Decorreu a recente Cimeira Europeia extraordinária de 17 a 21
de julho. Nestes dias, os 27 chefes de Estado ou de Governo da União Europeia encontraram-se
para discutir o Quadro Financeiro Plurianual e o Plano de Recuperação pós
pandemia de covid-19. Como a análise regional já foi feita, bem feita e
publicada em notícias, artigos de opinião e entrevistas, nestas minhas notas
ir-me-ei cingir aos efeitos europeus.
Quadro Financeiro
Plurianual
Um dos pontos que deteve os líderes em Cimeira durante cinco
dias foi a decisão sobre o que fazer com o orçamento de longo prazo da União
Europeia, um dos blocos económicos mais significativos do mundo. Não foi tarefa
simples até porque, como é fácil de adivinhar, as posições não eram similares.
Havia e há três tendências que, colocando pela positiva, são “pró estado de
direito”, “pró contenção orçamental” e “pró coesão”.
Com uma abordagem “Orwelliana”, podemos afirmar que todos são
“pró”, mas uns são mais do que outros… Para complicar, alguns países pertencem
“muito” a duas ou mais tendências. De tudo isto se falou nesse épico final de
semana numa Cimeira que deveria ter durado dois dias (17 e 18 de julho) e durou
cinco.
Com o esgrimir dos argumentos tomaram-se decisões sobre o quadro
financeiro plurianual, ou seja, as verbas que a Comissão Europeia irá gerir
durante os próximos sete anos (2021 a 2027). A definição das prioridades, que poderia
ter sido o ponto essencial da discussão, estava já ultrapassada ainda antes do
início da Cimeira. Há muito que a Comissão emitiu as suas seis prioridades que,
pela falta de reação ou discussão, supõe-se, agradaram a todos.
O engenho da Comissão Europeia foi ter estabelecido
prioridades suficientemente vagas para permitir a sua interpretação ao jeito do
interesse de cada Estado-membro. Por exemplo, os poluidores, como a Polónia,
enfatizam o envelope financeiro que terão à sua disposição para abandonar o
carvão como base energética (o chamado Fundo de Transição Justa) e a maioria
dos restantes países realça a aposta na neutralidade carbónica. Já quanto ao prazo
para essa transição, parece não ter havido uma decisão vinculativa. Uns dizem
que não se comprometeram com prazos e os outros afirmam que será em 2050 e com metas
incisivas até 2030. Em que ficamos? Assim, sem decisão, “vai andando a procissão”.
O certo é que, neste momento, no que diz respeito ao
orçamento de longo prazo, nesta Cimeira Europeia apenas restava decidir o seu volume
total. Pensar-se-ia que, com isto, se tivesse simplificado a discussão. Não foi
o caso.
Os países ditos “frugais”, que são, por esta ordem, “pró
contenção orçamental”, “pró estado de direito” e “pró coesão”, querem um
orçamento pequeno, que lhes exija um menor esforço. Aqui estão a Holanda,
Áustria, Suécia e Dinamarca. De certa forma, estes foram os vencedores da Cimeira.
Ao encolherem o orçamento da União e ao obterem “descontos” para os seus
próprios contributos, irão investir menos a curto prazo. Claro que como são
grandes beneficiários da União a longo prazo, graças ao funcionamento do
mercado único, talvez a “brincadeira” lhes venha a sair cara.
De um segundo lado de um imaginário triângulo estiveram os,
por esta ordem, “pró coesão”, “pró estado de direito” e “pró contenção
orçamental”. Estes países pretendem
injetar dinheiro na economia para movimentar as suas indústrias e serviços,
caso da Alemanha e da França, ou para auxiliar em termos sociais, caso da
Itália, Espanha e Portugal. Visto que o orçamento da União, somando o Quadro
Financeiro Plurianual e o Plano de Recuperação é o mais elevado de sempre,
também são vencedores. Cerca de 1,8 biliões de euros é, sem dúvida, uma verba
astronómica e que quase duplica o orçamento do quadro comunitário anterior. No
entanto, uma parte significativa destas verbas será distribuída a título de
empréstimo o que fará crescer as dívidas dos países que as utilizarem e, com
isso, as assimetrias internas na União Europeia.
Por último, temos os Estados membros com aspirações
autocráticas. Estes, por ordem, são “pró coesão”, “pró contenção orçamental” e
“pró estado de direito”. Neste caso, não é tão importante o início da ordem,
mas mais o final desta. Aparentemente, o estado de direito não é uma prioridade
premente para a Hungria e a Polónia. Para estes países, o essencial não são
tanto as verbas, mas sim poder controlar a justiça e a comunicação social.
Apesar de, nas conclusões da Cimeira, haver uma ligação entre
o orçamento da União e o estado de direito, em lado algum ficou explícito como será
feita esta ligação. Portanto, estranhamente, este grupo de Estados, tal como os
outros, também apregoa vitória.
É inacreditável, eu sei, um líder de um país que lutou
ativamente contra o totalitarismo comunista, como é o caso do primeiro-ministro
da Hungria, regozijar-se agora por poder continuar a reforçar a sua própria
autocracia. Mudam-se os tempos… De qualquer forma, parece-me inquestionável que
a erosão dos valores Europeus terá consequências negativas para a construção da
União Europeia.
Breve parêntesis para desenvolver a questão da discussão do
estado de direito no contexto do orçamento. Como em quase tudo, há sempre várias
perspetivas numa discussão. Se compreendo a importância do estado de direito,
também compreendo que há outros assuntos prioritários que não foram chamados à
liça, como argumentam os autocráticos. Apenas para dar dois exemplos, os
chamados “paraísos fiscais” que tanto beneficiam a Holanda, e o problema dos
migrantes não estão em cima da mesa. O primeiro é uma das grandes causas das
disparidades económicas europeias e o segundo tem implicações na vida de muitos
seres humanos, como tristemente provou o menino Aylan Kurdi. Se estes assuntos não
estão a ser discutidos, por que razão está o estado de direito?
Em suma, todos os Estados “cantam vitórias” de curto prazo.
No entanto, todos eles, em conjunto, arriscam derrotas severas num futuro
distante: falta de eficiência do mercado interno, incremento das assimetrias
internas e corrosão do estado de direito. Cá estaremos para ajudar a garantir
que tudo correrá bem. A União Europeia resistirá, certamente, mas é necessário
estar atento aos diferentes sinais e a estas potenciais consequências.
Plano de Recuperação
A discussão do Plano de Recuperação esteve bloqueada em três pontos:
(a) volume financeiro, (b) proporção de verbas associadas a subvenções ou
empréstimos e (c) governança. Ao acompanhar as discussões e ao verificar o
posicionamento da Alemanha e da França, os que, de facto, mais contribuem
financeiramente para o orçamento e plano de recuperação da União, compreendi
que o essencial para estes Estados não era o volume financeiro, que até é
“vestigial” comparando com os seus orçamentos nacionais, mas sim que estas
verbas coloquem a economia europeia a funcionar e, com isso, catapultem as suas
próprias indústrias e serviços. É por essa razão que estes países não se
importam de pagar, mesmo que a fundo perdido, já que o retorno é muito, mas
muito mais relevante. Resultará em riqueza e em emprego. É por essa razão que a
Alemanha e França desejam um fundo de recuperação muito forte, mas exigem que o
mesmo seja despendido já nos próximos dois a três anos.
O problema da Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia, os
autodenominados “frugais”, é interno. Têm que lidar com os populismos partidários
nos seus próprios países que reiteram que são “contribuintes
líquidos para a União”, o que é verdade, e, portanto, “devem ditar as regras”, o que é
inadmissível para os restantes países. Aliás, adaptando do Euroogle, um dos
dicionários do jargão europeu, os contribuintes líquidos dão efetivamente um
contributo financeiro mais elevado para o orçamento da UE, mas as verbas
atribuídas acabam por beneficiar direta ou indiretamente todos os países
através do mercado interno ou das mais-valias comunitárias de acesso aos
mercados e das negociações internacionais. Não se tratam, por isso, de
contribuições a fundo perdido, mas sim de “verbas com um retorno financeiro concreto”.
Este é um ponto importante e que ajuda a explicar como
funcionam os populismos e quais as suas consequências. É muito fácil dizer que
“quem paga manda”, mas é muito
mais complicado explicar que quem paga apenas garante que o sistema funcione
porque, no final, todos lucram. Reforçando este ponto de vista, temos todos os
estudos sérios sobre esta matéria, que indicam que os países que mais pagam são
também os que mais lucram com a UE.
Por tudo o que escrevi, fica claro que o volume financeiro
associado à recuperação deve ser elevado. É necessário que o resultado final abale
incisivamente e positivamente a economia. Como se manteve desde o início até ao
final das discussões em 750 mil milhões de euros, penso que todos ficaram a
vencer a longo prazo.
Para que os países mais afetados pela pandemia, como é o caso
dos dependentes do turismo, possam aceder às verbas, é importante que estas
tenham a forma de subvenções e não empréstimos. De facto, não é espectável que
Portugal, entre outros, se endivide de forma exagerada para recuperar uma
economia que beneficiará toda a Europa. Como a proporção de verbas associadas a
cada uma das parcelas não oscilou significativamente do início até ao final das
discussões, penso que, também aqui, todos ficaram a vencer.
Por último, é necessário garantir que as verbas possam ser
geridas pelos Estados que delas usufruem, de acordo com as regras estabelecidas
pela Comissão Europeia. Não poderão ser os países ricos a decidir o que irão fazer
os restantes países. Parece-me impensável numa Europa solidária. A chamada
“condicionalidade” no uso destas verbas, parece-me, ficou equilibrada. Também
aqui, penso que correu bem.
O que se segue?
A discussão sobre o orçamento e sobre o plano irá agora
passar para o Parlamento Europeu. Será aí que se ditarão quais os próximos
passos. Fazendo um somatório das linhas vermelhas da primeira reação em
plenário dos principais grupos políticos de quem se espera vir a solução
(populares, socialistas, liberais e verdes), penso que haverá um orçamento parecido
com o proposto pelo Conselho, mas com algumas pequenas diferenças. Espero um reforço
do investimento nos programas europeus de excelência como o Erasmus (mobilidade
de estudantes), no Horizonte (ciência e inovação), no Pacto Ecológico Europeu
(Fundo de Transição Justa) e um reforço na ligação entre o estado de direito e
a utilização do orçamento. Se tivesse de apostar em qual será o cenário final,
seria aqui que investiria…
O risco, neste momento, já não é a inexistência de um
orçamento de longo prazo, mas sim quando estará operacional. Para garantir um
avanço rápido e eficaz, é necessário um golpe de génio por parte do Parlamento
Europeu. Mais do que nunca, o Presidente do Parlamento Europeu e dos líderes
dos grupos políticos tornaram-se essenciais. Serão eles os heróis ou os vilões
do que se seguirá!
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