso, não é tão importante o início da ordem, mas mais o final desta. Aparentemente, o estado de direito não é uma prioridade premente para a Hungria e a Polónia. Para estes países, o essencial não são tanto as verbas, mas sim poder controlar a justiça e a comunicação social.

Apesar de, nas conclusões da Cimeira, haver uma ligação entre o orçamento da União e o estado de direito, em lado algum ficou explícito como será feita esta ligação. Portanto, estranhamente, este grupo de Estados, tal como os outros, também apregoa vitória.

É inacreditável, eu sei, um líder de um país que lutou ativamente contra o totalitarismo comunista, como é o caso do primeiro-ministro da Hungria, regozijar-se agora por poder continuar a reforçar a sua própria autocracia. Mudam-se os tempos… De qualquer forma, parece-me inquestionável que a erosão dos valores Europeus terá consequências negativas para a construção da União Europeia.

Breve parêntesis para desenvolver a questão da discussão do estado de direito no contexto do orçamento. Como em quase tudo, há sempre várias perspetivas numa discussão. Se compreendo a importância do estado de direito, também compreendo que há outros assuntos prioritários que não foram chamados à liça, como argumentam os autocráticos. Apenas para dar dois exemplos, os chamados “paraísos fiscais” que tanto beneficiam a Holanda, e o problema dos migrantes não estão em cima da mesa. O primeiro é uma das grandes causas das disparidades económicas europeias e o segundo tem implicações na vida de muitos seres humanos, como tristemente provou o menino Aylan Kurdi. Se estes assuntos não estão a ser discutidos, por que razão está o estado de direito?

Em suma, todos os Estados “cantam vitórias” de curto prazo. No entanto, todos eles, em conjunto, arriscam derrotas severas num futuro distante: falta de eficiência do mercado interno, incremento das assimetrias internas e corrosão do estado de direito. Cá estaremos para ajudar a garantir que tudo correrá bem. A União Europeia resistirá, certamente, mas é necessário estar atento aos diferentes sinais e a estas potenciais consequências.

Plano de Recuperação

A discussão do Plano de Recuperação esteve bloqueada em três pontos: (a) volume financeiro, (b) proporção de verbas associadas a subvenções ou empréstimos e (c) governança. Ao acompanhar as discussões e ao verificar o posicionamento da Alemanha e da França, os que, de facto, mais contribuem financeiramente para o orçamento e plano de recuperação da União, compreendi que o essencial para estes Estados não era o volume financeiro, que até é “vestigial” comparando com os seus orçamentos nacionais, mas sim que estas verbas coloquem a economia europeia a funcionar e, com isso, catapultem as suas próprias indústrias e serviços. É por essa razão que estes países não se importam de pagar, mesmo que a fundo perdido, já que o retorno é muito, mas muito mais relevante. Resultará em riqueza e em emprego. É por essa razão que a Alemanha e França desejam um fundo de recuperação muito forte, mas exigem que o mesmo seja despendido já nos próximos dois a três anos.

O problema da Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia, os autodenominados “frugais”, é interno. Têm que lidar com os populismos partidários nos seus próprios países que reiteram que são “contribuintes líquidos para a União”, o que é verdade, e, portanto, “devem ditar as regras”, o que é inadmissível para os restantes países. Aliás, adaptando do Euroogle, um dos dicionários do jargão europeu, os contribuintes líquidos dão efetivamente um contributo financeiro mais elevado para o orçamento da UE, mas as verbas atribuídas acabam por beneficiar direta ou indiretamente todos os países através do mercado interno ou das mais-valias comunitárias de acesso aos mercados e das negociações internacionais. Não se tratam, por isso, de contribuições a fundo perdido, mas sim de verbas com um retorno financeiro concreto”.

Este é um ponto importante e que ajuda a explicar como funcionam os populismos e quais as suas consequências. É muito fácil dizer que “quem paga manda”, mas é muito mais complicado explicar que quem paga apenas garante que o sistema funcione porque, no final, todos lucram. Reforçando este ponto de vista, temos todos os estudos sérios sobre esta matéria, que indicam que os países que mais pagam são também os que mais lucram com a UE.

Por tudo o que escrevi, fica claro que o volume financeiro associado à recuperação deve ser elevado. É necessário que o resultado final abale incisivamente e positivamente a economia. Como se manteve desde o início até ao final das discussões em 750 mil milhões de euros, penso que todos ficaram a vencer a longo prazo.

Para que os países mais afetados pela pandemia, como é o caso dos dependentes do turismo, possam aceder às verbas, é importante que estas tenham a forma de subvenções e não empréstimos. De facto, não é espectável que Portugal, entre outros, se endivide de forma exagerada para recuperar uma economia que beneficiará toda a Europa. Como a proporção de verbas associadas a cada uma das parcelas não oscilou significativamente do início até ao final das discussões, penso que, também aqui, todos ficaram a vencer.

Por último, é necessário garantir que as verbas possam ser geridas pelos Estados que delas usufruem, de acordo com as regras estabelecidas pela Comissão Europeia. Não poderão ser os países ricos a decidir o que irão fazer os restantes países. Parece-me impensável numa Europa solidária. A chamada “condicionalidade” no uso destas verbas, parece-me, ficou equilibrada. Também aqui, penso que correu bem.

O que se segue?

A discussão sobre o orçamento e sobre o plano irá agora passar para o Parlamento Europeu. Será aí que se ditarão quais os próximos passos. Fazendo um somatório das linhas vermelhas da primeira reação em plenário dos principais grupos políticos de quem se espera vir a solução (populares, socialistas, liberais e verdes), penso que haverá um orçamento parecido com o proposto pelo Conselho, mas com algumas pequenas diferenças. Espero um reforço do investimento nos programas europeus de excelência como o Erasmus (mobilidade de estudantes), no Horizonte (ciência e inovação), no Pacto Ecológico Europeu (Fundo de Transição Justa) e um reforço na ligação entre o estado de direito e a utilização do orçamento. Se tivesse de apostar em qual será o cenário final, seria aqui que investiria…

O risco, neste momento, já não é a inexistência de um orçamento de longo prazo, mas sim quando estará operacional. Para garantir um avanço rápido e eficaz, é necessário um golpe de génio por parte do Parlamento Europeu. Mais do que nunca, o Presidente do Parlamento Europeu e dos líderes dos grupos políticos tornaram-se essenciais. Serão eles os heróis ou os vilões do que se seguirá!