quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Voo do Cagarro - 15: Contrastes transatlânticos

Museu da baleação de New Bedford, um local a visitar!
Foto: F Cardigos


Depois de ter estado numa enorme fila para um teste covid, esperava os resultados olhando para as pessoas que, por sua vez, aguardavam agora para ser atendidas. Detalho que estas pessoas que pretendiam ser testadas, tal como eu antes, tinham estado à espera durante quatro horas em pé até este momento.

Foi então que o rececionista do laboratório afirmou perentoriamente, “São 16:30. Acabou. Já não recebemos mais ninguém hoje. Podem voltar amanhã a partir das oito horas.” O desalento foi enorme, como poderão imaginar… Depois de terem estado horas à espera, estas pessoas teriam, simplesmente, de desistir. 

Acontece que a primeira a pessoa a não ser atendida era uma jovem nitidamente grávida. Pensei para mim próprio como era possível aquilo ter acontecido?! Como era possível ter-se permitido que uma grávida tivesse estado quatro horas à espera e, acima disso, como era possível agora, a ela e à criança que transportava no ventre, negar-lhes o acesso a um teste que monitorizava, precisamente, a saúde dos dois. As lágrimas escorriam-lhe pela face… Mas nem isso nem os protestos indignados dos observadores demoveram o rececionista. Com o olhar frio de quem dá ordens num campo de concentração, afirmou sem vacilar, “Estou a cumprir a minha função. Se não gostam podem protestar junto do meu patrão. Não podem esperar aqui. Amanhã às oito horas.”

O que acabo de descrever aconteceu, mas, obviamente, não aconteceu em Portugal. Em Portugal jamais admitiríamos que uma pessoa grávida aguardasse durante horas numa fila e jamais lhe seriam negados cuidados de saúde acessíveis, em que circunstância fosse. Podendo ser prestado, este serviço jamais seria negado a uma grávida, a uma criança, a um idoso ou a um cidadão portador de deficiência. Não acontecia.

Dois dias antes, à noite, no bar do hotel onde me alojara, um homem que não conheço mete conversa comigo e com um amigo. Na galhofa, chegámos à conclusão que havíamos todos estudado ciências e a conversa diverge para os percursos profissionais contrastados que fizemos partindo de uma base razoavelmente parecida. A troca de impressões flui generosa e simpática, com piadas e risos.

A certo ponto, o nosso interlocutor diz “sei que os Genesis estão a dar o último concerto da sua careira aqui na cidade. Querem ir?”. Pergunto-me quanta sorte é preciso ter para que nos façam uma proposta deste género?! Obviamente, quero ir, mas, infelizmente, não posso. “Como eles já começaram, não são 220 dólares, mas sim 70.”, reforça o nosso novo amigo. Quase estonteado, penso para mim próprio que me estão a oferecer a possibilidade de ouvir um dos últimos concertos, senão o último concerto, de uma das bandas mega conhecidas da minha geração e eu vou ter que dizer não. Tenho que declinar porque, apesar de serem apenas cerca de 60 euros, continua a ser muito dinheiro, e porque não estou neste país de férias, o que implica que, no dia seguinte, terei de ir trabalhar pela manhã. Mas o que retenho é a simpatia desta pessoa que não conheço de lado nenhum e nos oferece, a mim e ao meu amigo, a possibilidade de o acompanhar numa noite que adivinho ter sido memorável.

Não contente em ter acabado de ter sido tremendamente generoso e mal correspondido, o nosso interlocutor, para quebrar o gelo da nossa recusa, ainda profere, “Sem preocupações, dudes. Eu gosto de ir a estas coisas sozinho e tornar momentos de solidão em novas e inesperadas amizades”.

As duas histórias que descrevi atrás aconteceram nos Estados Unidos da América com poucos dias de intervalo. Há poucas culturas tão contrastadas como a norte-americana. Neste país, sistematicamente, consegue-se encontrar o melhor e o pior do mundo e da alma humana a três dedos de distância. Tanto temos um super-herói a salvar a situação como temos um vilão a dar-nos pontapés quando já estamos no chão. Num momento temos uma marcha pela paz e, em paralelo, há uma manifestação a favor da liberdade de usar armas. Num momento estão a descobrir novos planetas por essa Via Láctea fora e, no mesmíssimo momento, estão a abandonar o Afeganistão desiludindo e condenando todos a quem deram esperanças de liberdade e felicidade.

Claro que a pergunta que resta é qual o melhor… O nosso país de brandos costumes, quantas vezes complacente com o inimaginável, ou um país de nervos à flor da pele, como é a terra do Tio Sam? O melhor mesmo era um país com o nosso bom senso e a nossa ponderação a que juntasse o magnífico otimismo e a enorme proatividade dos Estados Unidos da América. Será que existe?


sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Voo do Cagarro - 14: Em África

 
Um "Hotel Central".
Foto: F Cardigos


Quis o destino que passasse por vários países africanos em pouco tempo. A quantidade e a variedade de sentimentos e sensações são demasiado vastos para conseguir sistematizar ou alegar qualquer autoridade sobre esta geografia, mas aqui ficam algumas pinceladas iniciais.

Em África o contraste social é estonteante. São visíveis a riqueza e a opulência da elite financeira e dirigente. A classe média também tem recursos suficientes para viver bem. Em contraste, há muitas pessoas pobres, muito pobres mesmo, e esta classe representa a esmagadora maioria da população em qualquer dos países que visitei.

Entre os pobres, há os que nada têm e os que, apesar de tudo, vão, com muito esforço, ganhando um dia e o próximo e arranjam o suficiente para alimentar a sua família. Quando digo muito esforço é mesmo, mesmo muito esforço para ganhar muito pouco. O rendimento per capita mensal médio de um dos países que visitei é de 30 euros. Um euro por dia. Quem de nós se imagina a viver nestas circunstâncias?

Apesar disso, apesar de ser mesmo muito difícil, eu vi famílias a lutarem e a conseguirem que os seus filhos continuem a ir à escola. Com um resto de uniforme e uma gravata cheia de nódoas, mas iam! E diziam que era importante e que tinham de ir aprender com os professores.

O nível de empreendedorismo em África é extraordinário. Há lojas, lojecas e banquinhas onde se vende de tudo, desde fruta ao sumo de rua, passando pelas peças para automóveis. Uma placa dizia que se Jesus Cristo voltasse à Terra era ali, naquela barbearia, que cortaria o cabelo. Uma pequena casa muito longe de estar terminada exibia as duas estrelas do Hotel Central de uma cidade do interior. Basta um guarda-sol e um banco e está feita a loja onde jovens vendem saldo para o telemóvel. E estão e continuam na luta, enchendo de vergonha as nossas preguiçosas depressões ocidentais.

E dançam e cantam. Batem palmas e exibem os corpos com um extraordinário sorriso rasgado e orgulhoso. Tocam maravilhosamente, pintam com cores garridas, cheias de laranjas, verdes e azuis. Sabem esculpir peças que explicam o mundo como é visto pelos seus olhos e dissertam entusiasticamente sobre o seu significado. Pegam em lixo e transformam em arte que, em muitos casos, exibiria na minha casa com prazer.

Deixem a paz instalar-se em África e este continente vai desabrochar de imediato. As pessoas aqui sabem lutar, têm imaginação, têm garra e estão sedentos de vida. A compreensão da importância da educação, o respeito pelo ambiente e a diversidade cultural são os pilares que me dão alguma segurança ao afirmar que África tem futuro!

Depois há as pessoas em situação paupérrima…

Ao final do dia, já lusco-fusco, apeteceu-me ir dar uma volta até ao bar mais próximo do hotel. O local escolhido, onde se podia beber uma cerveja e conversar, ficava a um quarteirão de distância. Saí, andei um pouco e, mesmo antes de entrar, fui abordado por um jovem que me disse “dá-me dinheiro para comer. Quero ir comprar uma pizza. Por favor, faço qualquer coisa. Não te vou roubar, dá-me apenas dinheiro para comer.”. Olhei para ele e vi o “estalo” da cola nos olhos avermelhados. Estava completamente passado... Que raio?! Que dizer nestas circunstâncias?

Entrei no bar e, como já não estavam a servir (covid oblige), tive que regressar pelo mesmo caminho. O jovem, sem me tocar, aproximou-se novamente muito mais do que me parecia razoável e repetiu o apelo. Ao longe vi mais uma dezena de outros jovens igualmente indigentes e, possivelmente, também sob o efeito de drogas.

Sabia que, neste percurso altamente vigiado por polícias e seguranças privados, estava seguro, mas, caso me tivesse aventurado um centímetro para fora desta cordilheira teria sido certamente roubado. E não seria a coisa certa? Claro que não, mas porque é que eu tenho o direito a comer três refeições por dia e aquelas crianças grandes têm de andar de roupa esfarelada por sujidade e porcaria, suplicando por um improvável pão?! Em vez de estrem no liceu ou na universidade, esquecem-se de si próprios refugiando-se em drogas e sabe-se lá em que mais. Não está certo. Não está certo!

À minha frente estavam seres humanos em desespero e eu atrevi-me a pensar que o problema era a limitação da minha liberdade de movimentos, aquela que me permite sair de casa a qualquer hora do dia em Lisboa ou outra cidade ocidental. O contraste norte-sul e a extrema injustiça social entraram-me pelos olhos dentro. Algo terá de ser feito. Assim não pode ser. Assim, não nos admiremos que haja cada vez mais migrantes a arriscar atravessar o Mediterrâneo mesmo que as probabilidades de sobrevivência sejam baixas.

Penso no que faria se estivesse nas circunstâncias destes jovens. Que faria se me doesse a barriga de fome e se tivesse consciência que, do dia a seguir, o máximo que podia esperar era que a dor fosse menor, já que a esperança era nula?


sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Voo do Cagarro - 13: Os negacionistas

 

Vacina!
Foto: F Cardigos


Ainda antes da pandemia de covid-19 já havia algumas pessoas anti-vacinas. Umas por razões religiosas, outras por não acreditarem na ciência e outras por considerarem que o risco não compensa. A este grupo de pessoas chama-se, habitualmente, “os negacionistas”.

Acontece que, com muitas vacinas, não se pretende apenas limitar a probabilidade de apanhar uma determinada doença, mas também evitar que ela se propague. A vacina para o tétano evita contrair uma doença, mas a vacina contra a varíola, enquanto existiu, pretendeu e conseguiu evitar a propagação da doença até à sua erradicação. A varíola, uma terrível doença, deixou de existir porque houve uma ação global de vacinação bem-sucedida. Tal como aconteceu com a varíola, também a peste bovina, neste caso uma doença animal, desapareceu vítima das vacinas.

Ou seja, ao tomar uma vacina, para além de me estar a proteger, eu estou a proteger a minha comunidade. É por estas razões que, por muito que custe a alguns religiosos, negacionistas ou egoístas, a verdade é que há um programa nacional de vacinação que inclui diversas vacinas obrigatórias.

As pessoas que tentam recusar as vacinas por causa do risco têm razão num ponto: ao tomar uma vacina, eu estou a arriscar de forma infinitesimal a minha saúde. Mas esquecem-se que, ao mesmo tempo, ao tomar uma vacina, eu estou a proteger toda a comunidade. Ao recusar algumas vacinas coloca-se em risco a saúde individual de forma igualmente infinitesimal (beneficiando da proteção que me é dada por haver uma maioria da população vacinada) e coloco todos os outros em risco.

Graças a existir uma enorme maioria de seres humanos sensatos, há doenças muitíssimo perigosas que praticamente desapareceram. Assim, não espanta que, entre as nossas obrigações sociais, as vacinas tenham uma relevância particular. Socialmente, há algumas coisas que são obrigatórias e estão prescritas na lei e de uma forma razoavelmente universal: dar acesso à educação aos jovens, pagar impostos e cumprir o respetivo programa nacional de vacinação.

O vírus presente na mais recente pandemia pode ser letal, propaga-se rapidamente e muta com facilidade. Ou seja, apenas se vacinarmos rapidamente uma elevada proporção da comunidade global poderemos deter o vírus.

Portugal é um bom aluno e estamos a usufruir disso, mas pouco poderemos resistir se o resto do mundo não fizer o seu trabalho. O vírus irá mutar e voltará a entrar no nosso país com outro código genético, capaz de escapar à eficiência das vacinas atuais. Isto significa que é crucial que o resto do mundo faça a sua parte, vacinando a esmagadora maioria da população.

Admito que estou muito cansado de usar máscara, limitar a minha mobilidade e manter o distanciamento social por causa da pandemia. Angustia-me ver os negócios, como restaurantes, cafés, hotéis e transportes a falir. Aflige-me ver os artistas a desesperarem e a nossa cultura a ficar mais pobre e fechada. Sofro com o cansaço do nosso pessoal de saúde. Ficava muito mais feliz se isto acabasse. Aposto que, como eu, quase todos nós pensamos o mesmo.

Levar uma pica não é assim tão complicado e protege-nos a todos. Há que explicar isso aos negacionistas por essa Europa fora.


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Voo do Cagarro - 12: A Boa Disposição

"Veja só, este cara anda no meio do mar a ver peixinho!"
Foto: F Cardigos
 

Advertência: neste artigo escrevo palavras de forma distorcida para tentar captar os belíssimos sotaques brasileiros dos meus interlocutores. As minhas desculpas aos puristas da língua portuguesa escrita.

Fui cortar o cabelo. Nada de especial até aqui. 

Ao entrar, notei que os dois barbeiros de serviço estavam animados. Falavam um com o outro e com um cliente que terminava o corte. Comentando o acidente de avião que, infelizmente, levou a vida da cantora nordestina Marília Mendonça, listavam as celebridades brasileiras que morreram em acidentes de avião. Apesar de o tema ser sério, tentavam realçar as virtudes de cada uma das pessoas, quase como se fosse uma homenagem da vida.

“Como cê quére o corrte?”. “O senhor é o artista, esteja à vontade”. “Mas querr voltá cá daqui a um meis ou só no Natau? É melhore antis ou então vai terr de trazer prenda, né?”

Não entendi porquê, mas a conversa derivou para o roubo de fruta. “Ó ménino qui r
ouba fruta não é ladrão. Ous ménino podem tirar fruta do quintau do vizinho. Não é roubo, não. Nem é probrema.” Ao que o meu barbeiro acrescentou, “excepetô se cê é o vizinho, né?” Riram-se ambos sem contenção e eu fui atrás.

Ao entrar um novo cliente, loiro como o ouro do El Dorado e olhos de azul céu, o barbeiro número dois diz “Welcómi, Sari”. A resposta num português escorreito, “Boa tarde.”, deixou-o desconcertado, mas não o meu barbeiro, que brincou de imediato, acentuando o sotaque: “Ingrêis perrfeito, mas inútiu. Totaumente inútiu. Tanta educação irrelêvante. Nou use!”. “Valeu à tentativa, mê ‘rmão”, tentou ripostar o outro.

No meio da conversa que estava a ter comigo, o meu barbeiro grita para o outro “Veja só, este cara anda no meio do mar a ver peixinho!”. Já tinha ouvido muitas descrições simplificadas para biólogo marinho, mas esta foi particularmente carinhosa. O outro respondeu “Nossa, isso deve ser mesmo boummm! O oceano é tão grande, não deve ter falta de trabalho!”.

Os jovens brasileiros estão a ocupar os empregos privados de serviço direto ao cliente em Lisboa. Ao entrar num qualquer café, tenho a sensação que é mais fácil encontrar um brasileiro do que um português. Talvez esteja a exagerar, mas a probabilidade de ouvir um sotaque português do outro lado do Atlântico é tão elevada que já fico com a dúvida. É um indicador.

Obviamente, isso acontece porque os brasileiros e as brasileiras estão dispostos a desempenhar essas funções pelo pagamento que está a ser oferecido e, na minha opinião, é também pela boa onda que transmitem. Hoje, no barbeiro, senti-me mesmo bem.

Ao terminar o corte, pergunto “ficou bom?”. Um deles diz: “Pô! Com esse cabelo, ninguém lhe pega. Nem a NASA!” e o outro complementa: “A Dona Rute [quem será a D. Rute, pergunto-me] nem vai deixá cê saíre di casa”. Já não sei qual deles, “Uhau, me queimei. Cê tá fogo!”, “Cara, vamos saí daqui k’isto vai encher de pretendente” e continuaram…


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Voo do Cagarro - 11: Sobre sobremesas

Enxarcada de ovos em Grâdola.
Foto: F Cardigos
 

Se tivesse que fazer uma lista de cidades que mais gosto, haveria imensas abordagens possíveis. As mais sérias, relacionadas com os direitos humanos, o ambiente e o património, ou as mais ligeiras, como as relacionadas com o humor ou a gastronomia. Para a descontração deste artigo, irei abordar pelo ponto de vista da doçaria de sobremesa.

Não posso dizer que conheça “muito mundo”, mas, do que vi por aí fora, não há melhor doçaria que em Portugal. Um amigo observou, com pertinência, que o meu gosto é condicionado pela minha vivência e, por essa razão, tendo a preferir o que está mais perto. Apesar de compreender o ponto de vista, a verdade é que, muitas vezes, ao falar com estrangeiros, os nossos doces são amplamente elogiados. E não são apenas os pastéis de nata ou a sua variante alfacinha de Belém.

Enfim, seja por razões culturais egocêntricas ou por ser realmente verdade, para mim, a doçaria portuguesa é a melhor do universo! Portanto, não venham com donuts ou tiramisus. Mesmo as bolas de Berlim, que não é um doce português, ganham outro sabor quando são cozinhadas numa pastelaria de Lisboa e comidas com um leite com chocolate UCAL morno ou, em Faro, em que o doce de ovos é particularmente saboroso.

Como aprendi num programa de rádio, a doçaria portuguesa foi bafejada pela sorte. Há uns séculos atrás, as religiosas precisavam de usar a clara do ovo para engomar as toucas ou era exportada e usada como purificador na produção de vinho branco. Restava a gema. Com o excesso de gemas e muita mão de obra disponível nos conventos, a doçaria nasceu e proliferou. Com ela, os papos-de-anjo, as barrigas-de-freira e tantos outros. Tão bom! A doçaria conventual portuguesa devia ser património da humanidade.

A cidade de Aveiro tem uma cultura e uma beleza sem par. No entanto, quando a maioria dos portugueses pensa em Aveiro, a primeira coisa que lhe vem à cabeça são… os ovos moles! Ou seja, os milhares de anos de história, as glórias dos antepassados ou a biodiversidade e riqueza da ria, tudo fica esbatido pela doçaria.

Há mesmo algumas povoações que não têm existência na memória coletiva para além dos doces. Com honestidade, quem sabe alguma coisa sobre a história milenar de Tentúgal para além dos seus pastéis? E valem mesmo a pena, tal como o património edificado daquela vila.

A cidade de Abrantes, deu uma nova dimensão à palha. No entanto, nessa zona, as tigeladas do Pego são maravilhosas. É interessante que as tigeladas de Lisboa sejam massudas e quase desagradáveis e as do Pego, com uma base suavemente rendilhada, são tão delicadas. Até parecem doces diferentes.

No Funchal, o bolo de mel é uma iguaria sui generis que vai muito além do seu sabor. Fui beneficiado pela forma como as famílias madeirenses se reúnem anualmente para fazer este doce e, depois, enviam pelo correio aos seus familiares distantes ou amigos.

Dificilmente consigo eleger um doce favorito ou uma cidade vencedora. Muitos dirão que os pastéis de nata, até pela visibilidade internacional que têm, deveriam obter esse título. Mas porque não os doces alentejanos? A sericaia, o tecolameco, lampreia-de-ovos ou, o meu favorito no Alentejo, a encharcada-de-ovos. Uma listagem aponta para 84 doces diferentes apenas no Alentejo.

No caso dos Açores, as queijadas da Graciosa, as queijadas da Vila, de São Miguel, ou as donas-Amélias, da Terceira, são, eventualmente, os pontos mais altos. No entanto, nada como o mistério do pudim não-sei da Horta. Lá está… pode ser a minha vivência a falar, mas um colchão-de-noiva à moda do Faial e um café é uma excelente forma de terminar uma boa refeição.


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Voo do Cagarro - 10: Os não eleitos da noite eleitoral

 


Em Portugal, o voto e a contagem dos votos continuam a ser manuais. O voto eletrónico ainda não está implementado no nosso país. Este instrumento, que facilitaria o voto antecipado ou remoto, tem dezenas de anos de atraso. Uma ineficácia que contribui para a abstenção.

Apesar disso, desde o 25 de Abril, as noites de eleições tendem a ser, progressivamente, mais curtas. A sistematização dos procedimentos e a comunicação fluída e segura ajudam a determinar e difundir os resultados rapidamente. Hoje, com uma ligação internet, qualquer pessoa consegue tirar as suas próprias conclusões sobre a noite eleitoral na própria noite eleitoral.

Nestas eleições autárquicas de 2021, curiosamente, a proximidade eleitoral de alguns dos candidatos fez com que a noite eleitoral se prolongasse. Eram quase duas da manhã quando os últimos votos foram contados, os resultados fechados em Lisboa e, desta foram, ficaram desfeitos os últimos mistérios.

Admito que me dá um certo prazer ouvir as primeiras sondagens e, ao longo da noite, ir vendo os resultados a aparecer, uns a confirmarem-se e outros a afastarem-se do prognóstico. No meu caso pessoal, não me emociono com os comentários dos especialistas que são convidados pelos órgãos de comunicação social, mas oiço atentamente as reações dos candidatos. Os que ganham e os que perdem, têm ambos muitas vezes pontos importantes a referir.

Passado todo este ritual, que coincide com o momento em que redijo estas linhas, todos podemos agora descansar, certos de que a dinâmica democrática continuou a funcionar. Amanhã, os vencedores começarão as formar as alianças e as equipas que lhes permitirão governar as autarquias e cumprir os programas eleitorais que sufragaram.

Saliento que, para a democracia funcionar, tem de haver, pelo menos, tantas pessoas que perdem como as que ganham. Tipicamente, o número de não eleitos é muito, mas muito maior do que o dos eleitos. Ou seja, perder é absolutamente natural e não há qualquer drama nisso. Mesmo entre os eleitos, há muitos que não terão funções atribuídas, dado integrarem listas vencidas. Um dos aspectos que poderá ser alvo de uma melhoria da democracia seria a identificação de como se poderiam aproveitar ainda melhor a energia e a disponibilidade dos não eleitos e dos eleitos por partidos não vencedores.

Numa recente ação de limpeza costeira, tomei conhecimento da atribuição de responsabilidades na manutenção de uma área a uma organização não governamental. Ou seja, em vez de ser o Estado ou a autarquia a preocuparem-se com o bom estado ambiental de cerca de meio quilómetro quadrado da orla costeira, essa responsabilidade estava protocolarmente atribuída a terceiros. Consigo imaginar uma declinação de muitas pequenas responsabilidades autárquicas por entre os vencidos. Por exemplo, um dos não eleitos ficaria responsável por acompanhar a ação do Clube Naval e reportar na assembleia municipal regularmente. Fará sentido? Se fizer, os eleitos fariam uma lista das tarefas potenciais e os não eleitos ou eleitos por listas não vencedoras assumiam voluntariamente e responsavelmente as que lhes parecessem mais interessantes ou prementes.

Ou seja, parabéns aos vencedores, os cidadãos, como eu, contam com o vosso bom trabalho, mas lembrem-se que todos são importantes para a construção de um mundo melhor. E o mundo está a precisar…

Por último, quero deixar uma palavra de agradecimento a todos os que trabalham voluntariamente nas secções de voto. São elementos essenciais e, muitos deles, nada mais pretendem do que ajudar a democracia a funcionar, prescindindo, para isso, de um dia de descanso. A eles, o meu obrigado!


sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Voo do Cagarro - 9: Observando aves

Um dos observatórios do EVOA
Por Frederico Cardigos
 

Desafiado por um amigo que percebe realmente da temática, fui ver aves para o Estuário do Tejo neste último domingo. Segundo ele (eu não saberia identificar), observámos quase quatro dezenas de espécies de aves. Para além das aves, também vimos muitas espécies de plantas, claro, diversos artrópodes (incluindo insetos) e um réptil. Foi um final de tarde muito instrutivo.

O sítio que explorámos está entre a paisagem agrícola, a lezíria, e um conjunto de lagos, curiosamente construídos pela mão humana para servir de abrigo às aves e ponto de observação. Esta interface entre os dois mundos resulta em pleno e, para melhor a rentabilizar, foi construído um centro de interpretação, denominado EVOA (acrónimo de “Espaço de Visitação e Observação de Aves”), e diversas vias de exploração pedestre.

Para chegar ao EVOA é necessário percorrer uma dezena de quilómetros em estrada de terra batida. Ou seja, está isolado das perturbações sonoras mais evidentes, como a indústria ou os automóveis. Aqui podemos ouvir a natureza. No centro, para além de pagar a entrada, podemos adquirir guias e a parafernália típica dos ornitólogos (guias, binóculos, etc.) ou simplesmente consumir uma bebida no bar.

Os percursos que partem do EVOA prolongam-se por diversos quilómetros e, nos locais mais adequados para a observação de aves, existem observatórios. Para meu desgosto, que adoro a noite, o centro encerra às 19 horas, o que impede de ver e ouvir a fauna noturna. Talvez este seja o único ponto negativo do EVOA.

Nos Açores há diversos locais esplêndidos para a observação de aves e muitos deles já estão também equipados com observatórios. Na ilha do Corvo há mesmo um centro de interpretação dedicado à ornitologia e um centro de recuperação de aves selvagens.

Apesar de ser impossível ver dezenas de espécies de aves num dia, nos Açores há um conjunto muito particular e que agrupo da seguinte forma: as endémicas, as aves marinhas e as aves de arribação norte-americanas. As endémicas incluem o priolo de São Miguel, a estrelinha de Santa Maria e o priolo-de-Monteiro da Graciosa. Quem quiser observar estas aves ao vivo no seu habitat natural terá de se deslocar a estas ilhas. No mundo inteiro, não há outra hipótese.

Nas nossas ilhas há diversas espécies de aves marinhas. Algumas usam o nosso território para nidificar e, por isso, podem aqui ser facilmente observadas nessa época. Para além do cagarro, as diversas espécies de garajaus merecem particular referência. Podem ser observadas noutros locais, mas a concentração e o comportamento que exibem nos Açores têm paralelo em poucos locais.

Por último, as aves de arribação norte-americanas. Estas não existem na Europa e apenas chegam aos Açores nos dias de tempestade. São involuntariamente transportadas da América do Norte até ao nosso território e, para os ornitólogos, constituem uma rara e valiosa hipótese de ver espécies americanas em solo Europeu. Por ano, há umas dezenas de observações com estas características. Durante o inverno, ultimamente, estes turistas têm ocupado quase em pleno as unidades hoteleiras das Flores e Corvo.

Para os que, como eu, gostam de aves e da sua diversidade, mas não são apaixonados, podem ser razoavelmente indiferentes as observações que fazemos. Tenho uns quantos guias de aves nos quais vou assinalando as observações mais relevantes. Nada mais do que isso. No entanto, para os ornitólogos que hierarquizam o sucesso individual de acordo com o número de espécies diferentes observadas, é fundamental aceder aos locais onde podem acrescentar valor ao seu handicap. Para comparação, um clube de futebol com sucesso tem cerca de 100 mil sócios pagantes e o maior clube dos ornitólogos britânico, de nome Royal Society for the Protection of Birds, tem um 1,1 milhões. É muita gente…

Há aqui um nicho muito interessante e que os açorianos têm sabido cativar ao longo dos últimos anos. Mesmo para os não ornitólogos, garanto que passar um final de tarde em comunhão com a natureza e com a amigos a ver aves é um período muito bem passado!

 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Voo do Cagarro - 8: O entardecer bucólico na ilha do Corvo, Açores

Vista Sul na Ilha do Corvo, Açores.
Foto: F Cardigos 

Num destes dias, na ilha do Corvo, ao entardecer. Passeávamos sem destino, apenas contemplando as rochas que se emaranhavam na água salgada, quase parada, e como esta se fundia com o horizonte, lá muito ao fundo.

Por entre as rochas à beira-mar, encontrámos uma que nos permitiu sentar. Descalçámo-nos. Colocámos os pés dentro de água. Apenas os pés e os tornozelos. Sentimos a frescura da água como um ligeiro e suave arrepio. Simpático.

Passados alguns minutos, apareceram umas mujinhas (tainhas pequeninas). Depois de se ambientarem, digo eu, começaram a comer alguma coisa na nossa alva e muito urbana derme. Talvez peles mortas ou animalejos que não consegui ver constituíssem o repasto para os pequenos peixinhos…

Passado um pouco, talvez uns minutos, um minúsculo caboz agarrou-se ao tornozelo. Penso que estava a reivindicar a propriedade daquele membro invasor.

Nisto, um cardume de sarguetas passou fugindo como se fosse perseguido por um invisível predador. Passou novamente e voltou a passar, sempre perseguidos pelas forças da sua imaginação…

As mujinhas não se perturbavam minimamente com aquele stress sem sentido. Continuavam a nadar por entre os nossos pés, apenas embaladas pelo ir e vir da mareta. Comendo algo que eu não via.

Numa poça ao lado, longe dos nossos pés, uma moreia-preta fiscalizava os fundos, deambulando por entre as pedras. Penso que estava a tentar emboscar alguma presa cada vez que rodeava uma pedra, mas nada… Nadou, rodeou, parou, olhou, nadou mais… e acabou mesmo por desaparecer do nosso alcance visual, afundando em direção ao largo.

Continuámos na nossa cálida contemplação dos peixinhos alimentando-se e do caboz que continuava a reivindicar o seu reino.

Um camarão aproximou-se todo pimpão. Agitando as tenazes, foi verificando o limite dos pés, tentando encontrar alguma utilidade para os invasores, ou seja, nós. A descontração do artrópode foi tanta que chegou mesmo a subir para as nossas mãos.

A certo passo, tudo mudou.

As sarguetas puseram-se numa fuga ainda mais histérica, o caboz meteu-se dentro de um invisível buraco entre as rochas, o camarão contraiu o abdómen repentinamente deixando atrás um rasto de nada e as mujinhas simplesmente desapareceram.

Esperámos…

De forma escorregadia e insidiosa, mesmo sorrateiramente, um peixe-porco nadava de lado para poder chegar perto dos nossos pés. Fiquei surpreendido com a tenacidade e coragem deste peixe, mas foi Sol de pouca dura. Ao verificar que aos pés submersos correspondiam corpos de seres humanos, o peixe-porco entrou numa fuga ainda mais repentina que as sarguetas histéricas. Foi-se num salto olímpico que nos deixou boquiabertos!

Lentamente, voltaram as mujinhas, o caboz e as sarguetas correndo atrás de nada e em fuga de tudo. As mujinhas voltaram a alimentar-se daquilo que adivinhavam existir sobre a nossa pele, o que nos fazia sentir qualquer coisa tão leve como uma pena a poisar suavemente num entardecer bucólico na ilha do Corvo…

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Voo do Cagarro - 7: Investindo no Vento Norte

Quebra-mar de Angeiras, freguesia da Lavra.
Foto: F Cardigos
 

Sou um adepto fervoroso de todos os que transformam entraves em oportunidades. Admiro a versatilidade de pensamento, o engenho de saber fazer de quem pega num problema e o veste de solução e as ganas de quem não se fica e parte à conquista!

Em Angeiras, freguesia de Matosinhos, o vento norte condicionou durante séculos a saída dos pescadores para o mar. Durante 120 dias por ano, por norma, estes pescadores não se faziam ao mar dadas as condições meteorológicas. Muitos dos que, mesmo assim, arriscaram terminaram de forma dramática numa pedra que, muito significativamente, se chama de “Come Gente”.

Como resolver o problema…? Os pescadores uniram-se, sensibilizaram quem de direito, e, com a apoio de verbas europeias e nacionais, construiu-se um molhe que agora trava a ondulação que cresce sob as ordens do vento norte.

Desde há uns meses, desde que o molhe está concluído, o pescado limítrofe, fresco e de qualidade, alimenta os restaurantes de Angeiras de forma constante. Ao mesmo tempo, graças às águas agora tranquilas que banham a praia, aumentou o fluxo e uso turístico. O vento norte deixou de ser um problema e nasceram várias oportunidades que sustentam uma comunidade antes frágil e, agora, mais pujante.

Viajei para Sul.

A zona mais ocidental do Barlavento Algarvio, quando comparada com o restante Algarve, está também condicionada pelas severas condições eólicas. De acordo com as descrições locais, o constante vento norte incomoda os turistas que procuram praia, sol e águas quentes.

É verdade. O vento norte transporta as águas aquecidas para o largo e fomenta a emersão das águas frias das zonas abissais. Ora acontece que essas águas frias estão também enriquecidas de nutrientes oriundos dos fundos marinhos. Ao chegarem às zonas mais superficiais, onde a intensa luz algarvia ilumina a coluna de água, estes nutrientes alimentam enormes quantidades de microalgas. É fácil comprovar este fenómeno observando a cor esverdeada das águas frias do Barlavento Algarvio.

“Quem conseguisse usar estas algas ficaria rico…” foi o que pensou um grupo de empreendedores. Auxiliados por cientistas, criaram um sistema de maternidade para “semente” de ameijoa em grande quantidade. As ameijoas recém-nascidas numa unidade especializada na Nazaré, a tal “semente”, são depois transportadas para o largo de Lagos, já na fronteira marinha com o concelho de Portimão, e depositadas em “lanternas” subaquáticas para crescimento. Aproveitando a riqueza em algas, estas ameijoas crescem a velocidades extraordinárias e estão prontas para entrar no mercado em pouco tempo. Provei-as cruas e são deliciosas.

Por ser impossível pescar na zona onde estão as “lanternas”, criou-se involuntariamente uma área marinha protegida. Este autêntico santuário ampliou a capacidade de reprodução e resiliência das espécies locais, providenciando exemplares em maior quantidade e tamanho nas zonas limítrofes. Os pescadores agradeceram.

E tudo por causa do “famigerado” vento norte…

Ainda em Lagos, um estaleiro local precisava de dar maior visibilidade ao seu negócio. Mas a presença soturna e perene do vento norte repelia potenciais utilizadores. A sina terminou no dia que conheceram a intenção de se organizar naquela cidade provas de GC32, os catamarãs voadores. Estes veleiros precisam de muito vento constante e previsível e isso Lagos tem demais!

Imediatamente acarinharam a ideia e hoje o estaleiro é utilizado por estes iates e outras embarcações de todo o mundo. “Quando o calado é demasiado alto para entrar na marina de Lagos, contratam-nos para irmos onde estiverem. Até de África já nos chamaram!” O bafo do vento norte não foi essencial para este estaleiro, mas a forma como o seu sopro impulsionou os catamarãs voadores nas regatas em Lagos emprestou-lhe a visibilidade que almejavam.

A isto se chama olhar os problemas de frente para os transformar em oportunidades. Possa o rigor de todas as formas de ventos de norte estimular a nossa imaginação e empreendedorismo.



sexta-feira, 23 de julho de 2021

Voo do Cagarro - 6: O Maravilhoso mundo das reticências…

 



Não concordo, pá. Já disse que não concordo!” reafirmava o meu colega cheio de certeza e, já num tom quase entusiasta, “Parece-me impensável que se usem reticências num relatório técnico.”. “Volto a dizer, denota incerteza, gera insegurança e transmite que o autor permite ao leitor interpretações. Se queremos transmitir uma mensagem, transmitimos. Não andamos ali às voltas a hesitar, a engonhar… Para mim, quem usar reticências, está riscado. Se puder, despeço-o! Processo-o!” Tinha, claramente, passado do entusiasmo ao delírio… “Se for um poeta, ainda vá, mas um técnico?! Nem pensar. É logo ali! Rua!

De facto, o uso de reticências na linguagem técnica tem que ser bem medida. Já na narrativa, é uma ferramenta auxiliar da escrita como outra qualquer. Da mesma forma que usamos a exclamação e a interrogação, para ilustrar entoações de voz, umas reticências dão sempre jeito.

Que o meu colega não oiça, mas eu admito que uso reticências com abundância e, muitas vezes, em conjunto com outros sinais de pontuação. No máximo, para ilustrar uma admiração confusa que perdura no tempo, lá coloco a combinação máxima “…!?”. Deve até ser ilegal!

Tudo isto vem a propósito de uma mensagem que recebi por email. Tinha pedido autorização para usar uma imagem e a resposta veio num enigmático “Negativo…”. Ora, ora… Lido à letra, não, é não.

Neste caso a resposta não era bem “não”, era “negativo” e acompanhado de umas reticências… Pedi autorização para usar uma imagem e o autor dá-me uma nega polvilhada de umas inconvenientes reticências… Seria um não condicional? Significariam aquelas reticências um jocoso “não querias mais nada!”. Como interpretar… Uso a imagem: negativo… Ora, ora… Aquelas reticências…

Acabo por perder a paciência e, entre ripostar ou não, decido não usar aquela imagem e vou à procura de uma outra que fique, pelo menos, perto da glória e do esplendor da primeira. Publico a segunda opção que acabo por encontrar no meu arquivo pessoal.

As reticências são, de facto, um alicerce perigoso.

Gosto de ti…”, lembro-me de uma paixoneta de juventude ter escrito a um amigo e o ter deixado possesso. Que queria ela dizer? Que gostava dele e… era apenas isso: amigos para sempre? Que gostava dele e estava desejosa que a convidasse para dançar no bailarico da aldeia?! Dúvidas…

Certo dia, um médico enviou-me uma mensagem depois de ter recebido e interpretado as minhas análises laboratoriais. Os resultados eram belíssimos e o médico, entre a pressa e a necessidade de me dar uma resposta, escreve um animado email: “Vais sobreviver mais uns tempos…”. Distante, em Bruxelas, sem acesso aos resultados, que aliás não saberia interpretar porque não sou médico, leio a mensagem e entro em pânico: “Vou morrer! O meu amigo médico está tão triste que nem me dá uma data, preferindo substituir por umas cruéis reticências.

Não, de facto, já passaram uns tempos valentes e ainda aqui estou.

As reticências sempre fizeram estragos. Quantas guerras terão começado à conta das reticências? Imagino Júlio César a escrever a Viriato hesitando no nome da taberna “Viriato, encontramo-nos naquele sítio…” O Viriato, não compreendendo o que significavam aquelas reticências, entendeu como uma ameaça e trouxe o seu exército. O resto é História. Não é verdade, mas podia, caso já se usassem reticências nos telegramas diplomáticos, os telegramas existissem e as reticências já fossem usadas.

As reticências são malandras.

Passados uns dias, o autor da magnífica imagem que não usei, telefona-me e diz-me “vi que não usaste a minha imagem, mas olha que a que publicaste não me parecia melhor”. Coriscos… Devia estar a gozar comigo… Respondo com calma e a deferência que a pessoa me merece. “Mas… O senhor disse-me que não”… Digo, tentando esquecer aquelas reticências que me azucrinam o cérebro desde então. “Eu disse que não?! Nem pensar”. Ora, ora…. “Perguntaste-me se me importava que usasses a imagem e eu respondi “negativo…” como quem diz “sem problema” ”.

Oh! Raio dos raios… Olhei tanto para as reticências, contemplei-as de tantas formas, que me esqueci de ler como tinha colocado a questão. As reticências perseguem-me!

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Voo do Cagarro - 5: Em Mértola

Rio Guadiana em Mértola.
Foto: F Cardigos
 

Muito provavelmente, já terei referido que um dos livros que mais me agradou ler foi o “Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde” escrito por Mário de Carvalho. A descrição dos ambientes romanos na Lusitânia sempre me fizeram sonhar, talvez porque se cruzem com a minha meninice do sul do Ribatejo. Os entardeceres pintalgados por um vento fraco, constante, cortante e quente, o coaxar de batráquios e os sons de insetos, a enorme luz e a ausência de vivalma são algumas das características que procuro em cada desejado regresso a estas paisagens, sejam elas no Ribatejo ou no Alentejo.

Neste quadro, Mértola é uma exceção. Dificilmente se pode esperar encontrar em
Mértola o sossego bucólico do Alentejo. Aqui, nesta vila, a dinâmica é dada pelo relevo, pelo rio e, principalmente, pela história.

A vila de Mértola acompanha um monte que sobe desde o rio Guadiana até que, no seu apogeu, se encontra com o castelo altaneiro. Nota-se que estamos longe das amplas planícies alentejanas. Aqui respira-se o vale do Guadiana.

Lá em baixo, o rio corre devagar, é certo, mas está permanentemente a ser utilizado por canoístas, banhistas, turistas, pescadores… Eu sei lá… Muita gente!

Há muitos anos atrás, ainda adolescente, desci este rio de semirrígido com familiares e a impressão com que fiquei foi bem diferente. Então, o rio sofria agressões de poluição constantes; agora vi peixes a saltar durante todo o tempo que estive nas águas e, sobre nós, algumas aves tentavam usufruir daquelas iguarias. Talvez ainda haja problemas com a qualidade da água, mas nada tem a ver com o que observei anteriormente. Melhorou e muito. Este Alentejo está bem vivo!

Na minha opinião, no entanto, aquilo que dá agitação a Mértola é a sua História e a capacidade para a contar. Não se espere que os transeuntes e que a generalidade dos empregados de restaurantes e hotéis saibam as histórias da História da vila. Não sabem.

Fruto de anos de estudo em escavações arqueológicas, os funcionários dos museus, incluindo os museus a céu aberto, dão boas explicações sobre o que está na nossa frente. Através destes fiquei a saber que a ocupação humana daquele território recua, pelos menos, até ao neolítico. Mas o ponto alto da História local foi a transição entre o período romano e o muçulmano. Fiquei espantado ao compreender que, nesse tempo, Mértola era tão importante que chegou a ser, por duas vezes, a capital de um principado (Taifa de Mértola).

O início do estudo sistemático da História de Mértola remonta ao final dos anos 70 do século passado. Desde então, com altos e baixos, as academias universitárias, apoiadas pelas autarquias e pelo Estado, têm investido num percurso que desenclausurou um passado extraordinário. Para o futuro, já foram estabelecidas novas parcerias que irão alargar o âmbito da ciência feita em Mértola às áreas da agricultura e da biologia. O objetivo essencial, em termos práticos, é que os terrenos agrícolas e o rio passem a garantir a segurança alimentar da vila.

Estive novamente em Mértola há uns dias atrás. Ao entardecer, soprou uma brisa ligeira. Em frente, já do outro lado do rio, um outro monte escondeu, brevemente, uma lua linda e cheia. Foi bom parar e olhar para o horizonte, ali pertinho, e ter a oportunidade de ver nascer a lua num entardecer revigorante. Não seria verdade, mas senti-me tão em paz que seria capaz de jurar que havia um Deus por ali…


sexta-feira, 25 de junho de 2021

Voo do Cagarro - 4: Alfacinhas

Capa da "Crónica dos Bons Malandros" de Mário Zambujal.
Retirado daqui


Talvez por ter nascido em Lisboa, os alfacinhas sempre me fascinaram. Aqueles personagens dos livros do Mário Zambujal, os declamados no “Fado Falado” ou os cantados por Jorge Palma sempre me fizeram abrir o sobrolho, mesmo no dia mais sombrio.

Num destes dias, bem cedo…

A senhora dona Lucinda está sentada à porta da tasca. Antes casa de má fama, a tasca é hoje apenas um dos sítios onde se encontram involuntariamente os que saem do turno da noite e os que “pegam” cedo. Um último copo para os primeiros e uma bica rápida para os segundos.

Do alto dos seus setenta e muitos, possivelmente oitenta anos, senão mais, a senhora dona Lucinda ofertava quem entrava um generoso “Bom dia, senhor…” a que se seguia o nome próprio da pessoa em causa, pronunciado com todas as letras, sílabas e cautelas.

Praticamente sem levantar os olhos do jornal, a senhora dona Lucinda exibia a sua capacidade sobrenatural de reconhecer quem passava usando, possivelmente, dotes de feiticeira. A idade tem destas coisas… Tinha-lhe levado todos os que lhe eram próximos, mas deixou-lhe a vista e a boa disposição.

Todos os que entram respondem educadamente, “bom dia, senhora dona Lucinda”, mais uma vez com todas as letras, sílabas e cautelas. Aquele é um local de respeito, por muito atabernada que tivesse sido aquela tasca no passado.

A todos, a senhora dona Lucinda responde que “a senhora está no céu”. Aparentando ser a lenga-lenga assumida, o diálogo para por ali e o transeunte entra na tasca pedindo seja lá o que for adequado: “bagaço ou café?”, ouve-se de lá de dentro.

Aproximou-se o Pintas. Com ou sem esse nome, qualquer história de Lisboa que se passe entre Alfama e o Bairro Alto, tem que ter um Pintas. Aqui não é bem essa geografia, mas, sem dúvida, em território de Olissipo.

“Bom dia, senhor…”. Dona Lucinda hesitou e travou a tempo. “Senhor” não se adequava ao Pintas. Tinha demasiadas bebedeiras, pancadarias e mulheres alheias no currículo... Resolveu então variar e completou-se a si própria de forma original: “Senhor, não, que esse está no altar. Bom dia, Pintas”.

O Pintas não se ficou e respondeu à letra, “Tem a certeza, senhora dona Lucinda? Ele podia ter estado no altar, mas ontem tive algumas dificuldades de cashe flóu e o Senhor talvez me tenha dado uma ajuda. Ele manda saudades e pergunta quando é que lhe faz uma visita!”.

A senhora dona Lucinda soltou um riso alto, imediato e descontrolado. “Ó Pintas, só tu para me fazeres rir!”, disse reconhecendo a presença de espírito do seu interlocutor. “Bem apanhada! Ganhaste.”, completou.

“Ganhar, ganhar, ainda não ganhei nada. Mas, ó dona Lucinda, tem aí mas moedas para eu fechar a noite? Tenho que ir para o vale dos lençóis e preciso do embalozinho dum bagaço…” “Então tu tiveste a falar com o Senhor e vens-me pedir trocos a mim?!”, a idosa queria nitidamente ripostar, mas o improviso era território do Pintas: “Sim, falei e ele disse para me dar dinheiro para uma refeição. Eu estava era a fazer-lhe um desconto!”.

É assim na Lisboa que amanhece…

sábado, 5 de junho de 2021

Voo do Cagarro - 3: Na Póvoa de Varzim

 

Rabanada à Poveira da Doçaria tradicional da Póvoa de Varzim.
Foto: F Cardigos

Portugal é um país com uma cultura rica. É quase um lugar comum ler isto, mas eu acredito plenamente na sua veracidade: a cultura e a arte do nosso país, plasmada em todos os temas que consigamos imaginar, é diversificada, contrastada e surpreendente. No entanto, mesmo eu, com esta convicção, por vezes fico deveras surpreendido.

Estava a almoçar na Póvoa de Varzim com um conjunto de pessoas que mal conhecia. A conversa gingava por temas inertes, típico de quem não sabe mais sobre os interesses dos seus interlocutores. Já tínhamos passado pela típica conversa sobre o tempo, a pandemia estava arrumada e o silêncio ameaçava impor-se… Sinceramente, já tinha deixado de me concentrar nas palavras que saltavam de um lado para o outro da mesa quando alguém disse algo que captou a minha atenção. “As geminações entre cidades duram tipicamente um dia. O dia da assinatura.” Não faço ideia como a conversa chegou ali, mas interessava-me. Até porque tenho algumas ideias sobre uma potencial geminação para a cidade da Horta, regressei ao mundo dos atentos e segui com atenção.

Nós aqui na Póvoa temos uma ideia diferente. Apenas admitimos geminações com cidades com que se estabeleçam relações perenes e consideramos que isso é possível se houver uma história muito forte que ligue os dois lados.” Pareceu-me sensato. “Por isso, vamos propor uma geminação com a cidade espanhola onde a nossa comunidade piscatória se abriga quando é apanhada por tempestades”.

Como sabem?” retorqui eu, percebendo que me tinham faltado palavras, “Como sabem que é nessa cidade e não noutra? Portos são portos, certo? Devem abrigar-se no porto que estiver mais perto e não numa cidade específica.

A resposta foi tão imediata que compreendi que era assunto já falado e amadurecido na Póvoa. Explicaram-me que a porta da igreja, naquela cidade espanhola, tem inscrições com as siglas das suas famílias de pescadores da Póvoa. Estranhei a expressão “siglas” e perguntei, “que siglas são essas? Acrónimos?” Negativo. Eram, na realidade, desenhos originais. As famílias de pescadores da Póvoa de Varzim têm sinais próprios e únicos para se identificarem. “A sério?!”, respondi em tom de espanto. “Sim”, complementaram dizendo, “as camisolas de lã poveiras, aquelas que foram recentemente alvo de um plágio com mediatização internacional, cada uma tem a sigla da família a que pertence. Aliás, as artes de pesca e os barcos, tudo tem o desenho específico da família em causa.

Mas isso é fantástico! É um aspecto cultural que eu desconhecia por completo”. Os meus interlocutores esboçaram um sorriso, com verdadeiro gosto por partilhar algo que me estava a fascinar e continuaram. “Os pescadores da Póvoa de Varzim têm regras e códigos próprios que são reconhecidos com apreço pela restante comunidade da região. Por exemplo, se um pescador adoecer, os outros levarão as suas artes para o mar, para que ele continue a pescar, mesmo sem lá estar. Este nível de reconhecimento pela identidade própria é tão elevado que, até há pouco tempo, os pescadores que tivessem de ir a tribunal eram autorizados a levar consigo alguém que explicasse os factos ao juiz de acordo com as regras da comunidade e essas eram tidas em conta nas decisões”.

O almoço estava a terminar, mas antes de concluir, um dos interlocutores ainda me disse. Se quiseres saber mais coisas sobre a Póvoa de Varzim, experimenta, por exemplo, procurar por “tricana poveira” na internet. Procurei e fiquei ainda mais espantado. Pensei com os meus botões: “se é assim com uma cidade, multipliquemos por todas as cidades de Portugal… Temos um país extraordinário. Apenas há que ir à procura e, principalmente, não nos deixarmos iludir por um primeiro olhar ou com as primeiras palavras trocadas. Para descobrir, para nos maravilharmos, há que procurar, explorar e conversar. A magnífica jornada do conhecimento, cá dentro!


sexta-feira, 14 de maio de 2021

Voo do Cagarro - 2: Há vidas…

 

Hedy Lamarr in Wikipedia.

Ao acordar fui ver as notícias da manhã no telemóvel, uma prática que tenho há muitos anos e que não recomendo de todo. Os acordares devem ser suaves e com um bom pequeno almoço, não com uma indigestão de más notícias. No meu caso, o trabalho a isso obriga.

Olhando para o vil e cruel dispositivo de comunicação, deparo-me com uma mensagem alertando para a necessidade de efetuar uma atualização do software associado à segurança do Wi-Fi. Um cérebro mal dormido faz perguntas tolas e, neste caso, não foi exceção… “Que raio quer dizer “Wi-Fi”?”. Pesquisei e, em três tempos, tinha a anódina resposta: “wireless fidelity”. Não fiquei mais feliz com a resposta.

No entanto… e a verdadeira aventura do conhecimento começou aqui… havia um apontador que dizia “os torpedos auxiliam a invenção do Wi-Fi”. “Torpedos, submarinos, submarinos, mar, mar é a minha profissão… Se calhar, devia aprender mais sobre isto… Como é que os torpedos se relacionam com um dos protocolos de comunicações mais usado? Queres ver que o mar está por trás disto?” O meu cérebro lutava para acordar e para fazer algum sentido de tudo aquilo.

Comecei pelo inesperado início: Hedy Lamarr era uma senhora austríaca, judia, convertida ao catolicismo por insistência do primeiro marido. Atriz antes do casamento, o marido proibiu-a de continuar a representar. Depois de fugir de forma engenhosa de um casamento que a privava da sua liberdade na sua terra natal, tornar-se-á uma atriz de nível planetário em Hollywood.

Mas Hedy Lamarr não era apenas uma actriz de renome. Desde a mais tenra idade que se interessava por “engenhocas”. Mais tarde, ao mesmo tempo que triunfava nas telas, alimentou o seu espírito inventivo com soluções que se revelariam de extrema utilidade muitos anos mais tarde.

No início da Segunda Guerra Mundial, em conjunto com o seu pianista, George Antheil, procurava formas de comunicação que evitassem a destruição dos torpedos radio-comandados usados pelos Aliados. Hedy tinha adquirido um certo conhecimento sobre diferentes tecnologias utilizadas em armamento na altura do seu primeiro casamento, sendo o seu primeiro marido um fabricante de armas. Da tempestade de ideias acabou por nascer o conceito de "sinais em frequência aleatória" (frequency-hoping spread spectrum) , que tornaria mais difícil intercetar ou mesmo adulterar as comunicações. A Marinha de Guerra dos Estados Unidos, a quem propuseram o conceito, não compreendendo o potencial daquela ideia e considerando-a irrealizável,  pô-la precocemente de lado. Muitos anos mais tarde, o conceito de "sinais em frequência aleatória" foi repescado e hoje serve de base à segurança dos protocolos de comunicação usados no Wi-Fi, GPS e Bluetooth.

 Os seus anos finais não foram felizes. Entre os processos judiciais em que se envolveu, o isolamento e a incompreensão, Hedy Lamarr acabou, de forma voluntária, fisicamente distante de todos. Como é fácil de compreender, consequência do seu legado, a sua história não acabou com a sua morte no ano 2000 e o reconhecimento tardio veio na forma de um prémio - o Pioneer Award of the Electronic Frontier Foundation.

Ao contrário do que pensei, a minha história não parou no mar. Acabou realmente distante. Parou no céu. Hedy Lamarr é hoje o nome de uma estrela no nosso céu. Uma estrela que saiu das telas e saltou para o universo…

Rendi-me. Adormeci de novo e sonhei com estrelas construídas com base no melhor engenho humano.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Voo do Cagarro - 1: Assim começa o meu “Voo do Cagarro”

Cagarro.
Foto: Paulo Henrique Silva, SIARAM.

Ao longo dos últimos anos, tenho mantido uma colaboração regular com diversos órgãos de comunicação social. Primeiro, na saudosa Revista Mundo Submerso, onde publicava crónicas sob o título genérico “Casa Alugada”. Depois, no Correio dos Açores e no Tribuna das Ilhas, as “Crónicas de Bruxelas”. Terminado o meu período de vida em Bruxelas, a minha vinda para Lisboa leva-me a iniciar um novo ciclo.

Para encontrar um nome para este novo ciclo, resolvi começar por pensar como me sentia. Admito, rapidamente concluí que me sinto um pouco nómada. Senti-me bem nos Açores, em qualquer ilha, e chamo casa ao Corvo e ao Faial. Senti-me bem em Bruxelas e em todos os locais que fui visitando ali à volta em trabalho ou lazer. Nos diferentes sítios do continente onde vivi na minha juventude, Lisboa, Casal Vidigal, Torres Novas e Faro, senti-me sempre bem. Os primeiros dias de regresso a Lisboa vão no mesmo sentido, sem problemas de adaptação.

No entanto, há sempre uma subjacente vontade de regressar ao Mar e, em particular, ao Mar dos Açores. Vou viajando, mas, aquilo a que posso chamar casa tem maresia e água salgada, como um cagarro. Cagarro!? É isso, digo silenciosamente em tom de eureka!

Entre o estridente som dos cagarros a povoar o céu noturno da Vila do Corvo e as horas passadas na campanha SOS Cagarro, sinto que tenho alguma afinidade com esta ave marinha, apesar de não ter qualquer pretensão a ser ornitólogo. Até o meu primeiro trabalho de campo sério nos Açores foi com cagarros. Então, no Morro de Castelo Branco, recolhia regorgitações de cagarros e tentava, com verdadeiros especialistas, identificar os seus itens alimentares.

Muito bem, cagarros será. Mas cagarros quê? Falta aqui qualquer coisa… Deixei a imaginação e a memória voar mais um pouco.

Há muitos anos atrás, em 2003, participei numa reunião internacional da Convenção OSPAR que decorria no Algarve (Tavira). Como qualquer reunião internacional oficial, o país tinha um representante mandatado pelo Governo e um corpo técnico de apoio. Eu pertencia ao corpo técnico e tinha por missão aconselhar o representante. Este, espelhando ou não a opinião dos técnicos que o auxiliavam, expressava a posição do país. Foi neste contexto que, entre colegas, dissertei um pouco sobre a necessidade de um maior reconhecimento mútuo do Mar de Portugal, assente nos bons exemplos do Continente, dos Açores e da Madeira.

Um colega mais experiente, chamou-me de lado e disse-me: “as colónias portuguesas de pardelas [é assim que os continentais chamam os cagarros] representam os vértices de um polígono que tem de ser português”. Discretamente, esbocei numa folha de papel um polígono que tinha como extremos as Berlengas, as Selvagens e a Ilha do Corvo e concluí intimamente: “um triângulo gigante e perfeito, o triângulo de Portugal”. Gravei. Passados uns anos, Portugal iniciou os trabalhos relacionados com a extensão da plataforma continental e o primeiro mapa divulgado unia, finalmente, a trilateralidade num oceano luso único.

O cagarro, o voo do cagarro, o meu voo. Voo do Mar dos Açores no Mar de Portugal e a este volto com prazer. É isso. “O Voo do Cagarro”! O Voo do Cagarro será o título da minha nova série de crónicas. Aqui fica a primeira, outras se seguirão.



sexta-feira, 16 de abril de 2021

Voo do Cagarro - 94: E assim terminam as minhas Crónicas de Bruxelas

Equipa do Gabinete dos Açores em Bruxelas em Março de 2021.
 

Cheguei a Bruxelas para trabalhar no Parlamento Europeu em setembro de 2014. A missão era ser assistente parlamentar acreditado do então eurodeputado Ricardo Serrão Santos. O mundo era diferente e eu era diferente.

No mundo, o Reino Unido participava na construção da União Europeia, a eleição de Trump parecia uma piada de mau gosto ao nível dos desenhos animados “The Simpsons” e as trevas do Estado Islâmico davam os primeiros horríveis passos como organização separada da al-Qaeda. Passados estes anos, o Reino Unido saiu da União Europeia, o pior presidente dos EUA saiu da liderança dos Estados Unidos com ainda menos glória do que aquela com que entrou e os resquícios do Estado Islâmico definham, ainda de forma tenebrosa, no Norte de Moçambique, no interior da Nigéria e, ocasionalmente, um pouco por toda a Europa.

Em 2014, ao chegar a Bruxelas, fiquei fascinado com a babilónia linguística, com a tolerância entre os povos europeus e com o processo democrático da União que se consubstanciava animadamente dentro do Parlamento Europeu. Nada disto mudou, apesar do enorme desafio trazido pela pandemia de covid-19. O complexo processo democrático da União Europeia é levado a sério e com protagonistas de primeira água, sejam aqueles com que simpatizamos mais ou de que estamos politicamente mais próximos, ou os restantes. Podemos não concordar, mas todos os que têm a legitimidade do voto, do mandato ou da competência técnica podem chegar-se à frente e apresentar os seus argumentos. Que ninguém me diga o contrário porque eu estava lá e vi.

Quando em 2017 passei para o “outro lado”, ou seja, quando deixei o lado da decisão legislativa e engrossei a fileira da sensibilização, passando a coordenar o Gabinete dos Açores em Bruxelas, entrei num outro mundo. Aqui encontrei pessoas híper empenhadas na missão de defender os seus países, as suas regiões, a sua área de trabalho ou as suas preferências. Vi pessoas com belíssimos argumentos com uma determinada orientação e outras, sobre o mesmo tópico, a tecerem considerações imbatíveis em sentido diametralmente oposto. Mais fascinante ainda, vi como estas pessoas souberam encontrar as soluções ou os meios caminhos que permitem, a todo o momento, ir construindo a União Europeia.

A belíssima arte da boa política enche a cidade de Bruxelas, quer dentro das instituições europeias, quer fora. Aqui, milhares de pessoas juntam-se todos os dias para digladiar os seus argumentos.

Vi pessoas a ganhar discussões e outras a perdê-las. Mas todos com o respeito de um civilizado cumprimento final, muitas vezes, acompanhado de um amigável copo numa das esplanadas da Praça do Luxemburgo. São estes os segredos mais conhecidos de Bruxelas: a competência, a tolerância e a curiosidade pela diversidade de pensamento. “Unida na Diversidade”, é a divisa da União Europeia.

Já conhecia a cidade de Bruxelas desde há dezenas de anos. Sabia que aqui iria encontrar boa música, boa comida e acesso a um enorme manancial de cultura. Agora posso adicionar os sorrisos, a solidariedade e a épica predisposição para dar orientações aos mais perdidos (um dos apanágios da cidade de Bruxelas).

Logo que me foi possível, passei a relatar parte das minhas experiências e emoções naquilo que chamei “Crónicas de Bruxelas”. Em 94 artigos publicados na imprensa regional fiz a revista do que me agradava mais e menos e salientei oportunidades e desafios que por aqui nasciam. Relatei algumas viagens pela Europa e outras pelos confins da cidade.

Foi um período bonito da minha vida e em que aprendi imenso. Agora, fecho as malas e parto. Levo no coração todos os habitantes desta cidade que tão bem me souberam receber. Ao longo destes seis anos e meio nunca senti a mínima má vontade e realço que entender o meu francês nem sempre é fácil... Isto para não falar do meu flamengo ou do meu alemão (as outras duas línguas oficiais do Reino da Bélgica)…

Após estes anos, estou convicto que os bruxellois saberão sempre bem receber todos os que aqui vierem trabalhar ou passear. Para os quem estiverem hesitantes, digo com ênfase e entusiasmo: vão!

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Crónicas de Bruxelas - 93: O mundo tem de mudar e em Bruxelas já se começa a notar

Anúncio público de remodelação urbana em Bruxelas.
Foto: F Cardigos
 

Com honestidade, é impossível afirmar perentoriamente como será a realidade depois de terminar este quase Calvário a que chamamos de pandemia de covid-19.  Parece certo que haverá mudanças e, olhando com atenção, há já alguns vislumbres desse mundo novo. Claro que, entre aquilo que pareceria lógico e de bom senso e a realidade que iremos observar, haverá, certamente, imprevisíveis diferenças. No entanto, deixemo-nos aventurar por esse perigoso mundo da adivinhação por algumas linhas…

Aqui em Bruxelas, os cientistas têm sido questionados pela comunicação social, tentando obter pistas sobre esse futuro. Mais do que dar respostas sobre o que nos espera, os cientistas, pejados de discernimento, têm antes alertado para as oportunidades que se nos apresentam.

Essencialmente, tentam transmitir uma mensagem de contenção e de sustentabilidade. O racional é simples: se conseguimos optar por produtos e serviços sustentáveis durante a pandemia e se conseguimos reduzir o consumo durante este período, porque não continuar esse percurso. É que, salientam os cientistas entrevistados, a manutenção dos níveis de consumo de antes da pandemia acabarão por exaurir o nosso planeta.

Num mundo perfeito, cada pessoa que não consiga reduzir o consumo deverá colmatar o seu impacto com ações ecológicas e sociais. Por exemplo, quem viajar de avião deverá garantir que plantará ou onerará a plantação de árvores que consumam os combustíveis que foram emitidos. Ou seja, o viajante deverá compensar a sua pegada ecológica de alguma forma. Para se ter uma ideia, uma viagem entre Lisboa e Ponta Delgada “custa” cerca de 20 árvores por pessoa.

Também no tecido urbano há outras mudanças no horizonte. Salientava há uns dias o Presidente da Câmara do Comércio Belgo-Portuguesa que os grandes edifícios da cintura de Bruxelas ocupados por escritórios das multinacionais estão a ser adaptados para prédios de habitação. Isso resulta de uma sequência de fatores que começou no início da pandemia; fatores estes que, aparentemente, modificarão a cidade para sempre. Passo a explicar.

Durante a pandemia, as multinacionais foram obrigadas a colocar o seu pessoal a trabalhar a partir do domicílio. Estes prédios ficaram vazios de uma semana para a outra e algumas empresas, obviamente, terminaram os seus contratos de aluguer.

Ora, acontece que uma grande parte dos funcionários vivendo em Bruxelas, se antes se contentavam com um apartamento onde pudessem essencialmente dormir, agora querem uma habitação onde, adicionalmente, tenham condições para trabalhar. Portanto, de repente, passou a haver uma enorme procura por apartamentos de maiores dimensões e estes, simplesmente, não existiam. Ao mesmo tempo que grandes prédios ficaram vazios. Uma combinação com consequência óbvias…

Mesmo para as instituições europeias, onde o teletrabalho generalizado era suposto ser temporário, há mudanças aparentemente perenes. No caso da Comissão Europeia já se fala em haver, pelo menos, 40% do pessoal em teletrabalho permanente. Também estes funcionários irão querer os seus espaços de habitação ampliados. Para além disso, ao contrário de preferirem uma habitação perto do centro da cidade, com acesso fácil a restaurantes, cultura e outros serviços similares, agora, com o isolamento social, estão a prescindir dessa proximidade.

Estas pequenas habitações no centro também lhes davam acesso rápido aos empregos, visto estarem inevitavelmente perto dos transportes públicos. No entanto, para ir uma vez por semana ao emprego, como agora parece ser a nova realidade, passou a ser confortável estar mais longe do centro.

Quem parece regozijar-se com isso são os municípios limítrofes de Bruxelas. Enquanto as pessoas se contentaram com espaços pequenos situados perto dos locais de emprego, estes municípios pouco beneficiavam com a “bolha europeia”. Agora, com esta desintegração do bairro europeu, olham para os “estilhaços” e tentam capturá-los para seu benefício. Novos habitantes significam mais impostos recolhidos e novos empregos criados nas lojas e serviços de apoio. Esta migração é um autêntico maná para os autarcas com visão.

Hoje de manhã, a caminho do Gabinete dos Açores em Bruxelas, parei a bicicleta num semáforo vermelho. Olhei distraidamente para um edifício de escritórios e estranhei a sua aparência decadente. Dou mais atenção e reparo num anúncio de obras que preenche parte da sua face lateral onde leio: “demolição (…) reconstrução (...) com 124 alojamentos”. Se faltava alguma evidência, ela aqui está! O mundo de Bruxelas está a mudar. Nada será como dantes!



sexta-feira, 19 de março de 2021

Crónicas de Bruxelas - 92: Sonhar em lusitano?

 


"História Global de Portugal", de vários autores.
Foto: F Cardigos

Comecei a ler a “História Global de Portugal” com enorme hesitação. Sei como é fácil exceder as interpretações factuais sobre o passado quando as evidências são escassas ou discutíveis. Não é difícil cair na tentação de, apanhando um punhado de indícios interessantes, complementar com alguma imaginação, independentemente de ser verdade ou não.

Aliás, nos Açores, somos permanentemente confrontados com isso, ao ver os autoproclamados “especialistas” afirmar vezes sem conta que, “agora sim”, encontraram a prova inequívoca que o arquipélago já era habitado antes das Descobertas. Passado pouco tempo, invariavelmente, vêm os historiadores e arqueólogos desmentir factualmente as ditas provas. É um “filme” tão delirante que já incluiu pirâmides afundadas junto ao Banco D. João de Castro e tão tentador que passou por um documentário da National Geographic.

Eu estou totalmente convencido que é altamente provável que as ilhas dos Açores tenham sido visitadas por fenícios, por viquingues ou por outros povos antigos. Para além de terem a capacidade tecnológica e a curiosidade, há até alguns indícios nesse sentido. No entanto, o passo que vai do “indício” até à “prova” tem um enorme comprimento e, na minha opinião, este ainda não foi transposto. Mais importante do que aquilo que eu penso, os verdadeiros historiadores e arqueólogos consideram que, neste momento, não há provas de povoamentos ou sequer visitas de povos antigos no arquipélago.

Portanto, depois de ultrapassar as primeiras páginas da “História Global de Portugal” e ao ler aquilo que classifico como “excessivas certezas”, resolvi perguntar a um amigo arqueólogo se os autores eram pessoas sérias, ou seja, se valia a pena continuar. Obtida a sua aprovação, li com redobrado prazer porque, de facto, o livro tem imensas informações e uma abordagem original. Não disserto sobre essa abordagem para não estragar o prazer de quem o for ler. Mas, aviso prévio, vou revelar uma das informações…

Estava então entretido a ler a “História Global de Portugal” quando, de repente, sou confrontado com um par de frases notáveis, quase ao nível da epifania. A língua lusitana não desapareceu! Mais importante, há palavras em português que são, na realidade, de origem lusitana. Não é apenas “Viriato”, mas “veiga”, “lapa”, “lameiro” e “arroio” são também palavras que utilizamos hoje e de uma forma muito parecida com a que os lusitanos usaram há mais de dois mil anos, muito, mas muito antes de Portugal o ser.

Movido pela curiosidade e pesquisando na internet, descobri que há muitos mais vocábulos lusitanos conhecidos, embora não se tenham mantido na nossa língua. Era engraçado encontrar todas as peças necessárias para que se pudesse voltar a falar lusitano. No entanto, pelo que pude apurar, ainda estamos longe de poder construir um verdadeiro dicionário português-lusitano e há muitas dúvidas sobre a forma de pronunciar as palavras que se conhecem. Quanto à fórmula escrita o enigma é ainda maior… Oxalá haja pessoas sérias a estudar este assunto e que um dia o lusitano possa voltar a ser falado.

A diversidade linguística está em risco, essencialmente por causa da globalização e das migrações. Todas as pessoas querem falar com toda a gente e as grandes línguas, na qual se inclui o português, vão-se impondo e esbatendo ou mesmo aniquilando as restantes.

Em 1996, 96% das línguas existentes eram faladas por apenas 3% da população mundial e, em 2003, existiam 6 mil línguas no mundo, no entanto, cerca de metade estava em risco. Estes números, segundo a UNESCO, têm uma enorme probabilidade de piorar com o passar do tempo, estimando esta organização que, por volta de 2100, 90% das línguas tenham sido substituídas pelas dominantes.

Era muito engraçado transformar o lusitano, uma língua morta, numa língua falada. Seria uma forma de dar esperança aos falantes resistentes das línguas em risco, de aumentar a diversidade linguística e de enriquecer ainda mais o património cultural de Portugal.

Será que algum dia poderemos voltar a sonhar em lusitano?