sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Badejo d'Ouro

Badejo, Mycteroperca fusca, fotografado na ilha de Santa Maria, Açores.
Foto: ImagDOP/UAz

No início do mês de Novembro, em pleno II Congresso Internacional “O Desporto e o Mar” do Clube Naval do Funchal, o Doutor Arturo Boyra das Canárias foi perentório quando afirmou que um mero morto tem muito valor, “600 euros, no mínimo em Espanha”. “No entanto”, foi dizendo à medida que apresentava os cálculos que mostram quanto ganham os operadores marítimo-turísticos das Canárias com a observação subaquática, “este mesmo mero vale um milhão de euros por ano se estiver vivo” e, rematou, “vamos matar a galinha dos ovos de Ouro?!”.
Na realidade, este contraste entre o valor dos meros vivos e meros mortos já foi utilizado no passado (*), mas nunca, que eu saiba, com valores tão enfáticos e tão indiscutíveis. O argumento parece infalível e foi já utilizado para justificar a proteção das tintureiras dos Açores (*), mas ainda sem grandes resultados. Para os meros, tem servido.
Aliás, se nós os soubermos utilizar, os animais têm, regra geral, um valor muito maior vivos do que mortos. Que o diga a empresa de exportação de peixe vivo, a Flying Sharks. Pegam em peixes que não têm qualquer valor comercial nos Açores, como os cabozes ou os foliões, e exportam-nos para os maiores aquários do mundo.
Que o digam também os pescadores de pesca grossa (*). Estes operadores, que esquadrinham os mares com os seus poderosos barcos de fibra-de-vidro branca (***), podem pescar o mesmo peixe por diversas vezes (*), alugando a embarcação e o saber por múltiplos do valor do peixe morto. Isto para não falar nos teores de mercúrio dos espadins, tão elevados que tenho dúvidas que possam ser consumidos sem perigo para a saúde (*). Para a pesca grossa, estão no ponto!
Não se pense que estou a defender que deixemos de comer peixe. Nada disso! Estou a defender que pensemos antes de tirar a vida a animais que são muito mais lucrativos vivos. É, pelo menos, uma questão de bom senso.
No mesmo congresso, a certo ponto, convidaram-nos para mergulhar na Baixa das Moreias. É um local mesmo em frente ao Clube Naval do Funchal e que se acede a partir do seu Centro de Mergulho. Mais simples era impossível. Claro que aceitei entusiasticamente o convite. Depois de vinte minutos debaixo de água, vendo alguns dos animais e algas que caracterizam aquele pedaço do Atlântico, aproximou-se um badejo. O líder do mergulho reconheceu o animal e acenou-me. Estávamos a dez metros de profundidade e, apesar de já me terem contado, eu não estava preparado para o que iria testemunhar.
O badejo, que deveria ter uns cinco quilos, aproximou-se do mergulhador que dirigia as nossas operações e aninhou-se calmamente nas suas mãos (*). Com serenidade, o nosso líder colocou uma mão na sua boca e outra no seu dorso. O peixe assim ficou, imóvel… Inacreditável… Mas havia mais! O líder do mergulho, sempre com o peixe nas suas mãos, aproximou-se de mim e deu-mo. “Vou pegar num peixe vivo!”, exclamei interiormente, totalmente possuído pelo entusiasmo. Agarrei-o com o mesmo cuidado e fiz-lhe algumas festas. Impressionante… No final, larguei-o e ele deu uma volta e voltou a insistir que o acariciasse. O processo foi-se repetindo com todos os mergulhadores que faziam parte deste grupo, um após o outro...
Este não é um comportamento natural dos animais marinhos e resulta das muitas horas que os mergulhadores do Clube Naval do Funchal dedicam a eles. Os peixes estão perfeitamente habituados à sua presença e aproximam-se sem qualquer relutância, até porque, muitas vezes, os mergulhadores não se inibem de lhes levar alimentos.
Ou seja, apesar de gostar mais das águas em estado puro dos Açores, não posso deixar de apreciar a forma como os madeirenses estão a utilizar o seu mar. A mim impressionou-me verdadeiramente e não tenho dúvidas que aquele badejo se irá tornar a estrela de muitas fotografias e vídeos. Se o mero das Canárias valia um milhão de euros, este badejo vale o seu peso em Ouro e puro! Mas tem esse valor apenas enquanto continuar vivo (*). Na lota, valerá pouco mais do que nada.
Estamos num período em que várias coincidências contribuíram para impulsionar o mergulho nos Açores. À descoberta do mergulho com tubarões-azuis (**, *, *) e jamantas (*, *, *, *) juntou-se a instabilidade no Norte de África e no Médio-Oriente. Destinos como o Mar Vermelho foram preteridos (*) e isso constituiu uma enorme mais-valia para o nosso arquipélago (*). Os trabalhos da Doutora Adriana Ressurreição do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores demonstram claramente o aumento de rendimento das actividades aquáticas e subaquáticas nos últimos anos.
No entanto, e obviamente que ainda bem, esta situação não irá durar para sempre. Dentro em breve, países como o Egipto (*) e a Eritreia (*) (*) encontrarão o seu rumo de paz e de estabilidade. Se até lá não cativarmos este mercado, perderemos esta janela de oportunidade. É preciso, com a maior urgência, resolver pequenos problemas no turismo subaquático dos Açores, tais como, acabar com o uso de redes de emalhar nas zonas costeiras que, como os próprios pescadores dizem, “destroem tudo”, e reforçar as limitações impostas nas áreas marinhas protegidas, para que terminem os conflitos de utilização (*). É necessário também, que os operadores marítimo-turísticos dos Açores formem uma união honesta, coerente, abnegada e abrangente para que os seus pontos de vista sejam mais respeitados. Foram estas as principais conclusões que eu retive da IV Bienal do Turismo Subaquático que decorreu a meio de Outubro na ilha Graciosa.
Claro que todos queremos que os turistas subaquáticos se sintam bem nos Açores. É certo, porém, que poucos quererão voltar a locais em que os centros de mergulho não têm casa de banho ou em que se mergulha a dezenas de milhas da costa em solitários semirrígidos. É muito engraçado para nós e para os nossos amigos, mas impensável para o exigente turismo do Mar Vermelho e esse é o nosso único e verdadeiro competidor. Mãos à obra!


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Carcharhinidae


Carcharhinidae é o nome de uma família. No caso, trata-se de uma família de eméritos tubarões muito conhecida. Entre os elementos mais famosos desta família, temos o Prionace glauca e o Galeocerdo cuvieri ou, mais simplesmente, a tintureira e o tubarão-tigre, respetivamente. Outros tubarões, também famosos, como o tubarão-branco ou o rinquim, não fazem parte desta família, mas sim da Lamnidae. Claro que estamos a falar de famílias taxonómicas (científicas) e não de famílias de sangue, como fazemos entre humanos.
Voltando à nossa família, a Carcharhinidae. Em 1988 apareceram alguns tubarões pertencentes a esta família nos ilhéus das Formigas. Foi no dia 17 de Julho, mais precisamente, que pescadores capturaram alguns animais e suscitaram a curiosidade da comunidade científica. Em 1995, o técnico da Universidade dosAçores, João Brum, em conjunto com o Professor José Azevedo, publicaram um artigo científico que clarificou a identificação dos animais e assim deu uma nova espécie aos Açores: os Carcharhinusgalapagensis ou, como são conhecidos entre os amantes do mar, os tubarões-das-Galápagos.
Claro, como é habitual, os cientistas não se contentando com uma resposta, lançaram imediatamente mais umas quantas perguntas: Como é que estes tubarões conseguiram chegar das Galápagos até aqui? Porquê apenas agora? Ir-se-ão conseguir estabelecer? Irão ameaçar as populações de presas ou competidores? Porque aparecem nas Formigas e não em qualquer outro local dos Açores? Aparentemente, algumas destas novas perguntas começam a ter também resposta.
É senso comum que estes tubarões tenham conseguido chegar até aos Açores com a abertura do Canal do Panamá. Esta resposta explicaria também a segunda questão. Apesar de não haver provas, parece tão evidente que esta resposta não tem suscitado o devido debate. Eventualmente, devia ser debatida porque a densidade nalguns pontos do Atlântico é tão elevada que não faz sentido o povoamento apenas ter sido iniciado em 1914. Esta técnica de eliminar hipóteses concorrentes pela simplicidade e lógica da resposta obtida tem um nome. Chama-se Navalha de Occam (ou Lei da Parcimónia) e postula simplificadamente que “a resposta menos complexa costuma ser a correcta”.
Quanto ao estabelecimento da população, a questão é bem mais complicada. Eu já mergulhei muitas vezes nos ilhéus das Formigas, no Recife Dollabarat e no Banco do Entre-Meio (as três áreas acessíveis da Reserva Natural das Formigas). No entanto, por apenas duas vezes consegui ver estes animais debaixo de água. Isso, pensava eu, indiciava que a população não era muito robusta. Numa dessas duas vezes consegui ver cinco tubarões em simultâneo! Para além do entusiasmo e emoção, tenho de admitir que também houve algum “respeito”…
Ao longo dos anos, tenho advogado a proteção efetiva dos ilhéus das Formigas. Enquanto tive responsabilidades pela matéria, ajudei a implementar regras mais restritivas de utilização e incentivei o incremento da sua fiscalização. Apesar disso, mesmo eu, sempre duvidei da sua eficiência. Portanto, imaginem a minha alegria quando, este ano, um dos responsáveis por uma empresa de mergulho turístico comescafandro autónomo de Santa Maria, o Paulo Reis (*), me relatou que na época de 2013 viram tubarões-das-Galápagos em quase todos os mergulhos. Num deles, viram mesmo 12 animais diferentes! Para além de espetacular, é mais um indício de que a Reserva está a ser respeitada. É um assunto a seguir com atenção e, aparentemente, responde à dúvida sobre a manutenção da população de tubarões.
Quanto a ameaçar outras espécies… pode estar a acontecer, mas não se nota nada. A última vez que mergulhei nas Formigas, vi tanta vida e tão animada que me custa a crer que estes tubarões estejam a prejudicar a fauna local. No entanto, sou de opinião que este tema poderia justificar uma excelente tese de mestrado ou de doutoramento. Há candidatos?

A última questão também ainda não tem resposta. Não entendo. Sinceramente, não entendo. Nas costas das ilhas têm aparecido, em números crescentes, os tubarões-tigres-da-areia (*, *, *) e, nas Formigas, aparecem os tubarões-das-Galápagos. Interessantíssimo! E aguardando por cientistas que aceitem debruçarem-se sobre este extraordinário desafio…

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Robots assassinos

Veículo subaquático autónomo "Infante" sendo testado no Canal Faial-Pico em 2003.
In: Relatório Anual de 2003 do Instituto de Sistemas e Robótica do Instituto Superior Técnico.

Em 2029, super-computadores dominam o mundo, determinados a eliminar a raça humana. Para destruir o futuro da humanidade enviam um cyborg indestrutível - um Exterminador - para o passado, com a missão de matar Sarah Connor, a futura mãe do líder da resistência humana, John Connor”. Esta poderia ser a simples sinopse de um filme de ficção científica de sucesso [*]. Ou não…
Lendo uma mensagem de correio electrónico de meu colega Eng. Luís Sebastião, registo “No início parece um género de um controlo de formação e, depois, com um pouco de processamento de imagem levam a medusa para um motor que a destrói em segundos...”. Trata-se da descrição de um teste de robots aquáticos feito por uma equipa estrangeira. Estes robots, automaticamente e através de sistemas computacionais muito avançados, detectam e destroem águas-vivas [*]. O sonho do veraneante…
Claro que, desenganem-se, o objectivo essencial destes “animais de ferro” não é propriamente proteger os banhistas, até porque, apesar de destruídos, os componentes das águas vivas continuam activos e viáveis o tempo suficiente para ainda irritar. O objectivo prático é apenas impedir que os sistemas de refrigeração das grandes indústrias fiquem entupidos com medusas, como aconteceu recentemente numa central nuclear sueca [*]. Não posso dizer que não seja importante, até porque sabemos quais as consequências que podem resultar de uma central nuclear que deixa de ser refrigerada… [*]
No entanto, tentar matar um problema raramente é boa solução. Sabe-me a pouco e a fraco. Porque não, em alternativa, concentrar esforços em mitigar a base do problema que, no caso das águas-vivas, aparentemente, são as alterações climáticas globais. Dizem alguns entendidos que as temperaturas mais quentes promovem a proliferação destes seres gelatinosos. Ao mesmo tempo, o decréscimo das populações de predadores, vítimas da pesca involuntária, como é o caso das tartarugas e dos peixes-lua, também parece dar uma ajuda neste crescimento populacional involuntário. Portanto, diria eu, seria apropriado concentrar os nossos esforços no combate à libertação de Carbono na atmosfera e não em construir letais robots subaquáticos. Aliás, um parêntesis para dizer que bom mesmo era acabar com aqueles outros robots que matam humanos à distância e sem julgamento e a quem deram o pomposo nome de “drones”. [*]
Também não me agrada nada que se transforme o mar à medida do homem. Não é assim. Na minha convicta opinião, o mar deve ser deixado tão pristino quanto possível e de lá devemos tirar, sustentavelmente, os recursos que necessitamos. Não temos o direito de transformar o Oceano numa fria aquicultura.
O Mar é Selvagem! Podemos lá ir buscar algum alimento e algumas soluções, estudá-lo, usufruir da sua rebeldia e imprevisibilidade mas, penso eu, não temos o direito de o modificar. Esta aproximação robótica é triste, fria e demasiado antropogénica para o meu gosto.
Com tudo isto, não pensem que sou contra a robótica ou, em particular, contra a robótica submarina. Nem pensar! Sou um entusiasta e vibro com os esforços do Institutode Sistemas e Robótica da Universidade Técnica de Lisboa, parceiros do DOP/UAç, para ultrapassar os problemas com que se confrontam diariamente. Principalmente quando se tentam conceber veículos subaquáticos autónomos (os AUVs), que têm enormes desafios associados ao controle de navegação, às comunicações e à economia de energia, há que reconhecer que esta é uma ciência de ponta. É uma ciência que cria instrumentos que auxiliam os cientistas do mar no estudo dasfontes hidrotermais de grande profundidade, dos montes submarinos e das grandes massas de água. Utilíssimo e fascinante, sem dúvida nenhuma.

Pela minha parte, desde que não lhes instalem instrumentos de matar, eu gosto imenso de robots. Desde aqueles que construíamos em legos até aos que, com várias toneladas, já vimos a ser testados no Porto da Horta, todos são fantásticos exemplos do melhor que a mente humana tem para oferecer.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

As coisas que vamos aprendendo…

Exemplo de mapeamento de habitats no Canal Faial-Pico.

Ao regressar ao Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, após uma ausência de sete anos, interrogava-me sobre qual seria a grande novidade científica que me iria abismar. Estando relativamente a par do que se passa no estudo do mar, não podia ser uma novidade bombástica, daquela que se lê nos jornais. Essa, eu saberia. Portanto, estava curioso sobre aquela novidade deliciosa e esquiva, em que ainda não teria colocados os olhos. Ansiava por aquele momento em que dissesse um ingénuo disparate e me respondessem: “Mas nós já sabemos isso!”
Não tive que esperar muito…
Há novas espécies alienígenas marinhas nos Açores publicaram, entre muitos outros, os meus amigos Ricardo Cordeiro, Sérgio Ávila, Ana Costa (de São Miguel) e António Malaquias (vive na Noruega e é casado com uma faialense), o negócio do turismo de observação de jamantas [*, **] está em crescimento, não apenas nos Açores [**], mas no mundo inteiro [*], foi encontrada uma nova fonte hidrotermal de grande profundidade nos Açores [*] e as alforrecas estão a crescer em número porque os oceanos estão mais quentes, descobriram cientistas do Mediterrâneo [*, *]. Curiosamente, segundo estes cientistas, a nossa amiga água-viva (Pelagia noctiluca) [*] é uma das grandes beneficiadas. Estas foram algumas das primeiras novidades com que me bafejaram. Tanta coisa nova…
No entanto, o que mais me impressionou foi ficar a saber que foram definidos novos e variadíssimos habitats marinhos. Ou seja, houve um colega, o meu colega de gabinete Fernando Tempera, que passou muitas horas a observar vídeos da maioria das grandes expedições científicas e conseguiu sistematizar conjuntos de espécies e relacioná-los com as principais características biofísicas (como a profundidade e o tipo de substrato). É um daqueles trabalhos que exige muito conhecimento, para conseguir identificar todas as espécies, e uma enorme paciência…
Quando olhamos para a paisagem terrestre, distinguimos facilmente florestas, pradarias, praias, entre muitas outras. O mesmo aconteceria debaixo de água se conseguíssemos ver. Este colega abraçou a missão de tentar encontrar o equivalente a estas agregações até vários quilómetros de profundidade. Os vídeos recolhidos pelos submarinos [*, *] e veículos de operação remota (ROV) [*], transportados a bordo dos enormes navios de investigação que amarram no porto da Horta [*, *], foram escalpelizados detalhadamente e os resultados surgiram.
E, no campo dos mistérios que continuam sem resposta, aqui deixo alguns dos desafios que motivam os colegas da Universidade dos Açores: para onde vão as jamantas quando saem dos Açores? Porque aparecem mortas as baleia-de-bico apenas nas duas últimas semanas de Julho? Que espécies de profundidade que habitam o Mar dosAçores têm propriedades medicinais? Onde se acumulam as grandes concentrações de metais no mar profundo? Qual é o impacto esperado da atividade de mineraçãodos mares? Como irá evoluir a invasão de Caulerpano porto da Horta? Porque há espécies [*] que vivem em abundância no Faial e Pico, mas estão totalmente ausentes das restantes ilhas dos Açores? O que acontecerá com a acidificação dos oceanos consequente às alterações climáticas? Como irão evoluir as pescarias dos Açores? São tudo boas perguntas, para as quais há hipóteses explicativas, mas ainda não há verdadeiras respostas. Essas emergirão do estudo e dedicação dos cientistas dos Açores.
Ah, que mundo lindo este que está absolutamente cheio de maravilhosas perguntas! Melhor que o mistério da nossa ignorância é a conquista de uma resposta. Uma resposta. Uma boa resposta é o que espero conquistar até ao final do ano. Quando a tiver, aqui estarei a partilhá-la!

Exemplos de facies do mar profundo dos Açores.
(imagens de EMEPC, IMAR/DOP-UAz; Greenpeace (c) Gavin Newman; SEAHMA
in: Tempera, F, JN Pereira, AB Henriques, F Porteiro, T Morato, V Matos, M Souto, B Guillaumont, RS Santos (2012). Cataloguing deep-sea biological facies of the Azores.
Revista de Investigación Marina, 19(2): 36-38)

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Em Dia Mundial do Mar

Imagem topográfica do Banco D. João de Castro (Açores)
obtida pelo Projecto ASIMOV (1998).

O Dia Mundial do Mar foi instituído pela Organização Marítima Internacional (IMO), uma das agências da Organização das Nações Unidas, e é celebrado na última semana de Setembro ou primeira de Outubro, sendo o dia específico deixado à escolha de cada Governo. Este ano, Portugal alinhou pela data apontada pela IMO e celebra hoje, dia 26.
Sendo a IMO uma instituição orientada para a segurança dos navios e do tráfego marítimo é com naturalidade que o tema escolhido este ano verse a importância do Sistema de Transporte Marítimo Internacional. Pelo que tenho observado, há realmente um empenho superlativo na tentativa de conceber melhores navios, capazes de transportar cargas com menor prejuízo ambiental e com maior eficiência económica.
Neste momento, por exemplo, a empresa VikingLine já possui um grande navio de transporte de passageiros cujo motor principal funciona com Gás Natural Liquefeito. Segundo um dos representantes do operador, de quem tive a oportunidade de ouvir uma interessantíssima palestra, os níveis de compressão obtidos na liquefação são da ordem das 600 vezes. É ótimo para ambiente, mas mau para as intenções de estabelecimento de um posto abastecedor para o tráfego internacional nos Açores. Se a tecnologia continua a avançar desta forma, dificilmente nos tornaremos um ponto de paragem obrigatória para os navios que cruzam o Atlântico Norte.
Um dos grupos de trabalho da IMO está a trabalhar na redução do ruído subaquático [ver páginas 40-43, *]. Este é um tema para muitos desconhecido, mas de primordial importância. Grande parte dos cetáceos comunica com base nos sons que emitem [*] e o ruído provocado pelo somatório das embarcações está longe de ser inerte [*]. Em certas zonas, como na costa Ocidental de Portugal Continental, falar, para os cetáceos, deverá ser como tentar comunicar na discoteca da moda às duas da manhã... De facto, as grandes baleias, capazes de fazer as suas longas canções circular até milhares de quilómetros de distância, estão hoje muito limitadas na captação destes sons [*].
No passado, houve grandes problemas causados por ensaios de deteção militar submarina utilizando baixas frequências sonoras. O resultado dessas tentativas foi uma elevada mortalidade em baleias-de-bico [*]. Felizmente, pararam.
Os objetivos são ambiciosos e do conhecimento público. Pretende-se reduzir as emissões de CO2 relacionadas com o transporte marítimo em 30% até 2020 e, imagine-se, 80% até 2050! A redução esperada de óxidos de azoto e enxofre (também conhecidos pela estranha sigla NOxSOx) é de 100% até 2050 [*, *, *]. Melhor não seria possível. Em termos de som, aponta-se também para uma redução considerável: 3dB até 2020 e 10dB até 2050!
Há também ambiciosos objetivos traçados para o aumento da segurança marítima e essa passa muito pelo que faz uma instituição que tem sede em Lisboa. A Agência Europeia para a Segurança Marítima (EMSA) faz uma auscultação permanente ao tráfego marítimo europeu e emite avisos e recomendações. O projeto mais emblemático desta agência, o SafeSeaNet, que permite aos Estados membros da União Europeia, à Noruega e à Islândia, fornecer e obter informações sobre o movimento de embarcações, já tem milhares de utilizadores permanentes [*, *].
Apesar dos transportes marítimos serem um sector de importância primordial para os Açores, penso que o mar, felizmente, é muito mais do que uma enorme estrada aquática. Lá, nesse vastíssimo mar, está o alimento, a inspiração, a ciência, a recreação e a aventura. Este Mar dos Açores, que até há pouco apenas usávamos para transportes, comunicações submarinas (cabos) e para as pescas, começa a revelar parte do seu vasto potencial. Vemos, nomeadamente, possibilidades relacionadas com a aquacultura, biotecnologia com base em organismos do mar, mineração dos fundos marinhos, turismo [*] e energias offshore. Estas prioridades não são apenas uma visão pessoal. Nada disso. Estas são as prioridades da pragmática Comissão Europeia em termos de orientação de investimento [*, *, *, *]. Portanto, este não é apenas o caminho, mas é dos poucos caminhos que serão beneficiados pelos milhões que a Comissão colocou à disposição dos Açores para investimento nos próximos anos.
Ao Governo dos Açores caberá, como bem tem feito, distribuir verbas pelos investidores e dotar-se a si próprio das ferramentas que lhe permitam estudar o mar, vigiá-lo e fiscalizá-lo. Seja em cooperação com instituições como a Universidade dos Açores, a Marinha de Guerra Portuguesa e outras entidades, ou reforçando as Inspeções Regionais do Ambiente e das Pescas, terá de ser capaz de acompanhar e estimular o uso sustentável do vasto oceano. Olhando para as decisões feitas ao mais alto nível, apenas tenho de estar confiante.
O mar esconde segredos que poderão colocar os Açores em posição privilegiada para ajudar a resolver os problemas financeiros de Portugal [*], poderão solucionar algumas das doenças que o século XXI ainda herdou [*] e poderão inspirar as gerações futuras como o fizeram com as gerações passadas [*, *]. Certamente, iremos multiplicar por várias vezes as duas mil espécies já registadas no nosso mar [*, *], iremos descobrir novas substâncias e iremos encontrar soluções engenhosas para situações de poluição excessiva. Para que tudo isto aconteça nos 9 milhões de quilómetros cúbicos de água salgada que envolvem as nossas ilhas “apenas” é necessário investimento, conhecimento e organização.
Este é o mar real. Aquele mar que temos à beira das nossas ilhas e que insiste em se insinuar, como uma benigna caixa de Pandora.
Impõe-se, no entanto, tecer umas breves considerações sobre informações que têm circulado na comunicação social sobre gigantescos e misteriosos artefactos subaquáticos entre as ilhas da Terceira e São Miguel [*: tela de Carlos Carreiro que mostra claramente a "pirâmide"]. A primeira observação, como não poderia deixar de ser, é que a Universidade dos Açores possui batimetria detalhada dos fundos marinhos. Tanto o Departamento de Oceanografia e Pescas, para mapear os habitats marinhos [*], como o Departamento de Geociências, para compreensão da lógica geológica marinha, têm mapas com elevada precisão dos mares dos Açores. Não teria sido boa ideia enviar os dados obtidos pelo navegador recreativo para qualquer destes departamentos, para que os pudessem verificar? Para além disso, não seria normal e lógico que, a haver uma missão de exploração daquela informação, esta se fizesse com base nos navios de investigação do Governo dos Açores e que são geridos pelo Centro do Instituto do Mar da Universidade dos Açores? Ou usando o submarino da Fundação Açoriana Rebikoff-Niggeler? Sinceramente, desde a publicidade irrefletida e exagerada [*] a uma alegação altamente duvidosa [*], até à reação das entidades responsáveis [*], parece-me que esta é a forma errada de tratar o mar que pretendemos que seja nosso. Nas obras de ficção com palco no Mar dos Açores, como no “Capítulo 41” de Pedro Almeida Maia, que aproveito para aconselhar, este tipo de referências são plausíveis e desejáveis, mas em órgãos de comunicação social? Como se fizesse parte de uma inquestionável realidade? Isso não.

O mar real, com os seus fundos palpáveis, com organismos marinhos, com a sua cultura marítima e com espaço para infinitas atividades aquáticas, é suficientemente complexo e aliciante para quem tem o espírito polvilhado de água salgada. Vou mergulhar!

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

… e as alforrecas dominarão os mares!

Pelagia noctiluca

Há uns dias atrás contactaram-me de uma publicação com distribuição nacional e pediram-me informações sobre alforrecas. Aparentemente, há um livro que defende a tese de que as alforrecas irão dominar o planeta e queriam saber o que pensava sobre isso. Tentei orientá-los para quem sabia mais do assunto do que eu, mas insistiram que queriam a opinião de uma pessoa que anda no mar e convive com as alforrecas na primeira pessoa.
Assim sendo… respondi: “as razões ainda são difusas e nem posso garantir que, em relação aos anos anteriores, haja mais águas-vivas nos Açores, como lhes chamamos por aqui. Aquilo que posso garantir é que incomodam mais!
Ainda ontem, estava a mergulhar no Monte da Guia, fazendo censos de uma alga invasora e, ao chegar à superfície, zinga!, fui tocado por uma Pelagia noctiluca, como lhes chamam os cientistas. A dor não mata, mas é como uma vergastada concentrada num único ponto. Depois, incha, irrita, arde e dói. Mais uma vez, não mata, mas chateia. Passadas 12 horas, apenas resta um leve inchaço ruborizado.
Este foi um caso pacífico. Em pessoas mais sensíveis ou nos encontros com espécies mais agressivas, as consequências podem implicar a aplicação de fármacos ou mesmo a ida ao hospital [*]. Quando o "toque" é dado por uma caravela-portuguesa, é mesmo necessário ir ao hospital [*]. Para além da dor se aproximar do insuportável, este exótico animal pode matar e mata mesmo...
Os Cnidaria, de que fazem parte as alforrecas, são dos animais mais antigos do nosso planeta. As alforrecas têm uma organização morfológica muito simples, mas são tão eficientes que não se extinguiram nos milhões de anos em que 99% das espécies jamais existentes desapareceram [*]. Para além do nosso respeito e distância de segurança, merecem a nossa contemplação e admiração. É que, para além da longevidade dos seus antepassados, são dos organismos mais bonitos que a água salgada nos oferece.”
Penso que foi uma resposta honesta ao que me perguntavam, mas depois fiquei a remoer… Não propriamente na resposta, mas mais na premissa de que as alforrecas irão dominar os oceanos num mundo em mudança climática…? A relevância desta afirmação que jamais poderá ser provada é igual à daquela outra que dizia que “depois do holocausto nuclear, o planeta será dominado pelas baratas!”, lembram-se?
Aliás, isso fez-me lembrar uma tese meio humorística que defende que tudo é previsível desde que aumentemos o factor tempo. Vulcões, tremores de terra, tsunamis, tempestades e outras manifestações da ira de Deus irão acontecer de facto, basta não definir bem o quando… Durante uma enorme ventania, um grande amigo dizia-me com a sabedoria científica que apenas ilumina os melhores “ainda vão vir dias de bom tempo!”. Como negar ou contrapor?! Genial!

Remoendo ainda mais, pareceu-me que eu estaria a pensar mal. Claro que devemos reflectir nos diferentes cenários possíveis até para tentar perceber como os resolver, se estes forem problemáticos. Mais importante, portanto, do que os oceanos serem dominados pelas alforrecas, é saber como evitar chegar a esse ponto. É que admitir um oceano dominado por alforrecas em detrimento das espécies mais complexas hoje existentes, equivale a admitir que regredimos centenas de milhões de anos na cadeia evolutiva. Tal não pode acontecer! Visto que os seres humanos apareceram somente há duzentos mil anos, isto é, claramente, uma questão de auto-preservação…

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O que é mergulhar com escafandro autónomo?

Detalhe de Estrela-do-mar, Ophidiaster ophidianus,
fotografada no Monte da Guia, Faial, Açores.

Admito que é difícil para alguém que não conheça, imaginar a paz e a tranquilidade que se sente debaixo de água a uns simples 15 metros de profundidade. O que proponho nestes 4 mil caracteres que se seguem é tentar partilhar essa sensação.
Imagine um prédio, como o novo bloco do hospital da Horta, e imagine que está no seu topo à superfície da água. Lá em baixo, junto à entrada do bloco, está o mergulhador, perscrutando os fundos marinhos. É essa a altura da coluna de água que separa o mergulhador da superfície.
Graças à impulsão que empurra o mergulhador para cima, o mergulhador pode “flutuar” na coluna de água, “voar” até ao terceiro andar e depois voltar ao rés-do-chão. É muito conveniente que, perto do final do período do mergulho, esvoace até ao último piso…
O sentimento de imponderabilidade que se usufrui neste “voo” subaquático é extraordinário. Pode dar cambalhotas, "fazer paraquedismo" ou ascender sem qualquer esforço. Aquela coisa dos pulinhos de quem anda na lua, tendo aquela ligeira sensação de ficar no “ar” durante algum tempo, é o quotidiano no mergulho com escafandro autónomo. Como extra, nesta má comparação com os astronautas, refira-se ainda que lá em baixo, na entrada do bloco, os peixes vêm observar o mergulhador com uma curiosidade tal que até parece que ele veio de outro planeta…
Tenho de salientar, no entanto, que no mergulho nem tudo são rosas. Por exemplo, as ascensões não podem ser rápidas e qualquer erro pode resultar em acidentes muito graves. São acidentes raros, mas acontecem e podem ser letais.
Para quem queira iniciar esta atividade, aconselho vivamente os chamados “batismos de mergulho” que as empresas de turismo subaquático ou a Marinha promovem. São simples e servem para ter uma primeira aproximação. Depois, se gostar, é continuar!
Quanto a mim, lembro-me perfeitamente que no meu primeiro mergulho, quando pela primeira vez coloquei um regulador na boca, tive que me concentrar para obrigar o meu corpo a inspirar. Esteve longe de ser automático…
Depois, outra sensação memorável que tive no mergulho foi quando a minha sinusite se extinguiu. Ao ascender dos 25 metros, durante o exame de mergulho, senti, de repente, um enorme alívio na face. Não liguei, até porque, a sensação de alívio, sendo boa, não era nada junto da novidade dos peixes, água, algas, fundos marinhos e da emoção. Quando saí da água reparei como todos me olhavam com espanto e preocupação. A minha máscara estava suja de um líquido cujas cores me escuso a descrever dada a sua repugnância. Desde então, desde os meus dezasseis anos, nunca mais tive problemas com inflamações dos seios perinasais.
Graças ao mergulho, em apenas uma semana, esta última, pude nadar com jamantas, ver fontes hidrotermais bem ativas a 40 metros de profundidade junto ao Faial e descansar o corpo na solidão subaquática que encontramos no sopé do Monte da Guia. Vi e fotografei animais que se encontram no limite da imaginação da maioria dos seres humanos e pude ter o privilégio de os partilhar de imediato (a fotografia digital dá uma boa ajuda). Hoje, o mergulho com escafandro autónomo dá-me uma paz e tranquilidade únicas e proporciona-me histórias e aventuras que tenho o prazer de contar aos meus filhos e, se tiver essa felicidade, aos meus netos. Aconselho vivamente!
Em resumo, os barulhos são diferentes; os movimentos são diferentes; o “voar” nesta “atmosfera” aquosa é diferente, até há quem lhe chame nadar; os organismos que nos rodeiam são diferentes; o calor é diferente, até há quem lhe chame frio; daí aventurar-me a dizer que o extremo do “sair cá dentro” é mergulhar no nosso magnífico oceano!
Da mesma forma que os astronautas devem ter sensações absolutamente únicas, o descobrir o meio aquático também é fantástico e radical. Uma grande diferença entre os dois é que o segundo está ao alcance de todos. Outra diferença é que o segundo permitir-lhe-á descobrir outros modos de vida enquanto o espaço exterior tem, basicamente, isso, espaço...

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Os primeiros tempos das ilhas Ocidentais

Vila do Corvo, ilha do Corvo

Ao contemplar a paisagem da ilha do Corvo, de que me orgulho de já conhecer razoavelmente, não consigo deixar de me perguntar como seria nos primeiros tempos. É óbvio que casas não haviam. Também parece claro que a paisagem era dominada por plantas que hoje estão ausentes ou são vestigiais. Provavelmente, a orografia, tirando a construída, seria basicamente esta. Não há história de grandes tremores de terra ou vulcões em tempos históricos e os humanos ainda não alteraram as conhecenças fundamentais, portanto, esta seria razoavelmente a orografia que os primeiros povoadores encontraram. No caso do Corvo, em particular, há um morro que abrigava a vila dos ventos oeste e que desapareceu para que a pista de aviação pudesse ser construída. Tirando isso, é razoavelmente o que Diogo de Teive encontrou.
Há uns dias atrás, uma boa amiga enviou-me um texto que faz uma comparação crítica dos textos que mais comummente são utilizados para descrever os primeiros dias das ilhas Ocidentais e do arquipélago dos Açores na generalidade. Trata-se de um artigo publicado na revista Arquipélago (série História) no ano 2000 e escrito pelo Dr. Geraldo Lages, então mestrando da Universidade Nova.
Trata-se de um texto muito interessante e que não consigo, por falta de conhecimento, criticá-lo. Limitei-me a aprender e a tomar como boas as informações que o Dr. Lages de forma cativante, vai retirando de cada uma das descrições históricas. Umas informações aceita, outras recusa fundamentando e assim vai construindo o que poderão ter sido os primeiros dias da ocupação humana destas duas ilhas. Li com interesse.
É um texto extenso e que não pretendo sumariar neste pequeno artigo. Aconselho apenas a leitura. De qualquer forma, há alguns ensinamentos que gostaria de partilhar. O primeiro está relacionado com a fragilidade ambiental das ilhas oceânicas. Ao desbravarem o terreno na ilha do Corvo, os primeiros povoadores encontraram um solo fértil e generoso que originou produções agrícolas extraordinárias. De tal forma imprevisíveis que, passados poucos anos, alguns florentinos emigravam para o Corvo para obter melhores rendimentos. Sol de pouca dura. Ao exporem os terrenos aos elementos, o solo foi sendo erodido pelo vento e rapidamente as produções caíram para um terço das originais.
Ao nível aquático, os rendimentos também foram caindo rapidamente, neste caso por sobre-exploração dos recursos. Apesar disso, desde os primeiros tempos, havia embarcações que se deslocavam da ilha Terceira até às ilhas ocidentais para aqui pescar. Curiosamente – esta parte não vem no artigo –, apenas muito recentemente este processo de delapidação insustentável foi terminado. Hoje as embarcações dos outros grupos de ilhas açorianas estão praticamente impedidas de pescar para águas das Flores e do Corvo abrindo assim espaço para a sua ampla recuperação. Agora é dar tempo.
No entanto, o que mais me impressionou foi a miséria tal como ela é descrita pelos autores analisados pelo Dr. Lages. A certo passo Almeida Garret, deslocado às ilhas ocidentais acompanhando Mouzinho da Silveira, refere os florentinos como as pessoas mais miseráveis que jamais tinha visto, apenas melhor que os corvinos. Entre impostos, taxas, sobretaxas, dízimos e outras contribuições, a redução de produtividade por sobre-exploração ou por erosão dos solos, pouco lhes restava para viver, havendo pessoas que nem recursos tinham para se vestirem. As casas, chamadas de “palhaças”, imagine-se porquê, eram partilhadas por várias famílias tal a escassez de tudo. Eram tempos muitíssimo duros para estas duas ilhas e que, felizmente, Mouzinho da Silveira terminou.
Volto a olhar a paisagem e sinto a falta dos cedros, faias, pau-branco, urzes e outras plantas que deveriam coroar a paisagem original. Sinto a falta dos angelitos, essas pequenas aves marinhas que davam um “azeite tão fino como o de oliveira”, que fizeram a fortuna da ilha do Corvo dos primeiros tempos. No entanto, parte do meu cérebro está ainda mais impressionada com um fragmento de informação…
No Corvo não havia barcos. Estranho, não é? Uma ilha com isolamento acentuado e um mar riquíssimo não tinha qualquer embarcação. A explicação vem umas linhas abaixo. Segundo o autor, o Corvo não tinha embarcações para que as pessoas não pudessem da ilha fugir!

É por estes contrastes entre o terrível passado e o presente que, mesmo perante todas as agruras e injustiças que a vida nos trás, me sinto privilegiado por viver no nosso tempo. Se, nestes anos, pudemos evoluir tudo isto, que coisas absolutamente fantásticas nos trará o futuro que aí vem?

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Claridade

É evidente a transparência das águas dos Açores, especialmente durante o verão.
No caso, cardume de jamantas no banco Princesa Alice.
Foto: F Cardigos ImagDOP

Ao falar com turistas que decidiram passar férias nos Açores a fazer mergulho com escafandro autónomo, notei que a escolha das nossas ilhas partia de premissas como o mergulho com tubarões, o mergulho com jamantas ou o mergulho em águas profundas, mas raramente o primeiro motivo era a evidente claridade da nossa porção do Oceano. Achei isso de uma enorme injustiça. Passo a explicar porquê.
Se vivêssemos num arquipélago de águas imensamente produtivas, em que as pescarias atingissem valores consonantes com os milhões de quilómetros quadrados de plataforma continental que nos rodeiam, teríamos rendimentos financeiros absolutamente principescos. Não acontece assim.
Nos Açores, a maioria do substrato ou do leito marinho, conforme preferirmos chamar, está a profundidades demasiado elevadas. Estas profundidades estão para lá da zona fótica (zona iluminada) e, por essa razão, as algas bentónicas, que transformam a matéria inorgânica em matéria orgânica, são escassas.
Ao mesmo tempo, as águas que circulam por entre as ilhas não são suficientemente dinâmicas para “arrancar” a matéria inorgânica do fundo e coloca-la à disposição das algas flutuantes (o fitoplâncton) para que estas colmatem o deficit de produção. Aqui, na maioria do ano, não se formam as chamadas zonas de afloramento ou ressurgência (upwelling), quando as correntes dos fundos marinhos trazem para a superfície matéria inorgânica, provocando um acréscimo significativo na produção biológica.
Resumindo, as águas dos Açores, sob o ponto de vista da oceanografia biológica, não são muito produtivas. O que não é completamente mau. Tem mesmo aspectos positivos. Um deles é que as espécies que aqui existem são diferentes, especialmente, as que se adaptaram a esta escassez de alimento, às águas profundas ou aos restantes ecossistemas extremos, em que o expoente máximo, na minha opinião, são as fontes hidrotermais.
Outro dos aspetos positivos desta quase generalizada falta de produtividade é a claridade da água. O nosso azul marinho dos Açores (o Azzurre que poderá ter dado o nome ao arquipélago), que os mais experientes marinheiros conseguem identificar imediatamente, é o resultado de águas oligotróficas (pouco produtivas). Consequência disso, a transparência da nossa porção do oceano é enorme e permite ver, fotografar e filmar, nas melhores condições, tubarões, tubarões-baleia e jamantas ou mergulhar com segurança e conforto até dezenas de metros de profundidade.
Noutros locais, sem esta claridade, os grandes organismos marinhos subaquáticos aparecem como manchas destoadas e fogem como vultos assustados. Mergulhar com escafandro em águas escuras é como submergir num elevador em que desligaram as luzes e onde temos de procurar o botão do próximo andar usando a luz do visor do telemóvel… Arrepiante… Claustrofóbico! Nos Açores é diferente e é muito melhor!
No início da primavera, quando passam nos Açores as grandes baleias, oiço as pessoas a dizer que as águas estão verdes. É verdade, estão verdes porque nos escassos períodos em que há uma sincronização entre o aumento no fotoperíodo (os dias são maiores) e a permanência na coluna de água de matéria inorgânica oriunda das águas revoltas de inverno observa-se uma explosão na quantidade de fitoplâncton e, em consequência, do zooplâncton (ou krill) de que se alimentam estes grandes cetáceos. É um pequeno período de enorme produtividade. Estou a simplificar fenómenos mais complexos, que envolvem outros fatores como um importante ramo da corrente do Golfo, mas que, basicamente, resultam nesta sincronização.
Infelizmente, é um fenómeno que nos Açores dura pouco tempo e que nem todos os anos tem a mesma intensidade e isso faz com que até as aves marinhas que aqui nidificam se desloquem milhares de quilómetros para se poderem alimentar convenientemente.

Como tudo, a claridade das águas açorianas tem aspetos positivos e negativos. Agarremo-nos aos positivos e saibamos viver com a oligotrofia das nossas águas. Temos muito a lucrar se compreendermos bem o local onde vivemos e o usarmos em consonância.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A Horta no Tempo dos Cabos Submarinos

Os cabos submarinos no Atlântico Norte no início do século XX.
Imagem disponível aqui

Ao contrário do que muitos eventualmente pensarão, em tempos de avançadas tecnologias espaciais uma componente muito significativa das comunicações a longa distância não é feita via satélite. Na realidade, grande parte da transmissão de informação a média e a longa distância realiza-se por cabo. Entre continentes e para os territórios isolados pelo mar, como as regiões arquipelágicas, a comunicação flui através de cabos submarinos. Nos Açores, as grandes limitações à transmissão de informação célere e de qualidade verificam-se precisamente nas ilhas que ainda não têm ligações em fibra óptica por cabo submarino, ou seja, nas Flores e no Corvo.

Dado o seu posicionamento, aproximadamente no centro do Atlântico, as ilhas dos Açores são uma peça importantíssima na transmissão de informação. São-no hoje e ainda mais o eram no final do século XIX e durante a primeira metade do século XX. Nessa época, surgiram nos Açores importantes estações das principais companhias de comunicações, algumas com empresas especificamente criadas para as operarem, caso da britânica Europe & Azores Telegraph Company. Não tendo a tecnologia avançado o suficiente para que a transmissão se fizesse de uma vez só através de todo o oceano, foi necessário criar estações que fizessem de alpondra entre o novo e o velho mundo. Com estas estações regeneradoras reforçava-se o sinal telegráfico que, de outra forma, perder-se-ia na resistência dos cabos.

A seleção dos Açores como local apropriado para a instalação das companhias terá tido várias razões que nos escapam, mas parece ter sido importante a possibilidade de evitar as avarias mecânicas que os arrastões de pesca do Atlântico mais a norte provocavam nos cabos. Os Açores constituíam assim o elo mais próximo e seguro entre a Europa e os Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, o Governo Português facilitou o uso de uma ilha do grupo Central impondo como condição que as companhias que se aí instalassem servissem também as restantes ilhas. Desta forma, via Faial, as ilhas do Pico, São Jorge, Graciosa e Terceira passaram a usufruir de comunicações internacionais.
Já a escolha recaiu sobre a ilha do Faial por outro tipo de razões. A Horta e a sua baía, hoje classificada como uma das mais belas do mundo, eram já então reconhecidas pelo abrigo seguro para os navios que cruzavam o Atlântico Norte e pela sua posição razoavelmente equidistante dos dois lados do oceano.

Também a presença da família Dabney no Faial, que lhe reforçou a importância económica e a visibilidade internacional, parece ter sido um fator de relevo. Ironicamente, a família Dabney acabou por sair do Faial um ano antes da instalação da primeira companhia telegráfica.

Nos anos 30, a Horta chegou a ser um dos maiores centros cabográficos do mundo, dispondo de 15 amarrações de cabos aos dois continentes ribeirinhos e a Cabo Verde.

Apesar de hoje se continuar a comunicar por cabos submarinos, a automatização das comunicações e os desenvolvimentos tecnológicos tornaram obsoleta a necessidade de manter técnicos e estruturas avultadas a meio do Atlântico. Assim, o chamado Tempo dos Cabos Submarinos da Horta, que teve início em 1893 com a chegada da britânica Europe and Azores Telegraph Company, terminou em Dezembro de 1969, quando a norte-americana Cable & Wireless fechou as suas instalações. Durante este período, para além das empresas britânicas e norte-americanas, também uma companhia alemã (DAT - Deutsch-Atlantische Telegraphengesellschaft) firmou e encerrou uma robusta representação neste exíguo território. Foram deslocados para a Horta dirigentes e técnicos de Inglaterra, da Alemanha, do Canadá, da Irlanda, da Escócia, de Cabo-Verde e dos Estados Unidos da América. Deixo este último país para último porque, dados os elevados salários exigidos pelos técnicos deslocados, as companhias evitavam a contratação de cidadãos norte-americanos.

Hoje, na ilha do Faial, ainda restam memórias desses tempos. As instalações da companhia alemã DAT (hoje albergando departamentos do Governo dos Açores), o bairro residencial da Western Union Telegraph Company (hoje o Hotel Fayal) e a Trinity House (hoje a Escola Básica António José de Ávila) são, talvez, as construções mais evidentes, embora integradas num espólio de mais de uma dezena de estruturas identificadas e que fazem parte de um interessante roteiro de que se pode disfrutar na cidade da Horta.

É também de realçar a memória deixada nos clubes desportivos e nas associações culturais. O pessoal das companhias, oriundo de horizontes completamente diferentes da Horta daquele período, era escolhido pela sua competência técnica, como é evidente, mas também pela capacidade de integração num meio estranho e pelas competências ao nível desportivo e artístico. Foram estas competências que levaram à formação e ao fortalecimento dos clubes desportivos do Faial (basta ver a simbologia do Fayal Sport para compreender claramente isto). Estão também elas na origem da maior expressão musical do Faial neste período. Para além das quatro orquestras e bandas filarmónicas existentes no final do século XIX, durante o Tempo dos Cabos Submarinos, a Horta teve, pelo menos, mais cinco bandas de diferentes tipos e com constituições mistas entre empregados das companhias e pessoas oriundas da ilha.

Manuel António de Sousa Lopes (1907-2005), nascido no Mindelo em Cabo Verde, foi poeta e empregado da companhia telegráfica inglesa, tendo estado colocado no Faial de 1944 a 1959. Curiosamente, foi neste período que este fundador do movimento cultural “Claridade”, peça basilar da identidade cabo-verdiana, escreveu alguns dos seus mais importantes textos. Diz-se que as saudades de casa o estimularam a ser particularmente criativo e prolífero.

Foi através dos funcionários das companhias dos cabos que foram introduzidas, vulgarizadas ou mantidas no Faial novas tecnologias como a fotografia, o cinema, o raio X, a eletricidade e o radioamadorismo. Foram tempos fantásticos e que deram um espírito aberto aos que tiveram a felicidade de viver na cidade da Horta nesses anos.

O Tempo dos Cabos Submarinos na Horta merece ser estudado. Nesse sentido, têm sido realizados colóquios, produzida documentação e dinamizados contatos internacionais para estabelecer parcerias sobre este património comum. A motivação do mundo académico e a reabilitação do equipamento técnico depositado no Museu da cidade são também disso sinais. Sobre essa época, autores como Carlos Silveira, antigo radiotelegrafista, Yolanda Corsépius, filha de um engenheiro alemão colocado na Horta, o Professor Francis Rogers, o Doutor Ricardo Madruga da Costa, a Professora Katja Grötzner Neves, neta de um técnico alemão colocado na Horta, entre muitos outros, publicaram interessantes relatos. É importante relembrar e perpetuar esta época crucial da cidade da Horta. Para entender o “ser faialense” é essencial estudar o negócio do vinho, a presença dos Dabney na ilha do Faial, a época baleeira, as grandes guerras, o tempo dos clippers, o surgir e o fortalecer da autonomia regional e, não menos importante, o Tempo dos Cabos Submarinos.

É preciso que a memória desse tempo seja perpetuada em espaço próprio. Diversas entidades e pessoas nisso se têm empenhado. O Governo Regional, os ex-cabografistas entusiastas e simpatizantes da Horta do Tempo dos Cabos Submarinos, posteriormente organizados no Grupo dos Amigos da Horta dos Cabos Submarinos, o Arq. Martins Naia, o Professor Henrique Melo Barreiros e antigos funcionários têm feito um importante esforço para que se crie um espaço museológico que salvaguarde o espólio tecnológico dessa época no “Operating Room” da “Trinity House” e para que se reabilite o espaço urbano e os imóveis que lhe serviram de palco, ou seja, as áreas mais relevantes do traçado dos cabos desde os locais de amarração até ao seu ponto de convergência na Rua Consul Dabney. Preconiza-se a sinalização de memoriais, tendo como referência um “Roteiro do Cabo Submarino” proposto por Francis Rogers, integrando a memória das instalações da Rádio Naval. Procurar-se-á, por outro lado, estabelecer contactos com aqueles que foram os principais parceiros desta epopeia.

Ao mesmo tempo, é necessário que os atuais responsáveis pelo edifício que albergou a diretor da DAT iniciem as obras de adaptação e o ocupem. Este edifício, que faz parte do conjunto classificado como a “Colónia Alemã” e que já albergou o Conservatório Regional da Horta, está a degradar-se rapidamente. É urgente fazer-se alguma coisa.

Na cidade da Horta, no primeiro e segundo quartel do século XX, em períodos particularmente difíceis para a humanidade, transcenderam-se as fronteiras linguísticas, políticas, sociais e religiosas, num verdadeiro e harmonioso cosmopolitismo. Este passado, original em Portugal e, em certa medida, pioneiro da globalização, deve ser motivo de enorme orgulho para todos os faialenses e constitui uma luz orientadora para o caminho a seguir no futuro.

Bibliografia utilizada:
- Carlos M. Ramos da Silveira (2002) O Cabo Submarino e Outras Crónicas Faialenses. Núcleo Cultural da Horta, 184p.
- Francis M. Rogers (1983) A Horta dos Cabos Submarinos. Delegação do Turismo da Horta, 45p.
- Vários autores (2011) O Porto da Horta na História do Atlântico: O Tempo dos Cabos Submarinos. Museu da Horta e Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta, 173p.
- Wikipedia (2012) Manuel Lopes. Wikipedia, a enciclopédia livre, http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Lopes
- Yolanda Corsépius (1999) Algumas Notas Sobre Aspectos Sócio-Culturais na Horta no Tempo dos Cabos Submarinos. Edição do Autor, 56p.

Agradecimentos:
São devidos agradecimentos a Yolanda Corsépius, ao Arq. Martins Naia e à Margarida Abecasis, pela análise crítica deste texto, e à Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça, na Horta, pelo auxílio na seleção e disponibilização dos recursos bibliográficos.

Ao Grupo dos Amigos da Horta dos Cabos Submarinos, estrutura integrada na Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta, um agradecimento muito especial por todo o trabalho que têm conduzido e a que se deve a dinâmica que o “Tempo dos Cabos Submarinos na Horta” tem tido nos últimos tempos.

Olhando para o futuro no Corvo:
montagem dos novos cabos submarinos que ligarão a fibra óptica do Corvo às Flores e ao Faial e Graciosa.
Imagem: FibroGlobal, disponível aqui

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Açores nos Açores?

A grande distância, os milhafres poderiam ter sido confundidos com açores?
Foto: F Cardigos

Desde sempre que me lembro de ouvir os nossos visitantes perguntar porque deram o nome de “Açores” a este arquipélago de nove ilhas. Uma resposta fácil é que alguém se terá enganado a identificar os milhafres e o nome pegou. Outros contrapõem que, naquela época, no século XV, seria impossível fazer uma confusão destas e, portanto, o erro na identificação não poderia ter acontecido. Para mais, os milhafres, dado o seu limitado raio de ação, teriam grandes dificuldades em chegar aos Açores. Pensando bem, é realmente estranho que não haja milhafres nas ilhas do grupo Ocidental. Ou seja, como explicar que estas aves tenham conseguido chegar do Continente Europeu até aqui e não tenham conseguido dar um salto, muito mais pequeno, até às Flores e ao Corvo. Se podemos explicar a sua inexistência no Corvo por ausência de uma superfície útil suficiente para o seu abrigo e alimentação, o mesmo não se aplica às Flores. Resumindo, os milhafres dos Açores podem ter sido introduzidos por mão humana já em tempos mais recentes.
Muitos defendem que o nome se deve à localidade de Açores, no continente, de onde alguns dos descobridores de Santa Maria teriam sido originários ou pela devoção de Gonçalo Velho Cabral a Nossa Senhora dos Açores. Uma outra corrente alternativa defende que os Açores devem o seu nome à expressão genovesa Azzurre, dado o tom azulado das ilhas. Apesar de não me agradar, até porque não vejo as ilhas em tons de azuis, esta teoria tem ganho adeptos de peso ultimamente.
Faço esta introdução para agora expor uma outra teoria que foi defendida por um amigo cientista. Segundo o Dr. Paulo Alexandre Monteiro, é possível que os Açores devam o seu nome aos… açores! É verdade! Há registos de escritos precoces assinalando exportação de açores para o Continente.
Admitindo esta hipótese como boa, então onde estão os açores dos Açores? Para onde foram? Esta, quanto a mim, é a parte mais frágil da teoria que partilho. É possível que os açores dos Açores tenham, ao longo da sua adaptação a este território, perdido a sua capacidade de fugir de predadores ou competidores, por não os terem. Assim sendo, quando os primeiros povoadores aqui chegaram, tê-los-ão apanhado em grandes quantidades e exportado para o Continente (daí os tais registos que referi atrás). Capturaram, usaram e exportaram até à extinção final. Será? Os lobos-marinhos de Santa Maria tiveram esse triste fim.
Penso que esta questão apenas ficará definitivamente resolvida quando se encontrarem registos fósseis que nos indiquem que aves de rapina existiam historicamente nos Açores, se é que alguma cá existia… É também por essa razão que vejo com enorme agrado a 9ª expedição paleontológica que decorreu na ilha de Santa Maria nos últimos dias. É pela insistência, por vezes mal compreendida, de investigadores como o Doutor Sérgio Ávila, que vamos preenchendo o fabuloso puzzle da construção biológica das nossas ilhas.
Olho para os resultados de cada expedição e fico com enorme curiosidade sobre o futuro. A extraordinária aventura do conhecimento dá-nos respostas positivamente contaminadas com mais perguntas…. Que novidades haverá este ano? A expedição já terminou e aguarda-se o estudo completo do material recolhido e dos registos efetuados para dar mais um passo em direção ao conhecimento. Quem sabe se será este ano que ficaremos a saber se alguma vez houve açores nos Açores?

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Estação Molhada

Azáfama dos preparativos para a partida da
III Travessia do Canal Faial-Pico em embarcações de materiais reutilizados.
Foto: F Cardigos

Desde que me lembro que os anos, para mim, se dividem em duas partes. Sim, eu sei que para a maioria das pessoas têm quatro (as Estações do Ano), mas eu sou mais simples e, portanto, para mim, há apenas duas: a estação seca e a estação molhada. Na estação seca há tempestades, o mar está revolto, faz frio e não podemos ir para o mar. A estação molhada é quando podemos interagir com o gigante azul!
Porque este ano o verão chegou mais tarde, a minha estação seca (alusão à “lei seca”, porque o meu vício é o mar) foi longa. Já nem sabia se sabia nadar em água salgada… Felizmente, neste final de semana, tudo mudou.
Fui convidado pela APEDA para colaborar com a organização da III grande travessia do Canal Faial-Pico em embarcações construídas em materiais reutilizados. Apesar dos poucos concorrentes, foi mais um evento coroado de sucesso. As três equipas vencedoras estiveram em bom plano, revelando imaginação, empenho e sentido ambientalista. Para mim, pessoalmente, este evento marcou o início da estação molhada. A roupa salgada e um irresponsável escaldão na cara são as provas da mudança.
No dia seguinte, graças à solidariedade de um colega e à colaboração de uma das empresas de cima do cais da Horta, que rapidamente conseguiu disponibilizar duas garrafas de mergulho, pude consumar o ato e submergir. Agora sei, os peixes continuam ao largo de Castelo Branco do Faial, como pude verificar em detalhe. Havia alguma ondulação e a correspondente suspensão, mas foi maravilhoso.
Depois de devidamente motivado pelo Sr. Mário Frayão, com quem fiz uma visita de reconhecimento prévia, ao final da tarde, corri até ao topo do Monte Carneiro e fiquei deslumbrado com a vista. Parabéns à Junta de Freguesia da Matriz e parabéns à Câmara Municipal da Horta pela intervenção. É um espaço que nos esmaga pela beleza da vista e não é beliscado, tal a simplicidade e a oportunidade da intervenção. É dos melhores miradouros em que já estive.
Agora, ao final do terceiro dia da estação molhada, estou a escrever rapidamente este artigo, até para não irritar a editora-chefe deste jornal, e a preparar o equipamento para partir em direção ao Banco D. João de Castro. Este sítio classificado como Rede Natura 2000, como Área Marinha Protegida através da Convenção OSPAR e como Reserva Natural do Parque Marinho dos Açores, caso tudo corra conforme planeado, talvez permita a nossa visita já amanhã.
O Banco D. João de Castro é o único sítio em que já tive de cancelar operações subaquáticas porque os meus colaboradores (eu não…) não se conseguiam concentrar, tal o nível de deslumbramento. Entre jamantas, cardumes infindáveis de diversas espécies de pequenos pelágicos e o vulcanismo ativo, tudo contribuiu nesse momento para pouco ou nada fazermos. Era, de facto, bom demais. Amanhã, muito limitados pelo tempo, teremos de nos abstrair do que nos rodear e efetuar os trabalhos de monitorização e recolhas que estão definidos.

E assim passa comprovadamente mais um ano. O ciclo completa-se e repete-se. O colorido é todo o inesperado que preenche o tempo e o mar, associado ao saber que se acumula, e é mais um conjunto de magníficas experiências e estórias que contaremos a quem nos quiser ouvir.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Planeando o uso do mar em Malahide

Malahide, na Irlanda, é conhecida pelo seu histórico relacionamento com o mar.
Foto: F Cardigos


Estava um turista a passear na Jamaica quando percebeu que, provavelmente, já teria andado demais. Sentindo-se perdido, abeirou-se da primeira pessoa que encontrou e perguntou-lhe como poderia voltar ao povoado mais próximo. Tratava-se de um idoso de “boa onda”, com aquele olhar calmo que apenas as pessoas nas Caraíbas podem ter. Olhou para o turista, olhou para a estrada, lentamente, pensou, voltou a olhar para o turista e, depois, para a estrada. Pensou mais um pouco e, finalmente, respondeu pachorrentamente com um olhar um pouco vago e nada interessado: “Sabe, provavelmente, este não é o melhor sítio para começar…”.
Foi desta forma humorística que o chairman do workshop da Comissão Europeia sobre planeamento espacial marítimo dedicado à energia, que decorreu recentemente em Malahide, na Irlanda, começou a explicar como se podem adiar as decisões por falta de informação. No entanto, entre entidades responsáveis, esta não é a forma de proceder. Com a pouca informação disponível têm de ser tomadas decisões, incluindo a decisão de não fazer, que “é uma opção legítima e que muitas vezes os planeadores esquecem”.
Num mundo pejado de decisões que, mais do que motivadas pelas necessidades e desejos das populações, estão muitas vezes alicerçadas na vontade de obter visibilidades fáceis ou protagonismos excessivos, cada vez mais o cidadão comum exige calma, contenção e moderação. Se até há pouco tempo a fatura das “obras de regime” parecia plausível, até por haver um deficit estrutural, hoje, a generalidade das pessoas já começa a exigir saber quem é que vai pagar o investimento e quem é que vai pagar a manutenção dos novos equipamentos. É bom que assim seja e os planeadores da nova geração terão que ter isso em consideração. Não basta imaginar que um determinado equipamento ficaria bem, é necessário saber quem vai pagar, quem vai usar e quem vai manter o funcionamento. Sem estas três questões claramente respondidas e de forma justa, penso que o refrear do investimento se impõe.
Há uns dias atrás, ouvi um pensador português a afirmar que tínhamos urgentemente de passar da lógica do “consumo” para a lógica da “suficiência”. Cada um, defendia ele, tem que se perguntar a si próprio o que lhe é suficiente e lutar por isso, mas refrear a ambição de ter o carro último modelo ou o gadget da moda. “O mundo não aguenta mais consumo!”.
Em Malahide, tentaram encontrar-se soluções para localizar no mar as novas unidades de produção energética que terão de substituir as centrais nucleares alemãs e francesas. Os planeadores estão atentos, têm soluções, mas estas têm que estar associadas a uma redução efetiva no consumo de eletricidade na Europa. Estaremos prontos para o fazer?
Para terminar realço dois outros papéis que poderão, no futuro, caber particularmente aos Açores no domínio da energia, são eles o sequestro de Carbono (por captura em algas ou afundamento no mar profundo) e a produção de hidrogénio em unidades off-shore. É uma realidade distante, quem sabe uma visão ou mesmo um delírio, mas é de pensamentos arrojados e libertos, associados a planeamento e trabalho, que se constroem sociedades mais justas e avançadas.

Cada um de nós terá o seu papel neste esforço conjunto. Temos de verificar onde estão os nossos excessos e conter. Temos de verificar em que podemos contribuir e esforçar-nos. Não está ao virar da esquina, mas vem aí um admirável mundo novo e, tal como aconteceu em relação à gestão de resíduos em 2006, sinto-me honrado por estar a participar em mais esta mudança de paradigma.